O sistema político brasileiro é amoral, e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se utilizou dele para implementar políticas sociais “que mudaram os padrões de desigualdade no Brasil”, disse o ex-governador gaúcho, ex-prefeito de Porto Alegre e ex-ministro Tarso Genro, nome histórico do Partido dos Trabalhadores. “Isso é muito diferente de cometer crime, e é colocar dentro dessa amoralidade um objetivo social que é nobre. Foi o que Lula fez”.
Genro recebeu The Intercept Brasil no fim da tarde da última terça em seu escritório de advocacia, dentro de um novo e elegante conjunto comercial na avenida Praia de Belas, a poucas quadras do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. O TRF4 julga nesta quarta a apelação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva à sentença de nove anos e meio de prisão imposta pelo juiz federal Sergio Moro.
“Existe, nitidamente, a partir de Curitiba, uma intenção de retirá-lo da campanha eleitoral, de retirar sua possibilidade de ser candidato a presidente”
Para Genro, “não há provas” em nenhum dos processos movidos contra Lula, “mas existe, nitidamente, a partir de Curitiba, uma intenção de retirá-lo da campanha eleitoral, de retirar sua possibilidade de ser candidato a presidente”. O ex-governador já defendeu que Lula não concorresse nas eleições deste ano, mas mudou de ideia. “Não é que o PT é refém do Lula; o Lula é o condutor político do PT. A figura dele é muito superior ao prestígio do próprio partido”, opinou.
Aos 70 anos de idade, Tarso disse que “não será candidato a coisa alguma em 2018”, e exortou a esquerda a compreender a nova dinâmica econômica para manter a relevância política. “A visão tradicional do partido sindical, do operário assalariado, está sofrendo um desgaste muito grande, porque a estrutura de classes está mudando”, disse. “Se o partido não pensar em uma forma de colocar esses novos interesses no cenário político, dificilmente vai se manter como um partido representativo.”
Leia os principais trechos da conversa.
THE INTERCEPT BRASIL Nesta quarta, o TRF4 julga recurso do ex-presidente no processo do tríplex. Lula também responde a outros processos, acusado de ser favorecido por empreiteiras no sítio de Atibaia, no terreno para o Instituto Lula, no apartamento vizinho ao dele em São Bernardo do Campo. Dá para dizer que ele é totalmente inocente na relação com as empreiteiras?
TARSO GENRO Podemos falar sobre essas questões em dois níveis. Um deles é o relacionamento tradicional que os governantes têm no Brasil com as empresas que financiam suas campanhas. Isso é uma crítica política que se pode fazer a qualquer governante. Outra coisa é crime; até agora, em nenhum processo foi provado qualquer crime que Lula tenha cometido. Tanto é verdade que as acusações mais sérias que são feitas contra ele estão relacionadas à arrecadação de dinheiro para o Instituto Lula, coisa que ele apenas deu prosseguimento [ao que já havia sido feito pelo] Instituto Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, e que não teve a mesma atenção da Polícia [Federal] ou do Ministério Público [Federal]. Ao que me consta, nenhum processo tem qualquer prova, qualquer gravação, mala de dinheiro, conta no exterior, pedido de propina pelo presidente. Para mim, ele é, sim, inocente.
“O sistema político é amoral. Para qualquer presidente. Se um presidente quer governar, tem que governar dentro desse padrão.”
TIB Não é algo que não se esperava de Lula, do PT — um relacionamento que, se não é criminoso, não é exatamente moral com as grandes empreiteiras?
Genro O sistema político, que dá governabilidade no Brasil, é amoral. Para qualquer presidente. Se um presidente quer governar, tem que governar dentro desse padrão. O que significa amoralidade? Significa utilizar determinados meios tradicionais na política que relacionam o presidente com as oligarquias regionais para ele poder ter estabilidade para governar. Isso qualquer presidente fez. A diferença da presidência de Lula com relação aos demais é que ele utilizou esse mesmo sistema político, vigente até hoje, para implementar determinadas políticas sociais que mudaram os padrões de desigualdade no Brasil. Isso é muito diferente de cometer crime, e é colocar dentro dessa amoralidade um objetivo social que é nobre. Foi o que Lula fez.
