Será que perdemos a noção da realidade?
Na noite do último domingo, a hashtag #Oprah2020 ficou entre as mais usadas nas redes sociais, depois que Oprah Winfrey — famosa apresentadora de TV americana –- fez um discurso inflamado na cerimônia de premiação do Globo de Ouro contra a misoginia e o racismo. Embora Oprah já tenha descartado a possibilidade de se candidatar a um cargo político no passado, seu companheiro de longa data, Stedman Graham, disse esses dias ao jornal Los Angeles Times que “ela se candidataria com certeza”. Segundo a CNN, Oprah estaria “pensando seriamente” em se candidatar à presidência dos Estados Unidos.
Será que quem compartilha a hashtag #Oprah2020 está mesmo falando sério? As pessoas realmente acham que a ex-apresentadora de programa de auditório e magnata da mídia é uma candidata viável ou adequada para enfrentar Donald Trump -– outra celebridade bilionária –- daqui a três anos? “Não sei se Oprah seria uma boa candidata ou presidente”, publicou no Twitter o ex-redator de discursos de Barack Obama, Jon Favreau. “Mas descartar a possibilidade só porque Trump é uma celebridade me parece besteira”, escreveu.
Será mesmo? Tenho idade suficiente para lembrar da época em que a esquerda americana valorizava coisas como experiência, qualificações e sensatez; que os democratas zombavam da possibilidade de Trump -– um ex-participante de reality show e empresário do ramo imobiliário que não sabia a diferença entre o Hamas e o Hezbollah –- se candidatar à presidência.
Durante a campanha, Trump foi descrito pelo ex-presidente Obama como um candidato “singularmente incompetente”, sem “conhecimentos básicos” e “lamentavelmente despreparado” para o mais alto cargo dos EUA. Sobre Hillary Clinton, o ex-presidente afirmou: “Nenhum homem ou mulher está mais capacitado para assumir a presidência dos Estados Unidos.”
Clinton também qualificou Trump de “totalmente despreparado”, e um editorial do New York Times intitulado “Por que Donald Trump não deve ser presidente” afirmava que o candidato republicano “não tinha nenhuma experiência em segurança nacional”. Três dias depois da eleição, o portal Vox publicou a seguinte manchete: “Donald Trump é o primeiro presidente dos EUA sem nenhuma experiência política ou militar.”
Querido Partido Democrata, querida esquerda, querem saber de uma coisa? Oprah Winfrey seria a segunda. Será que é isso mesmo que os americanos querem? É isso mesmo de que o país precisa? De mais uma celebridade desinformada de posse dos códigos de lançamento de nossas ogivas nucleares? De mais uma magnata que não gosta de pagar impostos administrando a economia? Não seria muita hipocrisia por parte dos democratas apresentar uma candidata despreparada e inexperiente para as eleições de 2020 depois de tudo o que disseram sobre Trump em 2016?
É verdade que Oprah não é nenhuma narcisista doentia ou racista. Ela não tem ligação com o movimento nacionalista branco, não é acusada de conluio com uma potência estrangeira e nunca foi flagrada admitindo ter cometido assédio sexual. Oprah seria uma chefe de Estado infinitamente superior, mais inteligente e mais estável do que Trump em todos os sentidos. Mas, convenhamos, não é difícil ser superior a Trump.
Concordo com Christina Wilkie, da CNBC, uma rara voz dissidente, que publicou no Twitter: “Adoro ver a Oprah dizendo coisas inspiradoras na TV. Mas também adoro ver pessoas com experiência política sendo eleitas para a presidência.”
“E quanto a Ronald Reagan, que foi ator de Hollywood?”, diriam os defensores de Oprah. A diferença é que Reagan já havia governado a Califórnia duas vezes antes de se candidatar à presidência. Obama, que também foi acusado de ser um peso-leve na política, era senador, ex-professor de Direito Constitucional e autor de dois livros influentes sobre a política americana. Até o ignorante George W. Bush já havia vencido duas eleições para governador do Texas antes de se lançar à Casa Branca no ano 2000.
Antes de Trump, os únicos presidentes que nunca haviam exercido cargos públicos antes de eleitos foram Zachary Taylor, Ulysses S. Grant e Dwight Eisenhower. O primeiro venceu a Guerra entre Estados Unidos e México em meados do século XIX; o segundo, a Guerra Civil; o terceiro, a Segunda Guerra Mundial.
Será que Oprah tem algo comparável no currículo? Será que se emocionar na TV e distribuir carros de presente –- duas coisas que certamente devem ter ajudado a construir seu império midiático -– podem substituir a experiência política ou militar? O nível da nossa cultura política está mesmo tão baixo assim?
