Há um aspecto salutar na origem da ignorância jornalística contemporânea sobre as Forças Armadas. Pouco sabemos a respeito delas porque os militares perderam, ao se limitar às suas atribuições constitucionais, o poder hipertrofiado que exerceram de 1964 a 1985. No tempo da ditadura, todo repórter atinado conhecia tanto a composição do Ministério quanto a do Alto Comando do Exército.
Mas não precisamos exagerar. Erramos ao escrever “Armas” no lugar de “Forças”. O Exército Brasileiro, a Marinha do Brasil e a Força Aérea Brasileira são Forças (Armadas). No caso da Força Terrestre, armas são infantaria, cavalaria, artilharia, engenharia e comunicações. “General do Exército” é pleonasmo, a não ser que se pretenda diferenciá-lo do general da banda. “General de Exército” é o oficial com quatro estrelas nos ombros, o ápice da carreira.
Coronel, tenente-coronel e major são postos, e não patentes, palavra sinônimo de latrinas. Ok, o dicionário aceita patente, porém a denominação incomoda. Um militar quase octogenário, ao contrário do que li domingo num jornal, não integra a reserva militar. É reformado, porque ultrapassou a idade máxima de convocação para a guerra.
A despeito dos nossos desconhecimentos, temos consciência de que na hierarquia o capitão situa-se andares abaixo do general. Mais exatamente, quatro.
Na cerimônia do adeus, o general Mourão louvaminhou a memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Aclamou-o como “herói”.
Em 1999, o capitão Jair Bolsonaro já passara à reserva e era deputado. Ele bufou, mencionando o então presidente Fernando Henrique Cardoso: “Através do voto você não vai mudar nada nesse país. Nada, absolutamente nada. Só vai mudar, infelizmente, no dia [em que] nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro. E fazendo um trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil, começando com o FHC”.
Na semana passada, ao se despedir do serviço ativo, o general Antonio Hamilton Mourão defendeu “expurgar da vida pública” figuras como Michel Temer. Não explicou como. Numa palestra organizada por uma loja maçônica em 2017, revelou o repórter Rubens Valente, Mourão dissera que o Alto Comando do Exército cogitava uma “intervenção militar”, na hipótese de a Justiça “não solucionar o problema político”. Referia-se a corruptos. “Ou as instituições solucionam o problema político, pela ação do Judiciário, retirando da vida pública esses elementos envolvidos em todos os ilícitos, ou então nós teremos que impor isso”.
Golpe de Estado com guilhotina e morticínio, como receitou Bolsonaro, é mais violento do que golpe sem ameaça de sanguinolência. No entanto, soa mais assustador ouvir o disparate golpista na boca de um general, no século 21, do que na de um ex-oficial bravateiro no 20.
Na cerimônia do adeus, o general Mourão louvaminhou a memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Aclamou-o como “herói”. Ustra comandou o maior campo de concentração da ditadura, o Destacamento de Operações de Informações do II Exército, em São Paulo. Foi a dependência dos governos militares onde mais torturaram, mataram e desapareceram com cadáveres de oposicionistas. Sobretudo na gestão do à época major Brilhante Ustra.
Seus crimes estão documentados. Somente os negacionistas, primos tropicais dos europeus que negam ter havido um holocausto na 2ª Guerra, apregoam a inexistência de provas contra Ustra. Elas são fartas e inequívocas. O coronel foi declarado torturador pela Justiça, mas morreu impune. Seus correligionários tentam equiparar personagens históricos de condições distintas e inconciliáveis, a de torturador e a de torturado. São donos de cacholas para as quais, se forem coerentes, os assassinos de Reinhard Heydrich, o Açougueiro de Praga, seriam bandidos. Não eram. Bandido foi o genocida nazista abatido no atentado de 1942.
Dois dias depois de Mourão reverenciar mais uma vez o torturador Ustra, “O Globo” publicou um artigo do jornalista, escritor e ex-deputado Fernando Gabeira. Intitulado “A luta contra fantasmas”, endossa a intervenção federal-militar-eleitoral no Rio (a qualificação da intervenção é da minha lavra). E fustiga, com a autoridade de guerrilheiro baleado e torturado na ditadura:
“Não tenho o direito de encarar o Exército com os olhos do passado, fixado no espelho retrovisor. […] Nesse momento de intervenção federal, pergunto-me se o Exército, para algumas pessoas de esquerda e mesmo alguns liberais na imprensa, ainda não é uma espécie de fantasma que marchou dos anos de chumbo até aqui, como se nada tivesse acontecido no caminho”.
