O reaparecimento de José Sarney nas manchetes evidenciou que o ex-presidente está bem longe de sair dos bastidores do poder. O senador aposentado é apontado como principal nome por trás da escolha de Cristiane Brasil (PTB-RJ), filha de Roberto Jefferson, para chefiar o ministério do Trabalho. Sarney nega, no entanto, ter influenciado a decisão do presidente Michel Temer.
Para o cientista político Rafael Moreira, pesquisador da USP cujo principal foco de estudos é a história e a estratégia do PMDB (agora rebatizado de MDB), essa postura do ex-presidente reflete bem o modus operandi do partido, de ocupar as coxias da cena política para se beneficiar ao máximo do presidencialismo de coalizão. O especialista explica que, após 20 meses na boca de cena do poder, com Temer na presidência, o partido deve procurar voltar aos fundos do palco, ambiente que a legenda domina como nenhuma outra no país, neste ano eleitoral que se inicia. Ainda segundo ele, Roberto Jefferson (PTB) começou o ano tornando a própria filha ministra do Trabalho e pode encerrá-lo se elegendo a um cargo parlamentar.TIB: Um dos principais personagens do mensalão, Roberto Jefferson fez da própria filha ministra do Trabalho. O que este fato nos mostra?
R.M.: Boa parte da classe política brasileira se comporta como se fosse uma casta. Extremamente privilegiados, vivem descolados da realidade da maioria da sociedade brasileira. Para eles, a política é como um empreendimento ou como se fosse algo de direito da família, que passa de geração para geração.
TIB: Surge, agora, a questão se a Cristiane Brasil vai se candidatar e abandonar o governo, ou se o pai vai ser candidato…
R.M.: Esse é um comportamento estratégico de Roberto Jefferson. Em um sistema eleitoral proporcional, sobretudo no Brasil, que tem dimensões continentais e um eleitorado muito grande, ele acaba tendo chances de ser eleito.
Se você tem grana, se lança em um estado grande como São Paulo [pelo qual Roberto Jefferson anunciou que irá se candidatar], e chega a uma parte do eleitorado que não o conhece, tem chances de se eleger. O sistema proporcional dá esse tipo de saída, e é assim que muitos se perpetuam por até mesmo décadas. O [Paulo] Maluf é eleito até hoje, gente. Eles sabem usar o marketing eleitoral.
TIB: Uma parcela da população apoiou o afastamento da ex-presidente Dilma Rousseff alegando ser “contra a corrupção”. Em seu lugar, entra um governo que dá poder a Roberto Jefferson, condenado e depois perdoado pelo STF pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. E agora o senhor comenta que ele ainda tem chances de ser eleito este ano. O que isso diz sobre o Brasil?
R.M.: Uma parte do eleitorado deve estar chocada ou até anestesiada.
A parte da população brasileira que foi às ruas para pedir a retirada de um governo eleito democraticamente, de fato, parou de ir às ruas, porque ela cumpriu o papel que imaginou que ia cumprir, no fundo. Mesmo que isso não ficasse claro à época, por trás de um discurso contra a corrupção, ali você via ódio antipetista. Com todas as críticas que a gente pode e deve fazer ao governo do PT, precisamos admitir que tinha ódio: ódio de classes, que muitas vezes se manifestava em discursos machistas, porque era a primeira vez que tínhamos uma presidenta mulher.
Outra parte, mais progressista, nunca deixou de ir às ruas. Esse papo de que o povo brasileiro saiu das ruas é mentira, está tendo manifestação direto. Lógico que não tem o mesmo índice de antes, até porque a conjuntura atropela tudo.
TIB: O próprio Roberto Jefferson não acaba surfando nesse ódio anti-PT que você citou?
R.M.: Mas aí não é uma característica só dele. Uma parte do sistema político atraiu para si todo esse discurso antipetista e de suposto combate à corrupção. E, no caso de alguns, foi até patético, porque tinha um componente hipócrita muito forte. Teve quem logo depois fosse pego pelos mesmos crimes de corrupção.
É lógico que temos que criticar isso, mas o Roberto Jefferson é só mais um que aprendeu a surfar na onda antipetista da opinião pública. Até mesmo alguns filiados ao PT tentaram se aproveitar disso, saindo do partido. Existe uma parte da classe política que se aproxima do PT quando ele está em ascensão eleitoral e depois sai de perto quando o partido começa a declinar.
TIB: Isso, inclusive, acontece entre partidos de esquerda.
R.M.: E que tipo de esquerda é essa, que se aproxima do PT para se beneficiar eleitoralmente e sai quando o partido começa a declinar? Será que o partido que faz isso não demonstra mais uma posição fisiológica do que ideológica de esquerda?
TIB: Qual partido você acha que se destaca por esse movimento de aproximação e afastamento cíclico em relação ao PT?
