Às 5 da manhã de 13 de novembro, mais de duzentos policiais haitianos invadiram a área de Grand Ravine em Port-au-Prince. Houve uma série de explosões, seguidas de disparos. Foram seis horas de comoção, durante as quais a região permaneceu sitiada.
O que havia começado como uma operação contra gangues num bairro pobre e esquecido de um país igualmente pobre e esquecido terminou na execução sumária de civis inocentes num campus escolar.
Os policiais trabalhavam em parceria com a Missão das Nações Unidas de Apoio à Justiça no Haiti (MINUSJUSTH), iniciada em outubro — uma nova versão, sem o componente militar, da Missão para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH), que começou em 2004, logo após o golpe de estado, quando a ONU enviou milhares de soldados com a tarefa de restaurar a estabilidade e reforçar o contingente da polícia nacional. O Brasil teve um papel marcante no Haiti, tendo mandado, de 2004 a 2017, 26 contingentes e 37 mil homens. Mas, depois da resolução do Conselho de Segurança que determinou a retirada gradual das forças da MINUSTAH, os últimos 816 militares brasileiros que participavam da missão regressaram ao país em setembro do ano passado. Atualmente, há apenas dois policiais militares brasileiros participando da nova missão, a MINUSJUSTH.
Embora a ONU tenha dado uma declaração alguns dias depois da invasão, pedindo às autoridades haitianas que investiguem o caso com celeridade, não admitiu publicamente seu papel na operação. Em uma declaração enviada por e-mail no final de dezembro, apesar de tentar se distanciar da responsabilidade pela morte de civis, uma representante da ONU confirmou pela primeira vez a The Intercept que a missão havia ajudado a planejar a invasão.
“As referidas mortes de civis não faziam parte do plano da operação. Antes, foram fruto de ação unilateral por parte de agentes [da polícia haitiana] após a conclusão da operação”, afirmou por e-mail Sophie Boutaud de la Combe. Ainda de acordo com a ONU, a invasão da escola foi realizada sem autorização, sem consulta prévia à hierarquia policial e fora do plano operacional.
Boutaud de la Combe afirmou ainda que, no dia seguinte à invasão, a ONU “realizou uma apuração interna com todos os comandantes que participaram da operação”. A investigação interna corroborou a conclusão de que os agentes da ONU não efetuaram disparos, tendo apenas “guardado o perímetro” ao redor da escola, afirma ela.
“Nenhuma das unidades [da polícia da ONU] seguiu até o local no Colégio Maranatha onde se deram os referidos assassinatos”, declarou a representante. “A parte planejada da operação correu relativamente bem. Não fazia parte do plano a iniciativa unilateral de alguns membros da polícia nacional haitiana, que agiram fora do quadro operacional, sem prévia notificação aos superiores, sem autorização e contradizendo o próprio planejamento da operação”.
Quando cheguei ao campus do Colégio Evangélico Maranatha com uma equipe de transmissão da Al Jazeera, quatro dias depois da invasão, ficou imediatamente claro que algo de hediondo havia acontecido.
O concreto apresentava manchas de sangue ainda úmidas, que a camada de neblina, que tornava a cidade inusitadamente fria naquela semana, não deixava secar. A água acumulada sobre o ralo entupido do pátio estava tingida de vermelho escuro e ocultava parcialmente um cartucho vazio de gás lacrimogêneo. O cheiro da violência ainda pesava no ar.
Salas e escritórios haviam sido revirados, e o conteúdo de armários, gavetas e estantes estava espalhado pelos andares. A luz se infiltrava pelos buracos deixados pelas balas que haviam penetrado as grossas paredes de concreto. Em algum momento depois da invasão, alguém havia varrido para uma pilha de lixo cinco cartuchos de gás lacrimogêneo e cerca de cem cápsulas de armamento pesado.
Na manhã em que chegamos, alunos e funcionários estavam reunidos para homenagear os que haviam sido mortos. A escola ainda estava fechada. Eles se juntaram em uma pequena sala de aula, fecharam a porta para intrusos como nós, e começaram a cantar. Os hinos religiosos com suas melodias ricas e profundas ecoaram pelo pátio, se misturando aos gritos das vítimas enlutadas e dos familiares ávidos por contar suas histórias.
“Eu quero me matar”, disse-nos Monique Larosse, cujo sobrinho foi morto naquele mesmo pátio alguns dias antes. “Por que eles o mataram se sabiam que ele não era bandido? Ele ia à igreja, estudava, tinha princípios.”