O veterano oficial planeja se dedicar à chefia do Clube Militar e à promoção de candidaturas de militares nas eleições de outubro. A começar pela de Bolsonaro, ao Planalto.
Deixo de lado, para o conforto de Gabeira, classificações ideológicas. E recomendo que ele cobre outros, como o general Mourão e seus partidários. Porque as pregações e conspirações do general não se descortinam no retrovisor, e, sim, no para-brisa. É Mourão quem fala como se o tempo não tivesse passado na janela. O veterano oficial planeja se dedicar à chefia do Clube Militar e à promoção de candidaturas de militares nas eleições de outubro. A começar pela de Bolsonaro, ao Planalto.
Em 1964, outro general Mourão se autorretratou: “Em matéria de política, não entendo nem falo nada. Sou uma vaca fardada”. Ao botar suas tropas na estrada, em Juiz de Fora, Olímpio Mourão Filho deflagrara o golpe contra Jango. Não sei se há parentesco, além do extremismo político, de Mourão Filho com Hamilton Mourão.
Em 2018, depois de glorificar um famigerado violador dos direitos humanos na ditadura, Mourão foi enaltecido pelo comandante do Exército. No Twitter, o general Eduardo Villas Bôas afagou o camarada como “soldado na essência d’alma” e “liderança pelo exemplo”.
No dia seguinte, noutro tuíte, Villas Bôas elogiou o artigo de Gabeira como “muito sensato”. Acrescentou: “É chegada a hora de parar de procurar em cada ação desencadeada pela Força Terrestre uma oportunidade de crítica inconsistente e de base ideológica ao @exercitooficial”.
Nas alegações apreciadas pelo general, Gabeira argumenta: “Houve um certo drama porque os pobres foram fotografados por soldados. Quem dramatiza são pessoas da classe média que vivem sendo fotografadas, na portaria de prédios, na entrada de empresas. Por toda a parte alguém nos filma”.
Nunca ouvi falar de prédio de classe média com morador impedido de sair se não topasse ser fichado. Gabeira ouviu?
O “certo drama” não foi apenas o fato de soldados do Exército fotografarem moradores da Vila Kennedy, na zona oeste do Rio. Os cidadãos foram fichados, sem ordem judicial que os obrigasse. E proibidos de ir e vir, pois sem documentos não podiam sair para trabalhar. Em bairros de bacanas ou nem tanto, não se veem operações assim. Nunca ouvi falar de prédio de classe média com morador impedido de sair se não topasse ser fichado. Gabeira ouviu?
Os cariocas que mais sofrem com traficantes do varejo de drogas e milicianos vinculados às polícias são os mais pobres. Que acabam sendo tratados por certas autoridades como suspeitos de associação com o crime e suas crueldades.
Jornalista profissional, Gabeira silenciou sobre a intimidação dos militares contra repórteres que flagraram a sessão compulsória de fichamento. Os soldados os afastaram e os mandaram ficar a centenas de metros. Os repórteres Sérgio Rangel e Danilo Verpa relataram que, em escancarada inversão de papéis, um militar se queixou dos jornalistas por estarem “intimidando” o Exército. Com olhos do passado ou do presente, o procedimento tem nome: cerceamento à imprensa ou censura.
Numa entrevista coletiva de generais trajando uniforme camuflado, os repórteres sofreram novo constrangimento. Tiveram que informar por escrito a pergunta que fariam. Anteontem, ontem ou hoje, a truculência também se chama censura – e não fantasma. Os generais têm o direito de omitir dados sensíveis sobre futuras operações. Não o de vetar perguntas.
Os generais presentes na entrevista no Centro Integrado de Comando e Controle eram Walter Braga Netto, comandante Militar do Leste e interventor no Estado; Mauro Sinott, chefe do gabinete de intervenção; e Richard Nunes, secretário estadual de Segurança. Braga Netto anunciou o Rio como “um laboratório para o Brasil”. Para entender o que isso significa, seria útil que o interventor esclarecesse um episódio obscuro ocorrido em novembro, no complexo do Salgueiro, conjunto de favelas na região metropolitana.
Oito homens apareceram mortos a bala depois de uma operação conjunta de militares do Exército com uma tropa de elite da Polícia Civil. Haviam se defrontado com “resistência armada”, sustentou a primeira versão oficial. Mais tarde, a estória mudou: não haviam tiroteado. Os corpos já estariam feridos, no chão, ao serem encontrados.
Os 17 militares que lá estavam não depuseram no inquérito policial. Desde o ano passado, eventuais crimes cometidos por eles contra civis, em missões de segurança pública, são julgados pela Justiça Militar. Todos os mortos receberam disparos nas costas, conforme os laudos de necropsia antecipados pelo repórter Rafael Soares. Peritos identificaram características de execução.