Estou sendo elitista? Talvez. Mas qual é o problema em querer pessoas com inteligência, experiência e qualificações para cargos importantes? Como disse outra celebridade de esquerda, Jon Stewart: “Eu não quero apenas um presidente de elite. Quero alguém que seja escandalosamente superior a mim, alguém que fale 16 idiomas e durma duas horas por dia de cabeça para baixo em um aposento que ele mesmo projetou.”
Os defensores de Oprah poderiam argumentar que ela estaria cercada de pessoas inteligentes. Mas esse também não é o argumento dos partidários de Trump? Queremos um presidente que delega decisões importantes a generais não eleitos e ao Goldman Sachs? Além do mais, vocês acham mesmo que uma apresentadora de TV que promoveu a carreira de charlatães como Dr. Phil e Dr. Oz e deu palanque às loucuras pseudocientíficas das atrizes Jenny McCarthy e Suzanne Somers seria capaz de montar um gabinete comparável à “Equipe de Rivais” de Abraham Lincoln, uma espécie de Liga da Justiça política e econômica? Acordem.
Quero deixar claro que não estou dizendo que Oprah não pode ou não será presidente. As previsões são para os tolos, e Trump já demonstrou que tudo é possível.
Os partidários de Oprah podem citar – e com razão – o histórico dela no combate ao racismo e à misoginia, além de sua trajetória e oratória inspiradoras. Sua bagagem sobre o Iraque é melhor do que a de Clinton, e ela chegou até a fazer um programa com Michael Moore sobre acesso universal à saúde. Além disso, Trump (herói para os supremacistas brancos e neonazistas) ser substituído por uma mulher negra e forte pareceria até um ato de justiça divina.
Já os detratores de Oprah poderiam dizer, não sem razão, que a apresentadora acoberta a atuação de grandes multinacionais, e que é “um dos mais influentes pensadores do capitalismo neoliberal”. Poderiam questionar: “Qual é a posição de Oprah sobre os ataques com drones no Paquistão? E sobre a intervenção saudita no Iêmen? Sobre o limite à emissão de gases do efeito estufa? Sobre o sistema de saúde pública unificado? Sobre a reforma tributária? Ela tem um plano para a paz no Oriente Médio? Será que uma pessoa que manifestou surpresa com o fato de os indianos “ainda comerem com as mãos” poderia aplacar uma crise nuclear naquela região do mundo?
Mas é preciso ir além dos prós e contras de uma possível presidência de Oprah (não acredito que acabo de escrever essas palavras!) e considerar algumas questões mais abrangentes: até que ponto a cultura da celebridade está prejudicando a política americana? Por que as ideologias –- ou mesmo as meras ideias -– já não parecem importantes? Por que o campo progressista não defende as virtudes do governo e da ação coletiva e, portanto, a importância de eleger pessoas competentes, experientes e capacitadas para os postos mais altos? Não deveríamos estar protestando, dizendo que estrelas de TV bilionárias não estão capacitadas para o cargo mais poderoso do planeta, sejam elas um homem laranja chamado Trump ou uma mulher negra chamada Oprah?
Alguns especialistas já disseram que o Partido Democrata não poderá vencer as eleições de 2020 sem a candidatura de uma celebridade como Oprah. O neoconservador John Podhoretz escreveu, em um artigo no New York Times, em setembro de 2017: “Se é preciso um ladrão para pegar um ladrão, então é preciso uma estrela –- uma enorme, grandiosa e destemida estrela –- para derrotar um astro.” A coluna foi compartilhada pela própria Oprah no Twitter.
Mas isso não é verdade. Em agosto de 2017, segundo uma pesquisa da Public Policy Polling, Trump estava 15 pontos percentuais atrás de Joe Biden, 14 atrás de Bernie Sanders, 7 atrás de Elizabeth Warren, 5 atrás de Cory Booker e 1 ponto atrás de Kamala Harris em um potencial confronto eleitoral em 2020. No mês passado, uma pesquisa da NBC/Wall Street Journal revelou que Trump perderia para “um candidato democrata genérico” por esmagadores 16 pontos percentuais.
Se cinco senadores e um “democrata genérico” podem derrotar esse presidente republicano, por que tanto alvoroço em torno de uma apresentadora de TV? E por que só a Oprah? Por que não Mark Zuckerberg? Ou Mark Cuban? Dwayne “The Rock” Johnson? Ou então Kanye? Aonde essa lista vai parar? Céus, qual é o limite?
A resposta da esquerda à ascensão de Trump não pode ser uma versão maior e melhorada de Trump. Como escreveu a colunista Emily Arrowood, em maio de 2016, “Trump não estaria capacitado para presidência nem se fosse o Mr. Simpatia, um baluarte do povo com as aspirações de um Jimmy Stewart no filme A Mulher Faz o Homem”.
Por ironia, Oprah até pode ser a própria Miss Simpatia. Mas nem por isso ela está mais capacitada do que Trump para assumir a presidência. Caiam na real.
Tradução: Bernardo Tonasse
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