Quando falamos sobre a política de imigração de Donald Trump, falamos que é racista, que é cruel, que é autoritária. É, é, é. Mas não é só isso. Os republicanos podem parecer burros, mas na prática são extremamente disciplinados e estratégicos.
Na noite da posse do então presidente Barack Obama, em 2009, um grupo da elite do Partido Republicano jantou numa sala privativa numa das churrascarias mais caras de Washington D.C. e definiu um plano: tudo que o presidente apoia, a gente rejeita, independentemente do que seja. E foi exatamente o que eles fizeram. O resultado? Ganharam o Congresso em 2010 e ganharam a Presidência em 2016. Funcionou bem.
Quero dizer que este não é um grupo de pessoas que gastariam tanta energia e capital político apenas por causa de um ódio irracional contra latinos, árabes e todos os outros “não brancos” — eles só se importam mesmo com poder e dinheiro.
Uma razão para alvejar imigrantes no discurso público é óbvia: uma grande parte da base republicana é, sim, racista, e se anima com essa retórica. Mas vale lembrar que o eleitor de Trump não é um pobre, ignorante e desempregado que trabalhava numa fábrica velha como foi retratado grosseiramente na mídia — ele é mais rico do que a média do país e com um nível educacional igual a média nacional.
Essas pessoas têm dinheiro (e pequenas empresas) e precisam de imigrantes para fazer todo o trabalho duro e mal-pago, aumentar seu lucro e também baixar seu custo de vida. Há 25 milhões de imigrantes que trabalham nos EUA e muitos deles nas áreas de construção, manutenção, restaurantes, serviços pessoais, serviços administrativos, vendas e agricultura. Nas fazendas americanas, é estimado que 70% dos trabalhadores são imigrantes, e metade ilegais.
O valor econômico dos imigrantes e sua decência humana são elementos-chave do discurso democrata a favor da imigração. Trump diz que ele roubam empregos de americanos nativos, e os democratas dizem que na verdade eles movimentam a economia; Trump diz que eles são perigosos, e os democratas mostram que isso é apenas desculpa para enfiá-los atrás das grades. Em boa parte, o ponto é: o discurso anti-imigração dos republicanos é apenas uma cortina de fumaça. Para seus líderes, imigrantes não só são uma ameaça porque preguiçosos, criminosos, terroristas ou qualquer outro rótulo racista que está sendo usado contra eles. É porque eles votam em democratas.
(Agora, vale notar que Obama deportou mais imigrantes do que todos os presidentes do século XX juntos. Isto, 1) porque ele sucumbiu à pressão republicana, 2) sabemos que democratas são péssimos em estratégia, negociação e a defesa de princípios e 3) eles sempre preferem ganhar votos no centro em vez de expandir sua base, e sabem que quem se importa com os direitos dos imigrantes não tem outra opção política mesmo.)
Voltando.
Numa excelente entrevista no podcast Intercepted nesta semana, o grande jornalista Juan Gonzalez explica que a eventual nova legislação sobre imigração “realmente vai definir a composição da sociedade americana. Todo mundo que está envolvido nas negociações sabe disso. As implicações em termos de quem será eleito em 10 ou 15 anos são grandes.”
Dar cidadania a milhões de pessoas que se sentem forasteiras e que sofreram muita discriminação significa dizer que essas pessoas (e seus filhos) não votarão no partido do empresariado, que é quase exclusivamente branco e abertamente racista. Ou seja: mesmo que apertar imigrantes contra a parede possa afetar o lucro de muitas empresas no curto prazo, é uma estratégia para manter poder no longo prazo (ou pelo empurrar o inevitável um pouco mais para frente).
Entre 18 e 27% de asiáticos e 28% de latinos votaram em Trump em 2016 enquanto 65-79% de asiáticos e 65% de latinos votaram em Hillary Clinton.
Os republicanos sabem como estancar a sangria da perda de votos para o seu partido. No passado, ele já implementam, com muito sucesso, várias estratégias para suprimir o voto dos negros. Criminalizam seu grupo e os bairros onde vivem e, ao mesmo tempo, tiram o direito de voto de pessoas que um dia foram condenadas em alguma infração penal, mesmo anos depois de pagarem suas penas. A taxa de encarceramento de negros é 5 vezes maior do que a de brancos.
Republicanos também se organizam para tomar conta de distritos eleitorais específicos com o objetivo de diminuir o número de cadeiras no congresso que negros e latinos possam ocupar, e então, terem poder de decisão. Eles também apagam milhões de pessoas das listas de eleitores elegíveis por qualquer desculpa técnica; aumentam a dificuldade em se registrar por exigir cada vez burocracias; diminuem o número de urnas em bairros não-brancos; e marcam o dia de votação num dia útil sem dar feriado público, impedindo pessoas que trabalham em horários não flexíveis de votar.
O resultado é óbvio: apenas 8% de negros votaram em Trump e 88% escolheram Clinton.
