A política fracassada que ficou conhecida como “guerra às drogas” voltou com tudo no governo Trump, em grande parte graças ao retrógrado secretário de Justiça dos EUA, Jeff Sessions, que considera as drogas como um mero caso de polícia. Não é difícil entender por que alguém com o histórico de racismo de Sessions adora a guerra às drogas. Na verdade, essa sempre foi uma guerra contra um grupo específico de pessoas – acho que vocês sabem bem qual. Apesar disso e dos esforços do secretário, houve um grande progresso em direção à legalização da maconha nos EUA. A opinião pública está mudando, e, em muitos lugares, as leis também.
Na encruzilhada entre os avanços da legalização e a tal guerra às drogas, vemos ainda uma série de casos escandalosos devastando comunidades não brancas dos EUA. E o interessante nisso tudo é que eles não são simplesmente culpa do presidente Trump e sua equipe. Não, esses escândalos estão intimamente ligados a uma espécie de antinegritude presente em ambos os lados do espectro político.
Antes de mais nada, o contexto: oito estados americanos e o distrito federal de Washington legalizaram a maconha para uso recreativo. Outros 14 estados descriminalizaram o uso recreativo, o que significa que a compra ainda é ilegal, mas, se você for pego com uma pequena quantidade da droga, poderá, no máximo, ser multado. Vinte e nove estados já legalizaram a maconha para uso terapêutico.
Tantos casos de legalização e descriminalização me deram a impressão errada: eu achava que estávamos acabando com a guerra às drogas. Mas as prisões por posse de maconha ainda acontecem – inclusive nos estados que a legalizaram ou descriminalizaram. Como isso é possível?
Em 2016, houve mais prisões por porte de pequenas quantidades de maconha nos EUA do que por todos os crimes violentos somados.
Em 2016, houve mais prisões por porte de pequenas quantidades de maconha nos EUA do que por todos os crimes violentos somados. Mais de uma pessoa é presa por minuto por porte de maconha no país. Nada menos do que 574.641 pessoas foram detidas com pequenas quantidades de maconha para uso pessoal nos EUA em 2016, o que representa 89% de todas as prisões relativas à droga no país. Essas pessoas não são os aviõezinhos, distribuidores ou chefões do tráfico; são pessoas comuns que foram pegas com um pouco de droga.
Essas prisões não são nenhuma novidade. De 2000 a 2010, nada menos do que 7,26 milhões de pessoas foram presas nos EUA por posse de pequenas quantidades de maconha. Quantas vidas foram arruinadas? Quantas pessoas perderam o emprego e o direito de voto? Quantas delas perderam o financiamento de seus estudos universitários? Quantas foram para a cadeia? Quantas mães ou pais de família foram arrancados de seus lares?
Uma coisa é certa: essas pessoas eram negras. Apesar de inúmeros estudos mostrarem que o uso de maconha entre negros e brancos nos EUA é praticamente o mesmo, os negros têm 375% mais chance de serem presos por isso. Aliás, se o número de negros presos fosse igual ao de brancos, a população carcerária dos EUA despencaria 40%.
Será que alguém realmente acredita que essa disparidade é acidental? Não é, e é por isso que ela está presente em todos os estados dos EUA. A justiça criminal americana, com sua aplicação seletiva baseada na cor da pele, está intimamente ligada ao racismo e a uma supremacia branca sistêmica. Graças ao livro “A Nova Segregação: Racismo e Encarceramento em Massa”, de Michelle Alexander, e ao filme “A 13ª Emenda,” de Ava Duvernay, essa verdade nunca foi tão bem aceita pela sociedade quanto agora, mas o escândalo persiste. E não está restrito a um só lado do espectro político.
Vejamos o exemplo de Nova York, onde moro. Os governantes da cidade se gabam da descriminalização da maconha, mas 18.136 pessoas foram presas por porte da droga para uso pessoal em 2016 – um aumento de 9% em relação ao ano anterior. Em uma entrevista de 2016, o prefeito Bill De Blasio disse: “As prisões por posse de pequenas quantidades de maconha acabaram.” Mas isso simplesmente não é verdade: de todas as prisões realizadas em Nova York, 96% foram por esse motivo. Mais de 50 pessoas ainda são presas por dia na cidade.
A maior parte dessas pessoas vem de comunidades não brancas, é claro. Os números de 2017 acabam de ser publicados, e pouca coisa mudou – houve uma queda de 1% no número de prisões –, o que decepcionou muitos advogados que haviam acreditado no prefeito.
Os democratas dominam a política nova-iorquina. Além do prefeito, 47 dos 51 membros da câmara municipal são do Partido Democrata. Nova York não pode culpar Jeff Sessions ou Donald Trump pelas 50 prisões por dia.
Nova York não pode culpar Jeff Sessions ou Donald Trump pelas 50 prisões por dia por porte de pequenas quantidades de maconha.
Esse também é o caso de muitas outras grandes cidades americanas – governadas há décadas por democratas –, onde a maior parte dessas prisões acontece.
Tal discrepância também faz parte da realidade dos estados que legalizaram o uso recreativo da maconha. Por enquanto, a legalização tem livrado da prisão apenas os brancos. No Colorado, o número de prisões de brancos despencou, mas o de negros e hispânicos disparou 50%. Fica a pergunta: para quem foi legalizada a maconha no Colorado?
O que está em jogo também é uma questão de justiça econômica. Milhões de americanos negros foram presos por posse e distribuição de maconha; centenas de milhares deles continuam presos. Enquanto essas pessoas sofrem as consequências da política proibicionista, o negócio da maconha legal prospera. Na Califórnia, a indústria da maconha vale cerca de 7 bilhões de dólares, um número que só deve crescer daqui por diante.
E quem são os donos dessas empresas? A resposta é fácil: a indústria da maconha é dominada pelos brancos. Dia desses, enquanto folheava uma revista dedicada exclusivamente ao setor, percebi que não havia sequer um rosto negro ou hispânico em toda a publicação.
Excluir os negros da indústria legal da maconha – justamente aqueles que mais sofreram com a proibição – é o exemplo perfeito de privilégio branco.
Já vimos esse tipo de exploração outras vezes. Os EUA comemoram – e com razão – a entrada de Jackie Robinson na Major League Baseball, a liga de beisebol americana. Mas a integração dos negros aconteceu apenas no plantel, e não na gerência das equipes. Além disso, a integração causou o desaparecimento da Liga Negra e de todos os seus times. Hoje em dia, nenhum time de beisebol tem um dono negro. No basquete, é a mesma coisa — até o Harlem Globetrotters pertence a um branco.
A situação atual é uma espécie de apartheid da maconha. Na prática, temos uma política de segregação, que funciona de uma forma para os americanos brancos e de outra totalmente diferente – leia-se punitiva e hostil – para os negros. Isso é injusto, é claro, mas nada mais americano. Foram-se aqueles anos dourados de cooperação bipartidária na reforma do sistema de justiça criminal dos EUA; agora, o Partido Democrata tem que assumir sozinho as rédeas da questão. Mas, a julgar pelo fato de o senador Cory Booker só ter conseguido o apoio de um outro parlamentar para seu projeto de lei sobre o tema, parece que os democratas, para variar, não têm um plano para isso.
Tradução: Bernardo Tonasse.
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