Ela bem que tentou nos avisar.
“Ouse imaginar […] Imagine-o no Salão Oval enfrentando uma crise de verdade”, disse Hillary Clinton em seu discurso na Convenção Nacional do Partido Democrata em 2016, referindo-se ao seu então oponente do Partido Republicano, Donald J. Trump. “Um homem que você consegue provocar com apenas um tuíte não é um homem a quem possamos confiar armas nucleares”.
Ainda assim, quatro meses depois, em novembro do mesmo ano, quase 63 milhões de seus compatriotas votaram para colocar o ex-astro de reality show, um homem de pavio extremamente curto e nervos à flor da pele no comando das quase 6.800 ogivas nucleares dos EUA. Nunca se esqueçam: enquanto presidente dos Estados Unidos, com seu armamento nuclear, Trump — Trump! — tem o poder de destruir a humanidade — reiteradas vezes, se quiser — e tornar o planeta inabitável.
Como se isso não fosse assustador o suficiente, na semana passada, menos de 72 horas depois do discurso do Estado da União, em que Trump acirrou sua disputa verbal com a Coreia do Norte, o governo anunciou que pretende tornar muito mais fácil para o presidente a deflagração de um holocausto nuclear.
Talvez essa notícia importante tenha passado despercebida. Na sexta-feira, 2 de fevereiro, enquanto os canais de TV a cabo divulgavam o memorando Nunes [ligado à investigação sobre as relações de Trump com a Rússia], o Pentágono publicou a mais recente Revisão de Postura Nuclear (NPR), com duas novidades alarmantes.
Enquanto a NPR de 2010, do governo Obama, excluiu pela primeira vez a possibilidade de um ataque contra estados sem armas nucleares que estejam em conformidade com o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, a NPR de Trump vai no sentido oposto, e dá a entender que os EUA poderiam utilizar armas nucleares em “circunstâncias extremas” para defender os “interesses vitais” do país e de seus aliados. O documento afirma:
Circunstâncias extremas podem incluir relevantes ataques estratégicos não nucleares. Relevantes ataques estratégicos não nucleares incluem (mas não se limitam a) ataques a populações civis ou infraestrutura dos EUA, de aliados ou de parceiros, e ataques às forças nucleares dos EUA ou de seus aliados, ao comando e controle destas, ou às instalações de avaliação de alerta e ataque.
Ficou claro? Trump quer poder retaliar um ataque não nuclear e talvez até não militar à infraestrutura dos EUA — por exemplo, um ciberataque ao sistema elétrico? — com um ataque nuclear que poderia matar centenas de milhares de pessoas, talvez milhões. Chamar isso de desproporcional é um grande eufemismo.
Além disso, a nova NPR prevê o desenvolvimento de uma nova geração das chamadas armas nucleares de baixa potência. O documento dá a entender que essas armas menores seriam táticas, não estratégicas, para serem lançadas no campo de batalha, não em cidades. O problema desse argumento é que as bombas atômicas usadas contra Hiroshima (200 mil mortos) e Nagasaki (70 mil mortos) também poderiam ser consideradas armas nucleares de baixa potência, em termos de capacidade explosiva.
Há também a redução do limiar para o uso de armas nucleares: fica mais fácil justificar o lançamento de pequenas armas nucleares com base em uma suposta menor força explosiva. E no entanto, “uma arma nuclear é uma arma nuclear”, como testemunhou diante do Comitê do Senado para as Forças Armadas o ex-secretário de Estado de Ronald Reagan, George Shultz, um dia antes da divulgação da NPR de Trump. “Uma das coisas mais alarmantes para mim é a ideia de que é possível termos algo chamado pequena arma nuclear […] e que isso de alguma forma possa ser usado”, acrescentou Shultz. “A mente acaba aceitando a ideia de que armas nucleares podem, sim, ser usadas. E então temos problemas de verdade, porque uma grande disputa nuclear pode arrasar o planeta”.
Já seria bem preocupante se qualquer presidente americano anunciasse, praticamente sem debate ou discussão, um plano para construir mais armas nucleares táticas e usá-las em resposta a ataques não nucleares; uma estratégia que torna o uso desses armas mais provável, não o contrário. Mas quando o presidente em questão é Donald J. Trump, isso deve ser considerado uma emergência em escala nacional, ou até mesmo global.
Não podemos esquecer que esse é o presidente que, durante sua campanha eleitoral, demonstrou ser um completo ignorante em relação à “tríade nuclear“; propôs uma política de armas nucleares “imprevisível“, ao mesmo tempo se recusando a excluir a possibilidade de usá-las contra o Estado Islâmico ou até mesmo na Europa (porque, afinal, “é um lugar grande”); e perguntou três vezes a um consultor de relações exteriores, durante um briefing de apenas uma hora de duração, “por que não podemos usar armas nucleares?” Esse é comandante-em-chefe que, desde que assumiu a presidência há um ano, exigiu um aumento de dez vezes no número de armas nucleares dos EUA; casualmente ameaçou a Coreia do Norte “com fogo e fúria como o mundo nunca viu”; e começou 2018 contando vantagem no Twitter sobre seu botão nuclear “muito maior & mais poderoso”.
“Dar a Trump novas armas nucleares E novas formas de usá-las é como dar gasolina e fósforos para George, o Curioso”, definiu o especialista em armas nucleares Tom Collina, do Ploughshares Fund no site da CNN sexta-feira passada (02). “Isso não vai terminar bem.” Ou, como um oficial de alto escalão da reserva declarou ao jornal American Conservative, a NPR é para Trump “uma espécie de porta de entrada para a guerra nuclear”.
É isso mesmo. Antes da publicação desse documento contendo a nova estratégia nuclear, uma enquete do Washington Post-ABC News em meados de janeiro revelou que 60% dos americanos não confiam em Trump para exercer com responsabilidade sua “autoridade para ordenar ataques nucleares a outros países”, enquanto 52% deles estavam “muito” ou “um pouco” preocupados com a possibilidade de o presidente “lançar um ataque nuclear sem justificativa”.
Lembrem-se: os tribunais podem até conseguir derrubar decretos de Trump por inconstitucionalidade, e o Promotor Especial Robert Mueller pode conseguir indiciá-lo por conluio ou obstrução da justiça, mas não há nem freios nem contrapesos sobre a autoridade do presidente para deflagrar uma guerra nuclear. Nenhum. Zero. Para citar Bruce Blair, ex-funcionário da área de lançamento de mísseis nucleares e pesquisador acadêmico no Programa sobre Ciência e Segurança Global da Universidade de Princeton: “Precisamos enfrentar o fato de que [o sistema político dos EUA] dá a uma pessoa poderes quase divinos para causar o fim do mundo”.
Assim, as perguntas mais importantes em 2018 são: será que o narcisista-em-chefe planeja usar seus “poderes quase divinos”? Irá o impulsivo e agressivo Trump matar todos nós lançando uma guerra nuclear? O resto é só ruído de fundo.
Tradução: Deborah Leão
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