TIB O senhor disse à rádio Gaúcha, tempos atrás, que achava que Lula não deveria ser candidato em 2018. Agora, o senhor defende o contrário. O que mudou?
Genro Não me lembro de ter dito isso. [Neste momento, um assessor lembra a Genro o que ele falou sobre renovação da esquerda, antes da eclosão da Lava Jato.] Eu deveria estar num momento de pouca lucidez (risos). Mas era um momento em que Lula era quase uma unanimidade política no país, ele dizia que não seria candidato, e eu achava que ele tinha razão, não deveria ser candidato, mas apontar um candidato. Mas, agora, ele tem que ser candidato porque tem o direito de pedir a recuperação da sua imagem, da sua vida política, da sua capacidade de gestão do Estado, a partir da soberania popular. Lula foi colocado como um alvo da destruição do campo político da esquerda. Isso o levou a uma situação de constrangimento, de pressão, que não lhe deu outra saída. Tanto que ele mesmo disse: “Não continuem me acuando que eu daí vou ser candidato e ganhar a eleição”.
“Acho que a candidatura do Lula tem que ser encaminhada até as portas do Supremo Tribunal Federal.”
TIB Não há espaço para ele buscar isso no sistema Judiciário?
Genro Atualmente não, porque uma parte do sistema da Justiça está encaminhando um processo de perseguição contra o presidente, com o objetivo claro de não permitir que ele seja candidato. Isso não é toda a Justiça, nem todos os juízes ou ministros [dos tribunais superiores].
TIB A quem o senhor se refere?
Genro Existe nitidamente, a partir de Curitiba, uma intenção de retirá-lo da campanha eleitoral, de retirar sua possibilidade de ser candidato a presidente.
TIB Se nesta quarta-feira o TRF4 confirmar a sentença do juiz Sergio Moro, por unanimidade, o PT deveria buscar um plano B, como já sugeriu Olívio Dutra?
Genro Não, acho que a candidatura do Lula tem que ser encaminhada até as portas do Supremo Tribunal Federal. Porque quem tem que tomar essa decisão é o juízo que, em última análise, é o da Constituição. Lula tem que chegar até o Supremo para tentar afirmar sua candidatura. Tem que disputar dentro do estado de direito, enquanto ele permitir que haja recursos. Não é conveniente, hoje, falar em plano B. Não tem nenhuma figura da oposição que tenha metade do prestígio do Lula.
Não é que o PT é refém do Lula; o Lula é que é o condutor político do PT.
TIB Isso não coloca o PT como refém do Lula?
Genro Não se trata de ser refém; a maioria da população que hoje apoia a candidatura de Lula tem uma memória a respeito [dos governos dele]. Isso ocorre com todas as grandes lideranças. Não é que o PT é refém do Lula; o Lula é que é o condutor político do PT. A figura dele é muito superior ao prestígio do próprio partido.
TIB O senhor colocaria seu nome à disposição do PT?
Genro Não sou candidato, porque o candidato [do PT] não seria do Rio Grande do Sul, mas de São Paulo, que é o centro político mais importante, e onde o PT sofre seus maiores padecimentos. E eu não teria maioria no partido para isso. Sou vinculado a correntes minoritárias do PT.
TIB O senhor acha que o PT deve à sociedade um mea culpa, um pedido de desculpas por seus erros?
Genro O partido tem que fazer uma discussão sobre o que ocorreu. Mas nas circunstâncias atuais, de cerco brutal contra o PT, contra Lula, suprimem essa possibilidade, geram um espírito de corpo dentro do partido. Esse exame dessas circunstâncias deveria ter sido feito já há muito tempo. Mas agora, nesse momento de tentativa de eliminação do PT do mapa político do país, acho que tem que esperar.
TIB Isso não isola o partido perante a opinião pública? Parece ser difícil encontrar, fora do eleitorado petista quem acredite no que diz o partido.
Genro A preferência do PT voltou a 20% do eleitorado, e os votos do Lula vão a 40%, dependendo da pesquisa. Uma coisa é o que se dá na esfera do debate político, e como as ideias se conformam na sociedade. O PT, num momento com esse, fazer mea culpa, abrir uma luta interna para se justificar perante a sociedade, uma mídia oligopólica que quer extinguir o partido, seria suicídio político, que nenhum dirigente de nenhum partido faria.