A outra razão muito importante porque muitos americanos tratam tão mal os imigrantes é que meu país não entende – e não quer entender – sua própria história e seu papel no mundo.
Apesar de não terem tido relações formais de colonização com os países da América Latina – diferentemente dos europeus – os EUA construíram relações coloniais à base de uma injeção de capitalismo na região. Isso diretamente e indiretamente desestabilizou e desestabiliza os países – sacaneia e destrói para saquear suas riquezas e forçar as relações comerciais a passar por Washington.
E não se esqueça de tudo o que o país fez para destruir Iraque, Afeganistão, Iêmen, Síria, Líbia, Palestina. Depois de jogar tanta merda no ventilador, você espera o que? Que ela volte direto para sua cara.
Isso tudo e mais é o que o Juan Gonzalez conta para o Jeremy Scahill no podcast. Para quem entende inglês, recomendo muito ouvir a conversa com na íntegra e também seguir o podcast Intercepted (um novo episódio por semana).
Confira abaixo os melhores falas do Juan Gonzalez (editado para clareza e brevidade).
Assine o podcast Intercepted [em inglês] nas plataformas Apple Podcasts, Google Play, Stitcher, Radio Public, e outras.
Imigração é briga por votos, recursos e poder político
Os Estados Unidos não estão sozinhos na busca pela solução de problemas ligados à imigração descontrolada. França, Inglaterra, Alemanha, todos enfrentam o problema do afluxo de um grande contingente de pessoas para dentro de suas fronteiras.
Antes disso, havia todas as guerras na América Central, todas as intervenções dos Estados Unidos na América Latina que forçaram salvadorenhos, guatemaltecos e hondurenhos a emigrarem para o país nos anos 1980.
Então é preciso entender, em primeiro lugar, que os Estados Unidos não são os únicos com esse problema. Em segundo lugar, os Estados Unidos têm uma história particular de identificação como nação de imigrantes, e onde a imigração sempre – sempre — foi um grande campo de batalha política. Os que se estabeleceram há mais tempo sempre tentam pintar os que chegaram mais recentemente como parte do problema, sejam os irlandeses nos anos 1840 com o movimento”Know Nothing”; os chineses nos anos 1880, com a Lei de Exclusão de Chineses; os poloneses, judeus russos e italianos no final do século XIX e início do século XX. Mas o que hoje realmente torna a situação mais difícil é que não há apenas um componente cultural e étnico na migração, há também um componente racial.
Cada vez mais é preciso lidar com a realidade de que grande parte da migração para os EUA nos últimos 50 ou 60 anos veio da América Latina, e o restante, da Ásia e da África.
Em 2006, houve uma tentativa de aprovar uma ampla reforma imigratória nos EUA.
E por que está demorando tanto? Bem, porque a versão final da lei de imigração que for aprovada irá essencialmente definir quem pode estar de forma legítima nos EUA no século XXI. Isso define a composição da sociedade norte-americana. Todos os envolvidos nas negociações sabem disso. Há muita coisa em jogo em termos de quem poderá concorrer a cargos eletivos em 10 ou 15 anos, como os recursos do país serão divididos. No fundo, é uma questão de quem está no país de forma legítima.
Um novo modelo para a imigração elitizada
A tendência fascista que Trump representa quer reverter completamente a política imigratória. No lugar de “Dai-me os seus cansados, os seus pobres / As suas massas acorrentadas sequiosas por liberdade”, conforme o poema gravado na Estátua da Liberdade, dai-me as pessoas com a melhor educação, com mais dinheiro, que possam essencialmente comprar seu lugar nos Estados Unidos, seja como alunos de pós-graduação ou empregados do Vale do Silício.
A proposta agora é essa. Buscar as pessoas que receberam educação na Índia, na China ou no México, graças ao investimento dos governos desses países. Os cérebros fogem para os EUA, são cérebros comprados. E aqueles países investiram na educação dessas pessoas, mas não se beneficiaram dela.
O termo técnico para o que Trump chama de migração em cadeia é reunificação familiar. Eles querem acabar com a reunificação familiar, porque ela permite que migrantes da classe trabalhadora, que já estão no país de forma legal, possam trazer seus familiares. Eles querem trazer um tipo completamente diferente de migração. Suspeito que também queiram que essa migração seja cada vez mais branca.
O que vai acontecer com os trabalhadores da área de tecnologia? O que vai acontecer com a força de trabalho agrícola, que ainda é tão necessária, já que precisamos de trabalhadores para colher os alimentos que a população dos EUA vai comer? Em que condições essas outras categorias de migrantes vão conseguir entrar no país?
Ignoramos que a América Latina era colônia dos Estados Unidos
A tese básica do meu livro “A Colheita do Império” é que não é possível entender o enorme crescimento da população de latinos nos EUA entre a segunda metade do século XX e o começo do século XXI sem entender o papel dos EUA na América Latina entre o final do século XIX e o início do século XX. Aproximadamente 50 milhões de latinos vivem atualmente nos EUA, e isso é resultado direto do imperialismo norte-americano na América Latina.
