Na edição de 1º de março, a Folha de S. Paulo publicou uma entrevista do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva com esta afirmação: “É importante ter em conta que o Temer teve uma vitória quando derrubou o golpe que a TV Globo, o Janot e o Joesley tentaram dar nele”.
Dali a dois dias, numa conferência promovida por movimentos sociais que o aclamaram candidato ao Planalto, o ativista Guilherme Boulos disse como agiria na cadeira de presidente: “Pela primeira vez, num governo da Nova República, o PMDB vai ter que ser oposição”.
Também em pingue-pongue na Folha, o deputado Marcelo Freixo erguera em dezembro um muro entre o PSOL (seu partido) e o PT: “A gente vive num momento de reconstrução: qual esquerda a sociedade vai enxergar? Porque precisa enxergar diferente. Não sei se esse é o momento de unificar todo mundo, não”.
Presidente da seção do PT no Estado do Rio e ex-prefeito de Maricá, Washington Quaquá respondeu: “Freixo e Bolsonaro são filhos do mesmo pai. São filhos de Carlos Lacerda. É uma pequena-burguesia falso moralista. […] Esquerda de verniz, esquerda da zona sul”.
Dias antes da entrevista de Freixo, Lula discursara num comício em Nova Iguaçu. Referindo-se às condenações de Sérgio Cabral, o petista ponderou sobre “roubos” do ex-governador: “Eu nem sei se isso é verdade, porque não acredito em tudo o que a imprensa fala”.
O PSOL é contendor encarniçado do PMDB, em especial no Rio. Um ano atrás, sua bancada combateu a recondução do peemedebista Jorge Picciani ao comando da Assembleia Legislativa. Os deputados do PT fecharam com Picciani.
O PSOL é contendor encarniçado do PMDB, em especial no Rio. Um ano atrás, sua bancada combateu a recondução do peemedebista Jorge Picciani ao comando da Assembleia Legislativa. Os deputados do PT fecharam com Picciani. Em 2010, os petistas tinham se coligado ao PMDB na chapa que elegeu Cabral governador. Em 2012, na que reelegeu Eduardo Paes prefeito. O PMDB recauchutou há pouco, num lifting eleitoral, a sigla para MDB. Cabral e Picciani amargam uma cana.
No segundo turno da eleição municipal carioca de 2016, quando Freixo enfrentou Marcelo Crivella, o candidato do PSOL dispensou a presença de Lula em seu palanque, a despeito do apoio do PT na rodada decisiva – na primeira, o partido se associara a Jandira Feghali, do PC do B.
Em julho de 2017, Lula contra-atacou, num programa de José Trajano na internet: “Não se trata de não gostar do PSOL. O PSOL é que não gosta do PT. […] Quando eles governarem a cidade do Rio de Janeiro, metade das frescuras vai acabar. Eles vão perceber que não dá para a gente nadar teoricamente. […] O problema é que eles se acham. Sabe aquele cara que levanta de manhã, vai no espelho e fala: espelho, espelho meu, tem alguém mais fodido, […] mais sabido do que eu?”.
Sob a benção de Freixo
No sábado passado, o PSOL decidiu integrar uma frente que, em outubro, apresentará Guilherme Boulos como candidato a presidente. Ele concorrerá pela legenda do partido. Um dos principais articuladores do nome do coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto foi Marcelo Freixo.
Nesse caso, as aparências não enganam: a filiação de Boulos ao PSOL e sua candidatura frustraram a vontade e o empenho de Lula e do PT para que isso não ocorresse.
A maioria folgada de cerca de 70% dos delegados da conferência eleitoral do PSOL endossou Boulos. Uma minoria expressiva de tendências mais à esquerda o rejeitou, denunciando-o como manobra lulista. De acordo com essa interpretação, o ingresso do dirigente do MTST constitui um ardil do ex-presidente para capturar e domesticar o PSOL. Em ato público, ecoou a palavra de ordem “Lula, tire as mãos do PSOL!”.
O economista Plínio de Arruda Sampaio Jr., escolhido por um quinto dos delegados para representar a agremiação na disputa presidencial, definiu Boulos como “SubLula”, “porque entra no partido como pirata”.
Abstraindo o mérito de leituras e idiossincrasias políticas: o que sucedeu foi o contrário; Lula queria Boulos longe do PSOL e perto ou dentro do PT.
Ambição e fantasma
Partidos de esquerda convivem com uma ambição e um fantasma. A ambição é se tornar uma organização de massas, escapando ao gueto dos cultos para convertidos. O fantasma é que o crescimento desnature a condição de agrupamento de esquerda. A tensão entre ambição e fantasma consumiu o PSOL numa peleja fratricida nos últimos meses. A aposta em Boulos se alimentou da ambição. A recusa, do fantasma.
O Partido Socialismo e Liberdade brotou à esquerda do Partido dos Trabalhadores. Em 2003, o PT expulsou uma senadora e três deputados, por não obedecerem à ordem de votar a favor de reformas previdenciária e tributária encaminhadas pelo governo Lula. Os parlamentares as desqualificaram como patologicamente neoliberais. Plantaram a semente do PSOL.
