Mustafa, 12 anos, dá um sorriso forçado e começa a mastigar sua maçã com avidez. Depois de três anos de privações, fazia apenas um mês que ele podia comer frutas frescas novamente. Mustafa e sua família são sobreviventes de um cerco.
A mãe de Mustafa, Sara, de rosto macilento como o da filha adolescente, conta como eles conseguiram sobreviver. “O molho de tomate era vendido por grama”, diz Sara, cujo sobrenome não será revelado por motivos de segurança. “Nossa comida diária era arroz ou lentilha. Carne, frutas, legumes? Pode esquecer, isso não existia. Pode esquecer também geladeira, não tinha eletricidade. Pode esquecer tudo”, recorda. Apontando para Mustafa, ela pergunta: “Olhe só para ele. Ele parece um garoto de 12 anos normal? Olhe para as meninas. Elas parecem saudáveis?”
Todas as crianças de Deir al-Zour são menores do que a média.
Mustafa parece ter oito ou nove anos. Todas as crianças de Deir al-Zour são menores do que a média. As filhas de Sara têm olheiras fundas, pele amarelada e maxilar ligeiramente afundado.
Desde o fim de 2014, os moradores da cidade de Deir al-Zour, na Síria, foram praticamente isolados do mundo exterior, sitiados pelo Estado Islâmico (EI), que tentava consolidar seu domínio no norte da Síria e do Iraque. Água, combustível, eletricidade e canais de comunicação foram desaparecendo gradualmente. Produtos básicos, como chá, açúcar, carne e alimentos frescos se tornaram luxos inacessíveis, controlados por um punhado de aproveitadores querendo lucrar com o cerco.
Depois de meses de intensos combates, o exército sírio e seus aliados romperam o bloqueio do EI no início de setembro. Mas as tropas sírias só conseguiram chegar à entrada principal da cidade três dias depois, pois os extremistas haviam coberto a área de minas terrestres.
A cidade é a capital da região de mesmo nome. O EI também foi expulso do resto da província de Deir al-Zour depois de muitos meses de luta contra as tropas do governo sírio e seus aliados, de um lado, e as Forças Democráticas Sírias (as FDS, apoiadas pelos EUA), do outro. Atualmente, o controle da zona é dividido pelo Eufrates: o governo e seus aliados controlam o lado sul do rio; as FDS e seus aliados, o norte.
Trechos da estrada para Deir al-Zour ainda ficaram sob poder do EI durante algumas semanas depois do fim do cerco, o que fez com que a cidade ficasse acessível apenas por via aérea. Entretanto, em meados de outubro, segundo funcionários do exército sírio, a ameaça inimiga na estrada foi eliminada. Caminhões de ajuda humanitária, civis e jornalistas podiam finalmente chegar à cidade por terra.
O que antes era um agitado centro urbano de 700 mil habitantes agora é apenas uma sombra do passado. As ruas da cidade foram esburacadas por anos de bombardeios; seus edifícios estão em ruínas, destruídos ou simplesmente abandonados; e serviços básicos, como eletricidade e linhas de comunicação, ainda não voltaram a funcionar. A recepção de sinais de telefonia celular é esporádica, e a maioria das casas usam geradores ou grandes baterias. Um relatório do Banco Mundial, publicado em julho de 2017, estima que nenhuma outra região síria teve tantas casas destruídas pela guerra quanto a província de Deir al-Zour.
Os moradores que ficaram – cerca de 100 mil em janeiro de 2017 – tiveram que enfrentar um duplo cerco: o externo, praticado pelo o Estado Islâmico, que impedia a entrada de pessoas e suprimentos na cidade; e o interno, realizado por pessoas que viam na miséria alheia uma oportunidade de lucro.
Agora a população está cansada da guerra, subnutrida e frustrada. Embora alguns bairros se esforcem para que a vida volte ao normal, os moradores temem que, da mesma forma que havia sido ignorada durante o cerco, a cidade seja esquecida assim que a euforia da liberação passar.
Situada entre duas ex-capitais do Estado Islâmico, Raqqa e Mosul, a cidade de Deir al-Zour, às margens do Eufrates, era um ponto crucial do conflito, mas seus habitantes foram ignorados por todos os envolvidos. Consequentemente, a população sofreu com a ganância dos aproveitadores dentro da cidade, ao mesmo tempo em que tentava se defender de ataques, infiltrações e investidas do EI, que queria controlar a cidade para consolidar seu domínio sobre a região.