E, mais uma vez, os Estados Unidos não são os únicos. Há tantos argelinos, tunisianos e marroquinos na França porque essas eram as colônias do Império Francês. O motivo para haver tantos indianos, paquistaneses e jamaicanos na Inglaterra é que essas foram as colônias do Império Britânico. O motivo para haver tantos turcos na Alemanha é que a Alemanha chegou tarde no jogo de poder imperialista, e depois da Primeira Guerra Mundial essencialmente absorveu o Império Otomano e começou a se expandir pela Turquia e outros lugares do Oriente Médio.
No fundo, o que aconteceu na Segunda Guerra Mundial foi um momento seminal no mundo colonial, porque todas as potências envolvidas na guerra mandaram soldados das colônias. Os franceses alistaram os argelinos e tunisianos no Exército Francês. Os norte-americanos alistaram porto-riquenhos e mexicanos. Meu pai e seus dois irmãos serviram num regimento porto-riquenho na Segunda Guerra Mundial que estava ligado ao Sétimo Exército do general George Patton. Eles foram recrutados diretamente de Porto Rico, sem falar uma palavra de inglês, para lutar na guerra. Mesmo os afro-americanos que vieram do Sul, muitos deles foram empurrados para a Segunda Guerra.
O resultado foi que, depois do fim da guerra, os soldados que retornaram se tornaram líderes dos movimentos de independência, dos movimentos locais pelos direitos civis. Muitas das pessoas envolvidas nessa luta nos EUA eram veteranos da Segunda Guerra Mundial. O mesmo aconteceu com a comunidade mexicano-americana e com a comunidade porto-riquenha. Depois de terem sido treinados e de lutado na guerra, eles voltaram e disseram: “Ei, acabamos de derrotar o fascismo, mas não temos direitos em nosso próprio país”.
Depois da Segunda Guerra Mundial, houve uma grande onda de independência entre os países africanos e também no Paquistão e na Índia, e todas as potências coloniais precisaram abrir mão de suas colônias. Mas então, como esses países já haviam estabelecido rotas de comércio e de informação com as metrópoles, as pessoas começaram a deixar as ex-colônias e migrar para as metrópoles. Argelinos começaram a ir para a França, tunisianos, indianos e paquistaneses começaram a ir para a Inglaterra. E as pessoas que foram para os Estados Unidos eram principalmente de países onde já havia intervenção direta, como Porto Rico, Cuba, República Dominicana e México, além, é claro, de Nicarágua, El Salvador e Honduras.
Então, basicamente, as migrações em massa de todas as potências imperiais do mundo remontam a antigas colônias. E é por isso que digo que a presença de latinos nos Estados Unidos é a colheita do Império americano.
Ao longo de 150 anos, as potências imperialistas tentaram extrair recursos: ouro, cobre, o que mais conseguissem obter das colônias. Só não esperavam que as pessoas iriam junto, que os trabalhadores começariam a usar as rotas de comércio para migrar para as metrópoles. Se o Ocidente não tivesse tentado dominar e colonizar o resto mundo, não estaria enfrentando os atuais problemas migratórios. Em um determinado momento as pessoas pensaram: “Bem, talvez seja melhor ir para esses países, já que somos considerados súditos deles”. E assim, durante o século XX, o Terceiro Mundo se ergueu e se tornou independente, mas ainda sob controle econômico do Ocidente.
Assim, gradualmente, entre o final do século XX e o começo do século XXI, os trabalhadores do Terceiro Mundo começaram a vir para o Ocidente, e então o capitalismo se viu diante de um problema: como é possível defender que o capital não tenha barreiras, seja para uma transferência de dinheiro, uma oportunidade de investimento ou uma redução de tarifas sobre o comércio exterior… Como é possível defender que estamos num mundo globalizado e o capital deve estar livre para ir onde quiser a qualquer momento, se a força de trabalho não puder fazer o mesmo? Como é possível defender liberdade para o capital sem que haja liberdade para o trabalho?
E temos ainda que considerar a realidade de que há mais pessoas em deslocamento atualmente do que em qualquer outro momento da História mundial. Quer dizer, basta olhar para o número de filipinos e outros povos que estão impulsionando as economias do Oriente Médio, ou para o número de coreanos trabalhando no Japão, para perceber que estão ocorrendo migrações em massa, não só nos Estados Unidos, mas em todo o mundo. O trabalho está em movimento, e não é possível continuar a reduzir as barreiras para o capital ao mesmo tempo em que se erigem barreiras contra o trabalho. Não faz sentido.
Então, acho que este é o dilema do capitalismo global: como tornar mais fácil ganhar dinheiro com negócios enquanto se dificulta o acesso ao dinheiro para o trabalhador.
Tradução: Deborah Leão.
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