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Morta por ser lésbica: um dossiê inédito sobre o lesbocídio no Brasil

Uma lésbica foi morta por semana em 2017 – 83% dos crimes são cometidos por homens.

Morta por ser lésbica: um dossiê inédito sobre o lesbocídio no Brasil

Ana Mickaelly foi morta a facadas pelo sogro ao pedir a namorada em casamento. No ano passado, as namoradas Meiryhellen Bandeira e Emilly Pereira foram assassinadas a tiros por um vizinho que não aprovava a relação. Luana Barbosa morreu após ter sido espancada por Policiais Militares ao se recusar a ser revistada por homens. Esses são alguns exemplos de crimes de ódio praticados contra lésbicas em todo o Brasil, número que aumenta a cada ano, de acordo com o Dossiê Sobre Lesbocídio que o Núcleo de Inclusão Social da UFRJ divulga nesta quarta-feira.

Em 2014, foram registradas 16 mortes. Em 2017, o número passou para 54 – um aumento de 150% de casos em quatro anos. Só nos dois primeiros meses de 2018, já foram registradas 26 mortes por lesbocídio. Por não haver dados oficiais, os crimes são coletados na mídia e nas redes sociais, o que acaba gerando subnotificação. Os números podem ser ainda maiores que os apresentados.

 “A invisibilidade lésbica dentro da sociedade dificulta o desenvolvimento desse mapeamento.”

Assim como o feminicídio, o lesbocídio – termo apresentado pela primeira vez no Brasil na pesquisa – é motivado pela misoginia (ódio a mulheres), porém seguem lógicas diferentes. Enquanto o feminicídio generalizado é, na maior parte das vezes, um crime doméstico,  83% dos crimes contra lésbicas são cometidos por homens que não necessariamente possuem algum tipo de parentesco com a vítima, mas que têm algum tipo de  aversão a lésbicas em geral – ou seja, lesbofobia.

Os crimes praticados contra lésbicas também são diferentes dos casos de homofobia praticados contra outros grupos, porque a condição das lésbicas é específica. Os demais grupos também são atacados por não estarem em conformidade com a sociedade, mas as lésbicas ainda sofrem com a carga do machismo. A classificação específica desse tipo de crime é fundamental  para que ele possa ser combatido por meio de políticas públicas.

“As mulheres que não correspondem ao que é padronizado, ao que se esperam que elas sigam, são penalizadas. Quando essa mulher é uma lésbica, o que se espera dela é que ela seja discreta, é que ela não solte fogos para declarar o seu amor pela sua esposa. Então, são penalizadas por pessoas que não se sentem bem vivendo próximo a uma lésbica que não se esconde”, explica a pesquisadora Suane Soares, do grupo Lesbocídio – Histórias que ninguém conta, responsável pelo dossiê.

A pesquisa é contínua e apresenta uma demanda ao Estado em busca de solução. “A invisibilidade lésbica dentro da sociedade dificulta o desenvolvimento desse mapeamento. A pesquisa busca criar um espaço de denúncia”, explica a pesquisadora e idealizadora do Dossiê Milena Peres.

Jovens de 20 a 24 anos são as maiores vítimas

São Paulo é o estado que concentra o maior número de assassinatos e suicídios de lésbicas, representando 20% dos registros dos últimos quatro anos de acordo com os registros. Consequentemente, a região sudeste é que possui mais casos entre 2014 e 2017. Uma característica comum a todas as regiões do país é que mulheres lésbicas têm o dobro de chance de serem assassinadas em regiões de interior.

Mulheres lésbicas têm o dobro de chance de serem assassinadas em regiões de interior.

Outra característica do lesbocídio é que afeta mulheres jovens que muitas vezes estão passando a se afirmar como lésbicas na sociedade. 34% dos casos acontecem na faixa-etária de 20 a 24 anos. “As pessoas são mortas sem nunca terem dito o que elas são e terem sido percebidas como elas são”, alerta a coordenadora do Dossiê Maria Clara Dias.

Os diferentes tipos de Lesbocídio

O lesbocídio se apresenta em diferentes formas, mas segue alguns padrões. Em certos casos, como o do casal Meiryhellen e Emily, que aconteceu no ano passado, no Espírito Santo, a motivação lesbofóbica é declarada. O assassino reprova a existência das lésbicas, e o crime é uma demonstração disso. O assassinato cometido por um vizinho se encaixa nos 70% dos casos cometidos por pessoas que possuíam algum vínculo com a vítima – não necessariamente por parentesco.

Outro tipo identificado no dossiê é quando um homem insatisfeito com o fim de um relacionamento heterosexual com uma mulher descobre que sua ex-companheira passou a se relacionar com mulheres. É comum que o novo relacionamento seja com uma lésbica não feminilizada, perfil de 66% das vítimas. Com a virilidade afetada, o homem  acaba assassinando a namorada da ex-mulher e, muitas vezes, a ex também.

O levantamento também considera o suicídio cometido por lésbicas um lesbocídio por representar um crime de ódio coletivo. “O suicídio representa uma decepção da pessoa com relação a própria vida e a vida em sociedade, e no caso das lésbicas, a gente cataloga o suicídio como um lesbocídio porque a gente identifica que há uma negligência generalizada da sociedade em todas as esferas que a lésbica estiver”, explica Suane Soares.

O direito de existir

Uma das bandeiras levantadas pelas lésbicas é o direito de circular por espaços públicos sem sofrer agressões por serem quem são. Há um ano, esse direito da musicista Beà foi desrespeitado. Ela curtia o Carnaval ao lado da namorada quando, ao reagir a um assédio, foi atingida por uma garrafa no rosto e teve parte da córnea danificada.

Apesar do medo, Beà não deixou de andar de mãos dadas com a namorada. “Minha mãe fala que eu sou abusada. Eu não nasci para ser prisioneira de algo que para mim é normal, é comum. Eu não posso estar nesse jogo. Eu não vou deixar de ser quem eu sou por causa da sociedade”, afirma.

Outro direito reivindicado, tão básico quanto o anterior,  é o direito de existir. O preconceito é o responsável por um grande número de mortes que poderiam ser evitadas. A catalogação dos casos de lesbocídio deixou evidente o acúmulo preconceitos sobre uma mesma pessoa a torna mais vulnerável, e algo deve ser feito contra essas agressões que podem levar a mortes.

“O ato de existir é um ato de resistir dentro da sociedade”, reforça Suane Soares.

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