No dia 22 de maio de 2017, Salman Abedi detonou uma bomba em um show de música pop em Manchester, na Inglaterra, matando 22 pessoas e a si mesmo. Foi o pior atentado terrorista da história da cidade – e o pior no Reino Unido desde os atentados de Londres, em 2005. A vítima mais jovem tinha apenas oito anos de idade.
Mas será que esse terrível atentado não seria, ao menos em parte, um efeito indesejado da política externa britânica? Será que a guerra na Líbia, apoiada pela Otan, não teria ajudado a radicalizar Abedi?
Vocês se lembram da Líbia, certo? A intervenção militar de 2011, iniciada pelo presidente americano, Barack Obama, o primeiro-ministro britânico, David Cameron, e o presidente da França, Nicolas Sarkozy, sob a égide da Otan e com autorização de uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, tinha como objetivo impedir que o ditador líbio Muammar Gaddafi praticasse um massacre na cidade costeira de Benghazi. Porém, a missão logo se transformou em uma tentativa de derrubar o regime. As tropas da Otan apoiaram os rebeldes líbios, que posteriormente capturaram Gaddafi no deserto; o ditador foi sodomizado com uma baioneta e morto a tiros. “Viemos, vimos, ele morreu”, brincou a então secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton.
Uma piada hilária! Todavia, como explico neste sexto e último curta-metragem da minha série para The Intercept sobre os efeitos indesejados de certas políticas, a Líbia pós-Gaddafi não tem nenhuma graça. O país se afundou rapidamente no caos e na violência, com milícias rivais – inclusive grupos jihadistas – lutando por poder e influência. “A possibilidade de grupos extremistas tentarem se beneficiar da guerra devia ter sido levada em consideração antes”, reconheceu um relatório oficial de uma seleta comissão do parlamento britânico.
Devia mesmo. Os governos dos membros da Otan sabiam muito bem que estavam apoiando grupos radicais. Alguns integrantes da força aérea do Canadá, que realizou 10% das missões da campanha na Líbia, brincavam entre si dizendo que haviam se tornado “a força aérea da Al Qaeda”.
Mas o governo do Reino Unido, que puniu os cidadãos britânicos que foram combater ao lado dos jihadistas na Síria ou no Iraque, fizeram vista grossa para aqueles que foram lutar na Líbia. Um deles, de origem líbia, que estivera em prisão domiciliar por suspeita de querer se juntar aos extremistas iraquianos, afirmou: “Me deixaram ir [para a Líbia], sem ter que dar nenhuma explicação”. E não foi só ele: muitos exilados líbios em Manchester foram lutar contra o regime de Gaddafi – em Trípoli, existe até um mural em homenagem a eles. Entre esses exilados, estavam Ramadan Abedi, membro de uma organização aliada da Al Qaeda chamada Grupo de Combate Islâmico Líbio, e seu filho de 22 anos, chamado… Salman.
Amigos e conhecidos de Salman Abedi disseram que ele voltara da Líbia “completamente mudado”. O antigo garoto festeiro, que usava drogas e gostava de beber, havia se transformado em um jovem raivoso que havia lutado contra Gaddafi e supostamente entrado para o Estado Islâmico. O EI mais tarde reivindicaria a autoria do atentado de Manchester.
Nunca é demais lembrar: explicar como Abedi se tornou um terrorista não é justificar os seus atos. Ele foi responsável por um monstruoso assassinato em massa, tirando a vida de crianças inocentes. Mas quem o ajudou a encontrar outras pessoas com a mesma mentalidade cheia de ódio, ao lado das quais ele pôde treinar e lutar? Quem o levou ao campo de batalha onde foi recrutado e radicalizado? Como a Líbia, o país para o qual ele viajara, acabou se tornando um reduto do Estado Islâmico?
“Basta!”, disse a primeira-ministra britânica, Theresa May, depois do atentado de London Bridge, ocorrido apenas um mês depois do de Manchester. “As coisas precisam mudar para acabarmos com o extremismo e o terrorismo”, afirmou.
Sim, precisam mesmo. Que tal pararmos de armar e fazer alianças com grupos duvidosos ao redor do mundo? Que tal pararmos com a mania de derrubar governos no Oriente Médio? Que tal pararmos de fingir que nossas guerras lá fora não causam efeitos colaterais aqui dentro? Quanto mais cedo o fizermos, mais vidas inocentes serão salvas.
Esta série de vídeos conta com roteiros de Mehdi Hasan, produção-executiva de Lauren Feeney e produção de Dina Sayedahmed, Omar Kasrawi e Nicole Salazar. Tradução para o português: Bernardo Tonasse.
JÁ ESTÁ ACONTECENDO
Quando o assunto é a ascensão da extrema direita no Brasil, muitos acham que essa é uma preocupação só para anos eleitorais. Mas o projeto de poder bolsonarista nunca dorme.
A grande mídia, o agro, as forças armadas, as megaigrejas e as big techs bilionárias ganharam força nas eleições municipais — e têm uma vantagem enorme para 2026.
Não podemos ficar alheios enquanto somos arrastados para o retrocesso, afogados em fumaça tóxica e privados de direitos básicos. Já passou da hora de agir. Juntos.
A meta ousada do Intercept para 2025 é nada menos que derrotar o golpe em andamento antes que ele conclua sua missão. Para isso, precisamos arrecadar R$ 500 mil até a véspera do Ano Novo.
Você está pronto para combater a máquina bilionária da extrema direita ao nosso lado? Faça uma doação hoje mesmo.