TIB Qual o caminho para a renovação do partido, a médio e longo prazos? Quais podem ser os próximos nomes do partido?
Genro Há vários, mas não gostaria de citar. Acho que a renovação política do PT não será feita de maneira isolada. O PT tem que ser um renovador da esquerda, e portanto tem que se relacionar com outras forças políticas da esquerda, partidárias ou não, para equacionar uma saída para um novo projeto de esquerda. Falar em renovar apenas o PT levaria o partido a uma posição hegemonista incompatível com a visão de esquerda plural que é a que eu sustento.
TIB Em sua opinião, quais os grandes temas que o PT deveria abordar? A luta de classes, a briga com a mídia, essas coisas ainda fazem sentido?
Genro A extinção das classes sociais tais quais foram dispostas no capitalismo industrial não significa a extinção das classes. O que se chama de elite dominante hoje se concentra no poder do capital financeiro sobre o conjunto do capital. Já no mundo do trabalho, há uma fragmentação muito grande, que recusa a ideia de só ter um sujeito político. Tem que ter diversos sujeitos para representar essa fragmentação, como os movimentos culturais, das mulheres, dos trabalhadores não-sindicalizados, terceirizados, excluídos, autônomos. Se o partido não pensar em uma forma de colocar esses novos interesses no cenário político, dificilmente vai se manter como um partido representativo.
Mas agora temos uma questão nova, empresas anunciando lojas sem empregados. Isso determina um novo mundo do trabalho, e é isso que a esquerda tem que compreender.
TIB A esquerda tem conseguido isso?
Genro Há esforços exemplares sendo feitos aqui, em outros lugares. Por exemplo: na Espanha, o Podemos conseguiu falar pela gente, como eles dizem, pelos cidadãos, conseguiu condensar um programa mas agora está tendo problemas com a crise da Catalunha. Acho que repensar a representação que ao mesmo tempo é fracionada e unitária, pelas condições de vida difíceis, é algo que a esquerda vai ter que resolver. A visão tradicional do partido sindical, do operário assalariado, está sofrendo um desgaste muito grande, porque a estrutura de classes está mudando. A questão dos autônomos, por exemplo, tem cada vez mais força: são patrões de si mesmo, que vivem num mundo de relações horizontais para sobreviver e que têm escassas condições de vida, diferente de um operário do ABC Paulista. Esse mundo novo exige uma reflexão da esquerda.
TIB Estamos vivendo um momento em que a classe média pende mais à esquerda que as pessoas mais pobres?
Genro Depende. Os artesãos da Idade Média começaram a se colocar como trabalhadores à medida que foram contratados por pessoas que tinham uma massa de capital para organizar novas formas de exploração do trabalho. Antes disso, eram patrões de si mesmo. O que está ocorrendo agora com o fracionamento da classe trabalhadora é o surgimento de novos sujeitos individuais. E a primeira ambição desse sujeito é se tornar um empresário. Isso não é estranho à história da classe trabalhadora. Mas agora temos uma questão nova, com a Amazon anunciando uma loja sem empregados, por exemplo. Isso aí determina um novo mundo do trabalho, e é isso que a esquerda tem que compreender. Muitos setores estão compreendendo isso. Marcio Pochmann, no PT, discute isso há muito tempo. Mas é um processo lento.
TIB Dá para dizer que Lula é o último líder trabalhista do Brasil surgido num sindicato de grandes bases de trabalhadores?
Genro Depende de como vai evoluir o capitalismo. Tem uma dualidade no sistema. Ainda temos massas enormes de trabalhadores assalariados em várias atividades, e ao lado disso surge esse novo mundo que coloca autonomia como valor fundamental, que tem o controle do trabalho pelo resultado, não pela subordinação direta. Tem um período de transição, para ver qual mundo vai vencer. Atualmente, a resposta para isso é o desemprego, com grandes massas de trabalhadores desempregados, na marginalidade, em função desse conflito entre atraso e modernização presente na economia brasileira.
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