As histórias que Larosse e outros sobreviventes e familiares me contaram deixam claro que algo deu terrivelmente errado naquele dia. Embora ainda haja muito por esclarecer, uma coisa é certa: a narrativa oficial conflita com o que as pessoas de Grand Ravine afirmam ter vivido e presenciado, e a justiça ainda parece distante demais.
Situada perto da entrada sul da extensa capital do Haiti, a região de Grand Ravine fica na encosta de um morro, com vista panorâmica para o Mar do Caribe. Apesar disso, é um lugar negligenciado pelas autoridades.
Em decorrência da urbanização improvisada, sem regulamentação, Grande Ravine e vários outros bairros praticamente não possuem infraestrutura ou acesso aos serviços públicos. Muitas áreas são acessíveis apenas a pé.
Vielas estreitas e tortuosas se espalham entre as casas de concreto reforçadas com chapas de metal enferrujadas.
Em meio a tudo isso, fica o Colégio Evangélico Maranatha, que funciona nesse local desde os anos 1940 e oferece educação a partir da pré-escola às crianças do bairro. O campus inclui vários prédios escolares, alojamentos e algumas árvores bem grandes, que contrastam com a paisagem dominada pelo concreto. Um muro baixo circunda a escola.
A única entrada para a instituição, que fica ligeiramente acima do nível da região que a circunda, é um caminho íngreme que começa após um grande portão de metal. O campus é um refúgio, um oásis de tranquilidade numa parte do Haiti tomada pela ação das gangues.
Grand Ravine é uma “zona vermelha” — o código que as forças internacionais usam para identificar as áreas mais violentas do país. Em dezembro de 2016, o mais importante chefe de gangue do bairro, Junior Decimus, foi preso no aeroporto quando tentava viajar para o exterior. Um mês depois, segundo a organização local de direitos humanos Justiça e Paz, instalou-se um conflito armado pela disputa do controle do bairro. “Ondas de disparos de armas automáticas cantavam durante o dia, enquanto policiais da estação mais próxima apenas observavam, impotentes”, relatou a organização.
Em outubro, um mês antes da invasão policial, grupos de jovens armados colocaram barreiras na estrada para assaltar carros em plena luz do dia.
No mesmo mês, milhares de soldados da ONU que estavam no país desde o golpe de estado de 2004 foram removidos. Enviadas ao Haiti para restaurar a “estabilidade”, as tropas estrangeiras se envolveram em diversas invasões violentas em bairros semelhantes a Grand Ravine. A comunidade internacional gastou centenas de milhões de dólares no treinamento da polícia do Haiti para a eventual saída da ONU.
A Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH) encerrou seu prazo em outubro, mas ainda não houve uma retirada completa das tropas. No lugar dos soldados, a ONU criou uma missão menor, composta de alguns milhares de policiais. No começo de novembro, juntamente com as forças policiais da capital, a nova missão da ONU ajudou a planejar uma operação contra as gangues em Grand Ravine.
A invasão de 13 de novembro foi uma das primeiras e maiores ações envolvendo a nova missão, e a resposta aos eventos vai ser determinante para o futuro da relação da ONU com a população de Grand Ravine — e para o sucesso da renovada força policial local.
Às 6h30 daquela manhã de meados de novembro, Armand Louis recebeu um telefonema do Colégio Maranatha, instituição que dirige há trinta anos. Havia algo de errado. A operação policial havia chegado à escola.
Quando chegou ao colégio, quase duas horas depois, gás lacrimogêneo já estava sendo usado pela polícia, segundo uma investigação da Rede Nacional de Defensores dos Direitos Humanos (RNDDH, na sigla em francês), organização local de direitos humanos. A descrição a seguir é baseada em entrevistas realizadas por The Intercept com diversas testemunhas, cujos relatos batem com o relatório da RNDDH sobre o massacre.
A polícia abriu e revistou as salas de aula, revirando-as na aparente tentativa de localizar membros de gangues que estariam escondidos no campus. Não encontraram ninguém.
Houve um breve período de tranquilidade. As pessoas que permaneceram no campus deram água à polícia. A ardência nos olhos pelo gás lacrimogêneo se reduziu.
Uma hora depois, conta Louis, o segurança da escola Julio Fongene foi até ele e disse que havia sido ameaçado por alguns membros de gangue que estavam escondidos num depósito do campus. Louis contou isso à polícia.
“Cem ou duzentos poderiam morrer lá dentro que ninguém saberia.” — Rovelsond Apollon, Justiça e Paz
Dois policiais foram baleados ao tentar prender esses bandidos, que conseguiram fugir. Aparentemente, nenhum deles foi preso, já que a polícia não informou ter detido os responsáveis por atirar nos policiais.
