Há 350 milhões de anos, a dezenas de milhares de metros de profundidade, longe dos olhos de qualquer ser vivo, ocorreu um evento sísmico de grande magnitude. Abaixo da superfície, depois que o magma esfriou, formaram-se enormes camadas de granito, estendendo-se por até 15km em todas as direções. Em um certo lugar, contudo, a lava irrompeu pela superfície e formou uma montanha peculiar no meio de uma planície monótona.
Essa estrutura hoje é conhecida como Stone Mountain (“Montanha de Pedra”, em português).
Só para se ter uma ideia, Stone Mountain já tinha 343 milhões de anos de idade antes de qualquer coisa minimamente parecida com um ser humano aparecer na superfície do planeta. Depois disso, durante os cerca de 6.999.900 anos de existência do homem na Terra, a Stone Mountain permaneceu intocada, na área atualmente conhecida como Região Metropolitana de Atlanta, nos Estados Unidos.
Então, em 1915, aquela velha montanha de 349 milhões de anos se tornou o berço da Ku Klux Klan (KKK). As montanhas, é claro, não podem ser racistas. Elas são apartidárias, não enxergam raça ou religião, não são xenófobas ou homofóbicas. Depois de um longo período de existência – cinquenta vezes mais longo do que a presença do ser humano no mundo –, alguns homens brancos inseguros, no sul dos EUA, transformaram o que era uma maravilha da natureza em uma aberração.
O grande responsável por isso foi Sam Venable. Esse racista de longa data comprou Stone Mountain – o que por si só já é absurdo – em 1887. Venable e sua família já haviam adquirido pedreiras em todo o estado da Geórgia, e agora pretendiam explorar Stone Mountain. Mas os irmãos Venable não atuavam apenas no negócio de pedras, mas também no da intolerância. Os dois tiveram um papel central na expansão inicial da KKK, e chegaram a conceder a essa violenta organização supremacista branca o direito de usar suas terras para sediar encontros locais, regionais e nacionais.
Idolatria (tradução livre de Graven Image, título original do filme), um brilhante curta-metragem de Sierra Pettengill – produzido pela Fields of Vision –, conta a história da profanação de Stone Mountain. Com impactantes imagens de arquivo, o filme narra as origens de um monumento confederado esculpido na face da montanha. Trata-se de um relato moderno: embora algumas passagens não tenham som, o monumento de Stone Mountain é uma ideia recente o suficiente para que sua história fosse toda registrada em película. A inauguração da escultura foi transmitida ao vivo e a cores, como mostra o filme de Pettengill.
Com impactantes imagens de arquivo, “Idolatria” narra as origens de um monumento confederado esculpido na face da montanha.
Em 1916, um ano após a KKK realizar o ritual da queima da cruz em Stone Mountain e anunciar seu renascimento, a ideia de desfigurar a montanha com uma escultura gigantesca dos heróis da Confederação começou a ganhar força. É de conhecimento geral o papel de tantos homens terríveis na criação e na manutenção do racismo sistêmico nos EUA; mas a atuação vergonhosa de muitas mulheres brancas permanece relativamente desconhecida. Em Idolatria, porém, o protagonismo das mulheres no esforço para transformar a montanha em um monumento ao racismo não é ignorado. Pettengill mostra imagens de arquivo de mulheres brancas, em seus vestidos rendados, bordando uma bandeira confederada.
Foi Caroline Helen Jemison Plane, presidente da sucursal de Atlanta da United Daughters of the Confederacy (“Filhas Unidas da Confederação”, UDC), que convenceu os donos da propriedade a conceder à organização acesso à montanha. Ao criar a Stone Mountain Confederate Monumental Association, a ideia original de Plane era que os líderes da KKK fossem imortalizados ao lado dos generais confederados.
De 1916 até o auge dos movimentos pelos direitos civis, nos anos 1960, os trabalhos prosseguiram de maneira intermitente, sempre com o apoio da UDC. Mas uma coisa permaneceu constante: a montanha nunca deixou de ser usada como ponto de encontro de racistas.
