Decisões polêmicas da Justiça Federal do Distrito Federal abriram, no ano passado, o caminho para liberar terapias de reversão sexual, mais conhecidas como “cura gay”. Agora, The Intercept Brasil foi atrás de uma das principais entidades que defendem esse tipo de tratamento: a Associação Brasileira dos Psicólogos em Ação (Abrapsia), presidida pela assessora parlamentar Rozangela Justino. E não, não encontramos a cura.
De acordo com o site da Receita Federal, a entidade foi criada em 17 de janeiro do ano passado, com sede no mezanino da Rodoviária de Brasília, número 3576. Fomos até lá na segunda-feira, 8 de janeiro. Perguntamos a funcionários de restaurantes, donos de lojas, atendentes de farmácia, e nada. Por fim, a assessoria de imprensa do DFtrans, autarquia que administra a rodoviária, afirmou em nota que não existia ali “nenhum estabelecimento com o nome Abrapsia”.
Seguimos na busca. Na terça-feira (9), foi desvendado o mistério. A sigla “CXPST”, que constava como complemento do endereço no registro da Receita Federal, significava “caixa postal” — no caso, a da agência dos Correios localizada dentro da Rodoviária –, de número 3576. Eis a sede da associação.
Desde a semana passada, tentamos insistentemente contato com Rozangela Justino e com o advogado Leonardo Loiola Cavalcanti, ligado à Abrapsia, sem retorno. Entramos então em contato com a Receita Federal para saber se seria legal abrir uma associação com sede em uma caixa postal. O órgão afirmou que iria pedir “averiguações adicionais” ao governo do Distrito Federal, que, por sua vez, disse que associações privadas não têm obrigação de se inscrever em estados e municípios.
Por fim, a Receita alegou ainda que caberia ao Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas ter verificado se haveria algum problema nesse tipo de procedimento. Ligamos para o cartório de Brasília para perguntar se seria possível conseguir um CNPJ para uma entidade com sede em uma caixa postal. A resposta foi negativa.
Como está o caso na Justiça?
A polêmica em torno do tratamento de reversão sexual começou em setembro do ano passado, após o juiz federal da 14ª Vara do Distrito Federal Waldemar Cláudio de Carvalho conceder em caráter liminar a autorização para que psicólogos ofereçam terapia de reversão sexual, mesmo que esse tipo de tratamento seja proibido pela resolução 01/1999 do Conselho Federal de Psicologia (CFP).
O CFP rebateu a decisão liminar de Waldemar de Carvalho. Destacou em nota que a comunidade internacional, apoiada em entendimento da Organização Mundial da Saúde (OMS), não considera a homossexualidade como patologia.
A ação junto à 14a Vara partiu justamente da psicóloga de Brasília, Rozangela Justino, presidente da Abrapsia, que se define como “cristã e com direito constitucional de ser psicóloga”. Em 2009, o CFP já havia punido Rozangela com uma censura pública após ter sido identificado que ela oferecia terapia para “curar” a homossexualidade masculina e feminina.
Reportagem de The Intercept Brasil revelou, no ano passado, que, além de especialista em “cura gay”, Rozangela é lotada no gabinete do deputado Sóstenes Calvacante (DEM/RJ). O parlamentar, que está em seu primeiro mandato em Brasília, é apadrinhado pelo líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, pastor Silas Malafaia.
Em dezembro, nova sentença
Em dezembro, foi publicada a sentença do juiz Waldemar de Carvalho mantendo os termos autorizativos para tratamento de reversão sexual. No entanto, ele incluiu que psicólogos continuariam proibidos de fazer “propaganda ou divulgação de supostos tratamentos, com intuitos publicitários, respeitando sempre a dignidade daqueles assistidos”.
A sentença prevê ainda que pessoas com “orientação sexual egodistônica” – ou seja, que desaprovam a própria homossexualidade, enxergando-a como fonte de sofrimento e angústia – possam receber atendimento para reverter a própria orientação sexual em consultórios, e que profissionais possam promover estudos sobre o tema.
Para Sandra Sposito, doutora em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista de Assis (UNESP) e conselheira do CFP, o juiz Waldemar de Carvalho cometeu um erro grave ao apontar a homossexualidade egodistônica como passível de tratamento de reversão sexual. “Infelizmente os egodistônicos são interpretados como decorrência da homossexualidade, quando na verdade é decorrente do preconceito. Esta é a grande falácia que está na sentença. É essencial buscar entender a egodistonia como reflexo do sofrimento opressor diário que o homossexual vive, e não em virtude da sua condição sexual”, explicou.
Em nota, o CFP qualificou a sentença de “equivocada” e reafirmou que a Resolução 01/99, em nenhum momento da sua história, impediu ou restringiu o atendimento psicológico a pessoas de qualquer orientação sexual. Por sua vez, impõe o limite ético e proíbe atendimentos voltados a práticas relacionadas à reorientação sexual e à violação da dignidade das pessoas.
O CFP confirmou à reportagem que irá recorrer da decisão do juiz Waldemar de Carvalho.
Associação promove eventos
Apesar de ter sua sede em uma caixa postal, a Abrapsia vem promovendo seminários para discutir temas como família e sexualidade e a “defesa da profissão” de psicólogo. Um dos eventos, ocorrido em Curitiba em setembro de 2017, teve na pauta temas como “Hipersexualização e Desamor entre Adolescentes no Século XXI”, “A Agenda e Políticas de Gênero – ‘Os Direitos Sexuais de Crianças”; “Atração pelo Mesmo Sexo: Identidade, Parafilia, Perversão, Imaturidade no Desenvolvimento, Doença ou Opção?”, entre outros. A inscrição variava de R$ 180 a R$ 280.
Em seu Facebook, Rozangela Justino costuma compartilhar posts contra o aborto, hinos da harpa cristã e elogios ao deputado Jair Bolsonaro. Em um vídeo no Youtube, Justino se define como “cristã e com direito constitucional de ser psicóloga” e explica que está “trabalhando dentro de uma assessoria técnica, dentro do Congresso Nacional, em defesa da vida e da família”.
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