Unidades da ONU constituídas por policiais da Jordânia e do Senegal responderam aos relatos de disparo de tiros e foram à escola. Segundo a ONU, eles prestaram primeiros socorros aos policiais feridos e guardaram o perímetro. Não há relatos de envolvimento dos dois brasileiros da MINUSJUSTH no episódio.
Mas, dentro do campus, a polícia haitiana passou a partir para cima de civis inocentes que haviam testemunhado o episódio.
Primeiro, atiraram e mataram o segurança Fongene, dizem as testemunhas.
Depois os policiais acusaram Louis de armar para cima deles e o arrastaram para o pátio central, onde estavam alguns docentes e funcionários que moram no campus. Os agentes o espancaram com uma cadeira, causando lesões substanciais na cabeça e no tórax. A Missão Protestante Evangélica Batista do Haiti, afiliada à escola, incluiu um relato do espancamento no seu parecer sobre o ocorrido. O episódio foi confirmado por uma entrevista com Louis e pelo relatório da RNDDH.
Os funcionários da instituição tentaram intervir. O professor David Jean Baptiste foi espancado e recebeu cinco tiros, um deles na cabeça. O pátio onde ele foi morto permaneceu manchado de sangue por muitos dias.
Vanel Danger mora no campus e é responsável pela cantina. Ele contou a The Intercept que um policial colocou uma arma em sua cabeça e ameaçou arrancar seus dentes se ele não cooperasse. Danger se jogou de joelhos no chão e implorou por sua vida. Lembrou ao policial que lhe dera água havia menos de uma hora, de acordo com o relatório da RNDDH. Danger foi poupado, mas muitos não tiveram a mesma sorte.
Surrado e ensanguentado, Louis foi algemado por um policial de uniforme da ONU e arrastado para a prisão, conforme relatou a The Intercept.
Quando a polícia finalmente foi embora do campus, por volta das 11 da manhã, deixou os corpos de nove civis mortos no pátio — cinco deles com tiros na cabeça. Nenhuma arma de fogo foi recuperada, o que sugere que as mortes foram “execuções sumárias”, nos termos do relatório da RNDDH.
Os corpos só foram retirados na tarde seguinte.
Quatro dias depois da invasão, as vielas que contornam o campus e cortam os morros da região permaneciam praticamente desertas. Grupos de crianças nos observavam dos telhados. Olhares fugazes pelas frestas das casas de concreto nos seguiam pelo bairro.
Muito poucos se dispunham a falar.
“Há muito mais [vítimas]” dessa e de outras invasões, explicou um morador, aluno da escola, cujo nome The Intercept não divulgará por razões de segurança. “Eles estão com medo”, acrescentou.
Embora a operação contra as gangues tenha terminado num massacre escolar, restam também várias perguntas sobre o que aconteceu fora do campus, onde a operação começou. Num primeiro momento, foram contabilizadas sete mortes de civis — todas ocorridas dentro da escola. No total, a polícia prendeu 32 pessoas, mas não admitiu nenhuma morte fora da escola.
A RNDDH descobriu em sua investigação, no entanto, que uma das pessoas que foram encontradas mortas no campus morava nos arredores e havia sido arrastada de sua casa naquela manhã e levada à escola depois de morta.
O número total de mortos ainda não é conhecido.
Doresne Jean, diretor do necrotério de Saint Claire no centro de Port-au-Prince, conta que oito corpos chegaram de Grand Ravine na terça-feira, dia seguinte à invasão – um número maior do que a polícia havia admitido. Mas Jean acha que certamente haveria mais.
“Talvez a polícia tenha removido alguns corpos, porque cinco ou seis pessoas vieram aqui perguntar por seus familiares”, especula ele. As pessoas por quem procuravam não estavam na lista dos corpos encaminhados ao necrotério.
A comissão arquidiocesana Justiça e Paz, que monitora a violência em bairros como Grande Ravine, foi uma das primeiras a investigar o massacre. Rovelsond Apollon, um dos observadores da organização, disse que foram confirmadas doze mortes, mas que talvez nunca seja possível ter certeza do total real.
Não que muita gente esteja prestando atenção ao que acontece na ilha. “Cem ou duzentos poderiam morrer lá dentro que ninguém saberia”, disse Apollon.