No início da insurreição contra o presidente Bashar al-Assad, em 2011, Deir al-Zour, um dos focos de resistência das forças de oposição, foi atacada pelo exército sírio. Em 2013, a cidade foi dominada pelos rebeldes da Frente Nusra e outros grupos, que enfrentavam outras facções rebeldes e as ofensivas do governo. Em 2014, o Estado Islâmico assumiu o controle de boa parte do entorno da cidade, iniciando um cerco que duraria até setembro de 2017.
Para ir de Damasco a Deir al-Zour são nove horas de estrada através de uma vasta região desértica. Quem faz o trajeto percebe que muito ainda precisa ser feito para que os moradores voltem a ter uma vida normal depois da expulsão do EI e da oposição síria pelas tropas do governo. Palmira, a última grande cidade retomada – pela segunda vez – das garras do EI, em março de 2017, ainda está em ruínas, praticamente desabitada. Nas ruas, milícias pró-Assad – dos libaneses do Hezbollah aos afegãos do Fatemiyoun e os próprios sírios – ocupam todos os espaços, com cada grupo confiscando as poucas residências que restaram, enquanto as tropas russas vigiam as ruínas históricas.
A maioria dos veículos que atravessam Palmira é militar. Os russos estão na cidade, junto com o exército sírio e grupos paramilitares pró-governo. Caminhões cheios de combatentes sírios, libaneses e afegãos passam pelas ruas, com suas bandeiras tremulando ao vento. Um posto de controle na estrada principal entre a província de Homs e o nordeste da Síria – onde se encontram Deir al-Zour, Al Mayadeen e Abu Kamal – é ocupado por um soldado sírio, um russo e um afegão. Na entrada da cidade de Sukhnah, retomada recentemente, existe um enorme cartaz onde se lê “morte aos EUA e a Israel”, com bandeiras do Fatemiyoun nas extremidades.
Nos arredores de Deir al-Zour, a paisagem é dominada por pequenos conjuntos abandonados de casas térreas de telhado achatado. Depois de passar o posto de controle principal do exército sírio, o viajante se depara com um mosaico cheio de peças faltando, com uma mensagem de boas-vindas. Segundo os moradores e o exército sírio, ainda existem minas no amplo deserto que rodeia a entrada da cidade, o que torna a caminhada perigosa. Após um segundo posto de controle, uma grande estátua dá as boas-vindas a visitantes inexistentes – ninguém vem até aqui, pois os franco-atiradores do EI ainda estão à espreita.
Nas áreas residenciais da cidade, há postos de controle do exército sírio por toda parte. Jipes carregam jovem soldados – uma mistura de tropas oficiais sírias e forças locais pró-Assad – de um bairro a outro para seus afazeres diários. Os soldados vigiam atentamente o que restou de Deir al-Zour. Nos subúrbios a oeste da cidade, bairros inteiros foram destruídos – são as enormes cicatrizes da presença dos combatentes do EI e das batalhas que os expulsaram.
Recentemente, o mercado da Rua Wadi, em Deir al-Zour, voltou a ficar cheio à noite. A cidade estava às escuras, à exceção de algumas lâmpadas a bateria. Ainda ouviam-se algumas explosões à distância, abafando o ruído dos geradores, mas isso não impedia as pessoas de socializar. Antes da expulsão do EI, as bombas dos extremistas obrigavam a população a correr em busca de abrigo para não inflar ainda mais as estatísticas de civis mortos em 2017 durante a batalha pelo controle da cidade. Agora, os cafés estavam novamente cheios de fumaça e do burburinho de jovens fumando narguilé, em torno dos poucos televisores ainda em funcionamento. Outros paravam nas barracas do mercado para examinar os alimentos frescos, já não tão raros quanto antes.
As conversas sobre os tujjar – palavra árabe para negociantes ou qualquer pessoa que cobra dinheiro por alguma coisa, inclusive serviços – circulam entre os fregueses do mercado; moradores, comerciantes e até crianças falam sobre a vida sob “o cerco de fora e o cerco de dentro”, nas palavras de um dos feirantes.
Na maioria das vezes, os tujjar eram locais – habitantes da cidade ou das redondezas – que se aproveitavam do cerco do EI. Tudo era negociado: de pão, trigo, arroz, triguilho e comida enlatada a ajuda humanitária, diesel, óleo, autorizações governamentais e vagas em aviões e helicópteros de resgate. Todo tipo de pessoa podia ser um tujjar. Alguns eram membros de gangues que haviam entrado para vários grupos das Forças de Defesa Nacional, uma milícia pró-Assad; outros, como Hossam Qaterji, eram poderosos homens de negócios que organizavam a distribuição das ajudas recebidas pelo ar e supostamente negociavam trigo com o Estado Islâmico.
