Nos Estados Unidos, atletas universitários, em especial os que competem nas maiores ligas de basquete e futebol americano, geram bilhões de dólares para as universidades, seus patrocinadores e redes de televisão. Em 2015, as principais competições renderam um total de 9,1 bilhões de dólares. A Associação Atlética Universitária Nacional (National Collegiate Athletic Association, NCAA), que organiza o esporte universitário no país, acaba de assinar um acordo de 8,8 bilhões de dólares com a CBS para exibir o “March Madness” [Loucura de Março], o torneio universitário de basquete.
O esporte universitário nos EUA é um negócio, e um daqueles bem lucrativos.
Essa dinâmica evidente foi o que motivou Lawrence “Poppy” Livers, ex-atleta da NCAA, a entrar com uma ação para que alunos bolsistas que praticam esportes sejam reconhecidos como empregados — e, como tais, devem ser remunerados. No processo, Livers defende que, dado o tempo que dedicam ao esporte, esses atletas deveriam pelo menos ser pagos como estudantes que trabalham [o governo federal dos EUA tem um programa chamado “work-study” para estudantes que precisam se manter].
A resposta da NCAA ao processo é das coisas mais vis que já aconteceram no esporte.
A resposta da NCAA ao processo é das coisas mais vis que já aconteceram no esporte. Precisei ver com meus próprios olhos para acreditar. Para defender que os atletas não devem receber, o cerne do argumento jurídico da associação se baseia em um precedente judicial chamado Vanskike versus Peters.
Daniel Vanskike era um detento da Penitenciária de Stateville em Joliet, no estado de Illinois, e Howard Peters era o diretor do Departamento Penitenciário estadual. Em 1992, Vanskike e seus advogados alegaram que, como preso, ele deveria receber um salário mínimo por seu trabalho. O juízo, em sua decisão, citou a 13ª Emenda à Constituição dos EUA e indeferiu o pedido.
A 13ª Emenda é frequentemente celebrada como o instrumento legal que colocou fim à escravidão nos Estados Unidos, mas ela traz uma exceção importante: manteve a licitude dos trabalhos forçados para os condenados por crime. “Nem escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como punição para crimes pelos quais a pessoa tenha sido condenada em juízo, existirão nos Estados Unidos, ou em qualquer lugar sob sua jurisdição”, diz o texto da Emenda. É essa expressão, “salvo como punição para crimes”, que permite que prisões americanas obriguem os presos a fazer qualquer trabalho que seja necessário ou conveniente.
Esse precedente foi levantado em diversos outros processos nos quais se alegava haver trabalho não remunerado; em dois deles, a NCAA era a parte requerida, usou esse caso como precedente, e acabou vencendo.
Os advogados de Livers defendem que o uso do precedente não foi correto, pois aplicou a exceção prevista na 13ª Emenda a um caso que não envolvia detentos.
“A insistência da requerida para que o precedente Vanskike seja aplicado ao presente caso não é apenas juridicamente temerária, mas também profundamente ofensiva a todos os atletas bolsistas — em especial aos afro-americanos”, diz a peça de resposta de Livers. “Comparar atletas a detentos é algo digno de desprezo”.
“Comparar atletas a detentos é algo digno de desprezo.”
A NCAA está sendo muito audaciosa ao insistir no precedente Vanskike v. Peters como uma de suas justificativas para não pagar os atletas universitários. O caso Vanskike já foi mencionado 14 vezes no Tribunal Recursal da Terceira Região dos EUA, mas sempre em processos de presos que pleiteiam receber um salário justo por seu trabalho.
Ainda assim, a associação quer se valer desse precedente e invocar a 13ª Emenda. O órgão que controla os esportes universitários quer usar uma exceção que permite o trabalho escravo de condenados para justificar sua ganância absurda.
Isso não só transmite uma péssima imagem, mas expõe a forma como a NCAA, que é um empreendimento bilionário, enxerga seus atletas e seu modelo de negócios. A entidade está, essencialmente, admitindo que seus atletas trabalham na condição de escravos e, por isso, não devem receber remuneração.
O preconceito sempre acaba se revelando. E é justamente o que está acontecendo neste caso da NCAA.
Tradução: Deborah Leão.
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