“Não sei como vou viver sem meu filho”, foi o que nos disse, no pátio da escola, Gina Napolean, o luto visível em seu resto quatro dias após o massacre. Seu único filho, Kens Napoleon, de 22 anos, era o arrimo da família. Ele foi morto com um tiro na cabeça. Gina atribui a culpa exclusivamente ao governo, que ela acusa de “mandar a polícia matar nossos filhos”.
Apollon explica que a questão não é apenas que os políticos controlam a polícia — eles estão pessoalmente envolvidos com as gangues. A Justiça e Paz Sua entrevistou jovens com armamento pesado, equipamentos difíceis de adquirir, e eles disseram que as armas haviam sido fornecidas por políticos. “Políticos e autoridades não são inocentes em relação ao que aconteceu, porque eles também desempenham um papel na violência”, entende ele. Os políticos, por sua vez, não se manifestaram publicamente sobre essas acusaões.
Praticamente todos os funcionários e instituições governamentais evitaram assumir qualquer responsabilidade pela invasão.
Perguntado sobre a operação, o chefe de polícia se limitou a dizer que ela foi planejada pelo departamento local de polícia e pela nova missão da ONU. O primeiro-ministro Jack Guy Lafontant declarou à imprensa que os detalhes da operação de campo estavam fora de sua competência. Ambos responsabilizaram o mau planejamento pelo derramamento de sangue.
A operação estava comprometida desde o começo. Policiais contaram aos investigadores locais de direitos humanos que informações confidenciais já estavam circulando antes da ação.
Um ex-militar haitiano me contou que ficou sabendo da operação quando ao ouvir informações num canal aberto de rádio em 12 de novembro, véspera da operação. Horas depois, o líder de uma gangue ligou para outro programa de rádio local, alegando que uma gangue rival de outro bairro teria cooperado com a polícia durante a ação. Outros levantaram a hipótese de a operação ter sido uma tentativa de recuperar um carregamento de armas que as autoridades teriam distribuído pelo bairro algumas semanas antes. E assim gira a máquina dos rumores no Haiti.
O posicionamento da ONU — de dizer que seus agentes estavam apenas no perímetro da escola — contradiz as declarações dadas por Louis, que afirma ter sido algemado por um agente das Nações Unidas dentro do campus. A ONU insiste que não se envolveu porque os oficiais não estavam no pátio da escola, mas a entrada onde eles estariam posicionados fica logo abaixo da cena do massacre.
O principal foco da nova missão da ONU é a justiça, mas Apollon comentou que o Haiti já recebeu muitas missões internacionais ao longo da história. “Todas fracassaram” porque não compreenderam a realidade do país, argumenta ele.
No Haiti, segundo Apollon, reina a impunidade.
Quase dois meses depois do massacre, ninguém foi responsabilizado. O inspetor geral de polícia concluiu uma investigação e a encaminhou a um juiz, que poderia determinar a prisão ou a exoneração dos agentes envolvidos. Um dos policiais acusados de envolvimento no caso já é dado por desaparecido, segundo o inspetor. Famílias de nove vítimas, incluindo as dos dois policiais, receberam um pagamento único de cerca de 1.500 dólares para despesas funerárias. Mas nenhum dos estrategistas da operação fracassada foi identificado ou interrogado.
Em vez disso, Louis, o diretor da escola, foi preso por participação na morte dos dois policiais. Depois de ser espancado com uma cadeira na escola que dirigia há trinta anos, Louis foi mantido em uma prisão de Port-au-Prince por mais de uma semana.
Graças à pressão de organizações religiosas e dos funcionários da instituição, Louis acabou sendo liberado por motivos de saúde. Mas ainda não voltou à escola.
Algumas semanas depois, Louis escreveu para mim: “Num país como o meu, é difícil confiar na palavra dos líderes”. E acrescentou que esse é “o motivo pelo qual precisamos saber qual era o verdadeiro objetivo da invasão”. Ele ainda não foi interrogado pelas autoridades. “Eles realmente querem que tudo seja investigado adequadamente ou tudo isso foi planejado?”, se interroga Louis.
Apollon entende que invasões frequentes não teriam grande efeito sobre os problemas fundamentais que atingem bairros como Grand Ravine. A violência decorre da completa ausência do Estado nessas áreas, e vai continuar enquanto as necessidades da população não forem atendidas. Os moradores precisam, segundo ele, “de educação”.
Depois da invasão, a escola permaneceu fechada por duas semanas.
“Precisamos da escola”, foi o que me disse um aluno do Maranatha naquele dia, no pátio. “Sem educação, que esperança podemos ter?”
Tradução: Deborah Leão
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