R.M.: O PDT parece se manter fiel ao PT, o PCdoB parece ter se afastado com a pré-candidatura de Manuela [D’Ávila], parece ser um sinal dessa fisiologia. O PSB parecia ser um partido muito atrelado ao PT por muito tempo, mas em 2014 começa a se afastar com a candidatura de Marina Silva. Esses três são os principais partidos que orbitam historicamente em torno do PT, dos que têm peso eleitoral grande e bancada. Mas é preciso esperar a aproximação das eleições para entender quais vão se manter fiéis ao projeto de governo petista/lulista, de redução da desigualdade a longo prazo, e quais estavam atrelados apenas para se beneficiar de alguma maneira.
TIB: Como você interpreta o retorno do nome Sarney às manchetes?
R.M.: Este caso torna claro que ele se aposentou, mas não perdeu o poder. Esse peso dele vem aparecendo em diversas entrevistas que fiz recentemente com políticos para minha pesquisa. Ele consegue pautar quem quer e barrar quem ele não quer. Foi esse o caso agora, ao indicar alguém do PTB, que nem é seu partido, para um cargo no governo.
TIB: A negação do próprio Sarney sobre essa influência na escolha do nome para o ministério do Trabalho é algo surpreendente?
R.M.: O comportamento do Sarney nesse caso se assemelha muito ao comportamento histórico do próprio MDB, de buscar o plano de fundo. Então não surpreende.
A tendência de 2018 para o MDB é o retorno ao plano de fundo da política brasileira, elegendo uma bancada grande mais uma vez, aquilo que tem sido a tônica das últimas eleições. O partido age de maneira estratégica quando entende que essa é a melhor forma de se beneficiar do presidencialismo de coalizão, e o Sarney demonstra saber disso. O MDB atravessou o governo do PSDB com Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) e depois passou por um ciclo de governo com o PT, também fazendo parte da base. E desembarca apenas no momento em que a opinião pública começa a se movimentar em torno do campo da direita e de um antipetismo. E o Sarney também o faz.
TIB: Ou seja, fisiologismo. Certo?
R.M.: Sim, um fisiologismo. O MDB vem sendo descrito pela literatura da ciência política brasileira por características negativas e elas, às vezes, se estendem aos seus quadros. O Sarney é um exemplo disso. São figuras que parecem só existir enquanto estiverem atreladas ao governo e ao Estado. O partido DEM também é um exemplo disso. Ele vinha em uma trajetória de queda no número de filiados e, agora que volta ao governo em 2016, parece voltar à vida.
TIB: Mas seria o governo que depende do MDB ou o MDB que depende do governo?
R.M.: Todos os governos que foram eleitos entenderam como é que funciona o presidencialismo de coalizão brasileiro. E todos sacaram que precisariam do MDB para governar. O MDB, da sua parte, percebeu como se beneficiar desse sistema: não lançando candidato próprio à presidência da República, compondo chapa com aquele que eles acreditam ter a maior chance de ganhar e, ao mesmo tempo, lançando o máximo de candidatos ao legislativo, garantindo uma bancada grande. Esse último faz com que qualquer governo a ser eleito, independente de ser a sua chapa ou não, acaba tendo de recorrer a você.
TIB: Em que ponto o Lula percebeu isso?
R.M.: No primeiro mandato do Lula (2003-2006). A entrada do MDB se dá depois do Mensalão. Ali foi a sacada, quando ele [Lula] percebeu: “Olha, a gente vai ter que governar com esses caras, independente de quem seja, para aprovar minimamente a nossa agenda”.
TIB: E agora, que é presidente, Temer não pensaria em se lançar candidato?
R.M.: No momento em que ele se torna interino [maio de 2016], sim. Mas hoje acho muito difícil. Esse é o tipo de mosca azul, de ambição pessoal que passa pela cabeça de muitos políticos brasileiros, mas alguns percebem que não têm a força e o apoio popular que acham ter. E, para o Temer, isso deve ter ficado bem claro quando saíram as pesquisas apontando a rejeição a ele. Deve ter pensado: “Não, eu estava viajando, mesmo”.
O [João] Doria é outro que achou que teria uma ascensão meteórica da prefeitura de São Paulo direto para a presidência da República. Esse tipo de ambição passa pela cabeça de certos políticos, mas em determinado momento eles caem na realidade.
Foto do topo: José Sarney se despede no plenário do Senado em dezembro de 2014.
Você sabia que...
O Intercept é quase inteiramente movido por seus leitores?
E quase todo esse financiamento vem de doadores mensais?
Isso nos torna completamente diferentes de todas as outras redações que você conhece. O apoio de pessoas como você nos dá a independência de que precisamos para investigar qualquer pessoa, em qualquer lugar, sem medo e sem rabo preso.
E o resultado? Centenas de investigações importantes que mudam a sociedade e as leis e impedem que abusadores poderosos continuem impunes. Impacto que chama!
O Intercept é pequeno, mas poderoso. No entanto, o número de apoiadores mensais caiu 15% este ano e isso está ameaçando nossa capacidade de fazer o trabalho importante que você espera – como o que você acabou de ler.
Precisamos de 1.000 novos doadores mensais até o final do mês para manter nossa operação sustentável.
Podemos contar com você por R$ 20 por mês?