Quando a noite vinha, as gangues pilhavam os bairros e casas de quem havia fugido.
Sara relata como os tujjar enchiam os bolsos: “A ajuda aérea era recolhida pelos tujjar e dividida em duas; uma metade era deixada em galpões até estragar [para aumentar os preços], e a outra era vendida a preços exorbitantes nos mercados. Eles também são responsáveis pelo nosso sofrimento”, explica.
Quando a noite vinha, as gangues pilhavam os bairros e casas de quem havia fugido. Um morador conta que um vizinho dele viu sua cozinha inteira – inclusive a geladeira – sendo vendida na caçamba de uma picape em uma cidade vizinha.
“Agora as picapes vêm de Al Mayadeen cheias de coisas roubadas também”, diz Abu Mohammad, que não quis informar seu nome verdadeiro por motivos de segurança. “Essas gangues fizeram a mesma coisa aqui na nossa cidade”, conta.
“Tudo estava à venda em Deir al-Zour”, explica Mohammed Saleh Alftayeh, um estudioso da política e do exército sírios nascido na cidade. “Todo mundo tinha alguma coisa de que outros precisavam”, diz.
Para que um funcionário do governo pudesse sair da cidade, por exemplo, era preciso uma autorização oficial, e ela tinha um preço. Depois de sair, o tal funcionário teria que pagar para atravessar os postos de controle nos arredores da cidade; para embarcar em um helicóptero ou avião de carga, cobrava-se ainda mais. E, com o passar do tempo, todas essas “taxas” só aumentavam.
Em fevereiro de 2015, o preço de uma vaga em um avião ou helicóptero girava em torno de 25.000 SYP por pessoa – cerca de R$ 330 à época –, segundo vários moradores de dentro e de fora da cidade, alguns dos quais pagaram por esse tipo de resgate. No outono de 2015, quando as tropas do EI se aproximaram do aeroporto, os aviões de carga pararam de decolar. A partir de então, só aeronaves de pequeno porte – e, portanto, com menos lugares – podiam sair da cidade, o que fez os preços dispararem. Em outubro de 2015, a taxa havia decuplicado. Uma família de três pessoas teria que pagar 700.000 SYP para ser evacuada. Mesmo assim, a lista de espera era longa. Quem não podia pagar o resgate aéreo arriscava a vida tentando atravessar o território do EI por terra.
Agora que a maior parte de Deir al-Zour está livre do Estado Islâmico, a prioridade é a reconstrução e a volta dos civis. Mas, depois de terem sido praticamente esquecidos durante o cerco, os habitantes temem que suas necessidades sejam novamente desconsideradas na hora de reconstruir a cidade.
“Duvido que o governo priorize a reconstrução [de Deir al-Zour]”, diz Alftayeh. Ele cita como exemplo a retomada, em dezembro de 2016, da cidade de Aleppo, devastada pela guerra. “Quase um ano depois, o governo ainda não organizou nenhum esforço de reconstrução. Enquanto não houver financiamento internacional, duvido que tenhamos uma iniciativa séria de recuperação da cidade de Deir al-Zour, onde a destruição foi imensa”, acredita.
“Vai levar 10 anos até a vida voltar ao normal aqui.”
Embora a volta dos antigos moradores seja esperada, poucos retornaram às suas casas dois meses depois do fim do cerco. “Haverá um fluxo de retorno, em parte porque a zona que era controlada pelo governo está em melhor estado do que as outras e pode acomodar mais gente. Além disso, o governo quer que os refugiados internos voltem às suas cidades de origem, inclusive a Deir al-Zour”, prevê Alftayeh.
No fim de setembro, o governo decretou que todos os funcionários públicos deveriam voltar a seus postos de trabalho em até um mês; no caso de Deir al-Zour, o prazo foi estendido para o fim deste ano.
Algumas organizações humanitárias estão impacientes para a volta dos funcionários públicos, inclusive em Deir al-Zour. “Os trabalhadores do setor público costumam pertencer às classes mais pobres, e são eles que fornecem os serviços básicos necessários para o funcionamento de qualquer comunidade”, diz um servidor que trabalha com uma organização internacional na Síria. Ele pediu anonimato por não ter autorização para falar com a imprensa. “Queremos que eles voltem logo”, afirma.
Mas quem ficou na cidade e teve que enfrentar o cerco não está tão otimista com relação ao futuro. Haifaa, uma moradora do bairro de Qusour que foi obrigada a ficar quando o marido partiu para Damasco em busca de tratamento médico para seu filho, diz: “Vai levar 10 anos até a vida voltar ao normal aqui.”
Tradução: Bernardo Tonasse
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