A Human Rights Watch denunciou “obstrução das investigações por parte do general Braga Netto”. A atitude evidenciaria “a falta de comprometimento real em garantir justiça às vítimas nesse caso e mostra um flagrante desrespeito às autoridades civis”.
Testemunhas descreveram disparos feitos por homens com as cabeças protegidas por capacetes e empunhando fuzis com mira a laser. Viram fantasmas? Nos “anos de chumbo”, para empregar a expressão adotada por Gabeira, a ditadura difundia versões falsas sobre mortes. A chacina no complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, é de 2017, não de 1975, quando o Exército encenou um suicídio depois de ter torturado até a morte o jornalista Vladimir Herzog.
Crimes como o que tirou a vida de Herzog foram escrutinados pela Comissão Nacional da Verdade. Para a intervenção no Rio, o general Villas Bôas reivindica “garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”. A comissão investigou, reitero, crimes. O que profetiza o comandante?
O general da reserva Sergio Etchegoyen, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, já vituperara a Comissão da Verdade. Insurgiu-se porque o nome de seu pai, o general Leo Etchegoyen, constou da lista de autores de “graves violações contra os direitos humanos” na ditadura. Seu filho vociferou adjetivos como “levianos” e “patético”, demonizando a comissão.
(Curiosidade irrelevante: os generais Sergio Etchegoyen e Eduardo Villas Bôas nasceram em Cruz Alta, cidade gaúcha onde Erico Verissimo veio ao mundo.)
É digno do Recruta Zero supor que um traficante, por mais abobado que seja, caminhe serenamente até uma barreira militar depois de avistá-la ao longe.
A ditadura terminou em 1985, mas medidas de exceção não são exclusividade delas. Exalam, contudo, o seu odor. Numerosos juristas interpretam como inconstitucionais os mandados coletivos de busca e apreensão requeridos pelos militares para a intervenção no Rio. O general Richard Nunes sugeriu, em entrevista às jornalistas Elenilce Bottari e Gabriela Goulart, um novo “código legislativo” para a intervenção. À repórter Nayara Felizardo, aqui no The Intercept Brasil, o Exército lastimou a – duvidosa – “excessiva compreensão com direitos”.
Desde a ditadura os militares não concentravam tanto poder, observou João Filho, colega de The Intercept Brasil. Temer atropelou a tradição democrática de escalar um civil na cabeça do Ministério da Defesa. Indicou para o cargo, interinamente, o general Joaquim Silva e Luna. Tripudiou sobre a boa-fé alheia, ao se jactar da intervenção como “uma jogada de mestre”. Jogada política e eleitoral, bem entendido.
Gabeira indaga: “Há tantos combatendo exércitos fantasmas ou investindo contra moinhos que é sempre bom perguntar: afinal, qual é o foco?”
Respondo: o foco é combater a violência e a desigualdade que a inflama sem apelar a jogadas de mestre; é perseverar na luta pela segurança dos cidadãos de todas as classes sociais, sem violar garantias individuais e sem abordar vítimas de bandidos como se bandidos fossem; é desistir de fanfarronices como jurar dar cabo da violência do Rio em seis meses, como um dia ousou o ministro Moreira Franco.
Os militares brasileiros não são burros ou ineptos. A jogada de Temer os surpreendeu, afligiu e dividiu, conta Fabio Victor em reportagem de fôlego na revista “piauí”. Soldados usarem celulares pessoais para fotografar moradores da Vila Kennedy é o paroxismo do improviso. É digno do Recruta Zero supor que um traficante, por mais abobado que seja, caminhe serenamente até uma barreira militar depois de avistá-la ao longe.
Repete-se, como previsto, parte do roteiro da Operação Rio, de 1994. A presença ostensiva das Forças Armadas deve reduzir por um período os índices de criminalidade e aumentar a percepção de segurança. Quando os militares regressarem aos quartéis, tudo será como antes, ou pior. O modelo é inócuo, como um dia reconheceu o general Villas Bôas.
No sábado, assistimos a um trailer: soldados do Exército removeram dezesseis barricadas colocadas por traficantes para bloquear vias da Vila Kennedy; dali a horas, após a retirada da tropa, os traficantes reinstalaram obstáculos ao trânsito.
No domingo, “O Globo” manchetou: “Exército levará ação social às favelas”.
Em novembro de 1994, em plena Operação Rio, “O Dia” estampou títulos com promessas semelhantes: “Vai começar a ‘ocupação social’” (23 de novembro) e “Exército começa a invasão social” (16 de dezembro).
Perdão pelo clichê miserável: eu já vi esse filme.
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