Antigamente, todo negro da Geórgia sabia que não devia entrar naquele lugar. Foi o que descobri em primeira mão em 1998, quando ainda estudava no Morehouse College – uma universidade para jovens negros fundada em outra colina georgiana em 1867. Em uma aula de História Afro-Americana com o lendário Dr. Marcellus Barksdale, ele nos aconselhou a nunca ir a Stone Mountain. Com uma seriedade que surpreendeu a todos, ele nos contou como tudo naquele lugar era não só odioso como também destinado a nos ofender e intimidar.
Enquanto o Dr. Martin Luther King Jr. e o movimento pelos direitos civis conquistavam respeito e influência no país, os políticos brancos da Geórgia, cem anos depois da Guerra Civil Americana, decidiram que havia chegado novamente a hora de dedicar todos os seus esforços – e recursos públicos – para finalmente completar aquele monumento confederado. Nada mais natural. Afinal, um monumento aos líderes do exército confederado era tudo de que o sul dos EUA mais precisava nos anos 1960, certo?
Contrariando o conselho do meu professor, visitei Stone Mountain várias vezes. A escultura e o parque de diversões construído ao redor dela eram tão ruins quanto ele descrevera. Além do mais, aquele pedaço de terra não tinha nada a ver com a Guerra Civil. Ao que tudo indica, os três homens cujas imagens foram gravadas no granito – Jefferson Davis, Robert E. Lee e Stonewall Jackson – nunca estiveram naquele lugar.
Stone Mountain não virou o maior monumento à Confederação por ter uma conexão com a história confederada, e sim porque os racistas que a compraram – e adoravam que ela fosse ponto de encontro da KKK – sabiam que nada daria tanta visibilidade à sua visão de mundo quanto aquela escultura.
Em Idolatria, vemos o então governador racista e segregacionista da Geórgia, Marvin Griffin, anunciando, em 1958, o uso de recursos públicos para comprar a montanha e incentivar a continuação da obra. Ele sabia muito bem o que significava construir aquele monumento naquele momento histórico, mas isso não o impediu de prosseguir.
Atualmente, a cidade de Stone Mountain é tão negra quanto a NBA, a liga de basquete dos Estados Unidos. A Região Metropolitana de Atlanta, o lar de algumas das melhores “universidades historicamente negras” do mundo, é vista por muitos como a Meca dos negros americanos. Apesar disso, lá está aquela escultura, homenageando homens que lutaram com unhas e dentes para preservar a escravidão nos EUA.
Stone Mountain é um monumento que não tem vergonha, mas sim orgulho de sua história.
Hoje em dia, Stone Mountain é um monumento que não tem vergonha, mas sim orgulho de sua história. Todas as noites, um estranho show de luzes projetadas na face da montanha celebra a Confederação – cena mostrada logo na abertura de Idolatria. O parque temático associado ao monumento promete levar o visitante a uma versão nostálgica do início do século 19, embora todos saibam que aqueles tempos não foram nada agradáveis para os negros das redondezas.
A KKK continua sediando encontros em Stone Mountain até hoje, o que não é nenhuma surpresa, pois poucos lugares no país se esforçaram tanto para que eles se sentissem em casa.
Stone Mountain foi uma Charlottesville antes de Charlottesville. Há muitas gerações, homens brancos inseguros vestem fantasias e andam a esmo por lá carregando tochas, tentando intimidar os outros com seus rituais ridículos. Os políticos da Geórgia continuam celebrando o doloroso passado de Stone Mountain, e sequer cogitam a possibilidade de remover o monumento e deixar aquela paisagem com a mesma cara de 349 milhões de anos atrás.
Mas é isso que precisa acontecer.
Texto de Shaun King. Filme de Sierra Pettengill/Field of Vision. Tradução de Bernardo Tonasse.
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