Fundado no ano seguinte, o partido inscreveu candidatos em três pleitos presidenciais. Na estreia, em 2006, teve desempenho promissor, com Heloísa Helena (6,85% dos votos válidos). Nunca mais preocupou o PT. Pareceu nanico: em 2010, Plínio de Arruda Sampaio, pai de Plínio Jr., não ultrapassou 0,87%; em 2014, Luciana Genro limitou-se a 1,55%.
Heloísa Helena, pioneira do PSOL, abandonou o partido pela porta à direita. Em 2014, batalhou na campanha presidencial de Marina Silva, candidata que no segundo turno apoiou Aécio Neves. A ex-senadora alagoana não se alinhou a nenhum dos finalistas.
No mata-mata derradeiro pela Prefeitura de São Paulo, em 2012, Plínio de Arruda Sampaio defendeu o tucano José Serra, contra o petista Fernando Haddad. O deputado cassado em 1964 tuitou: “O importante agora é derrubar o Haddad, porque ele é incompetente e porque sua vitória fortalece o Lula e a turma do mensalão”.
Às vésperas do impeachment da presidente constitucional Dilma Rousseff, Luciana Genro sustentou: “Não estamos em uma situação de golpe, onde haja o risco de assumir um governo que vai restringir as liberdades individuais, que vá censurar, que vá prender, que vá torturar”. A antiga deputada propôs a antecipação da eleição, medida que golpearia Dilma antes do fim do mandato consagrado nas urnas. Descartou haver seletividade no rol de investigados da Operação Lava Jato: “Essa ladainha caiu por terra”. Exclamou: “Viva a Lava Jato!”
Luciana foi voz eloquente no PSOL contra a candidatura Guilherme Boulos. Preferia Plínio Jr., para quem Michel Temer não é ruptura, mas “a metástase da Dilma”.
Os psolistas comungam de uma crença: o PT é um partido da ordem burguesa.
Os psolistas comungam de uma crença: o PT é um partido da ordem burguesa. Deixou de ser instrumento para transformações estruturais e revolucionárias do Brasil. Contenta-se, acreditam, em ser um administrador dócil do capitalismo, anestesiando lutas emancipatórias dos trabalhadores.
Lula teria sintetizado seu partido ao se ufanar: “Eu tenho orgulho de dizer que o meu governo foi o período em que os empresários mais ganharam dinheiro, os trabalhadores mais ganharam aumento de salário, em que geramos mais empregos, em que houve menos ocupação no campo, na cidade, e menos greve”.
Getulismo e lulismo
O PSOL se inflama ao elucubrar os meios para confrontar Lula e o PT. A trincheira que se opôs a Boulos prescreve a permanência da exacerbada pregação antilulismo. Os que chancelaram o projeto Boulos supõem que nenhum partido de esquerda prosperará com atitude francamente antilulista. Atacando Lula de frente, explicam, seria inviável cativar a frondosa base social fiel ao ex-presidente.
Nos governos petistas, essa massa foi beneficiada por progressos sociais inéditos. Mais de 30 milhões de brasileiros escaparam da miséria absoluta, o acesso à universidade se expandiu e se democratizou, passageiros menos endinheirados horrorizaram esnobes ao viajar de avião.
O povão deixa por menos, quando não ignora, o fato de Henrique Meirelles ter sido presidente do Banco Central no governo Lula, de Joaquim Levy ter chefiado a Fazenda sob Dilma, de o ex-presidente ter sugerido à sucessora o nome de Meirelles para ministro da Fazenda e de os banqueiros terem embolsado lucros recordes e obscenos. A condenação por corrupção e lavagem de dinheiro não impede Lula de liderar todas as pesquisas eleitorais para a Presidência.
Há quem identifique parentesco com o passado. Getúlio Vargas, cria de oligarquia gaúcha, difere de Lula, metalúrgico surgido na vida pública em greves operárias em tempo de ditadura. Mas em 1954 o presidente Getúlio era demonizado pelos comunistas como hoje Lula por parcelas do PSOL. O PCB pedia sua cabeça.
Em 1950, o partido recomendara voto em branco. Sua militância deu de ombros à direção e ajudou a eleger o ex-ditador, encarado como o “pai dos pobres”, e não a “mãe dos ricos” do juízo pecebista. No dia do suicídio, trabalhadores destruíram sedes de jornais comunistas. O PCB virou às pressas e passou a apregoar virtudes do falecido.
Guilherme Boulos não é um pregoeiro de Lula. Ele enumera críticas, pela esquerda, às administrações petistas.
Guilherme Boulos não é um pregoeiro de Lula. Ele enumera críticas, pela esquerda, às administrações petistas. Mas qualifica como golpe de Estado a deposição de Dilma (“O golpe foi uma ruptura, pelo andar de cima, da conciliação”). Foi uma das estrelas das manifestações pela absolvição de Lula no processo do triplex e pelo direito de o nome do ex-presidente ser submetido aos eleitores em 2018 (“O Judiciário quer retirar da disputa eleitoral, no tapetão, o candidato mais popular”).
Em outubro, quando Lula visitou em São Bernardo do Campo uma ocupação de 8.000 famílias mobilizadas pelo MTST, os sem-teto o ovacionaram: “Volta, Lula! Volta, Lula!” Boulos só topou a candidatura pelo PSOL depois de se assegurar que o MTST não racharia. E de o cenário mais provável ser a inelegibilidade do prócer petista.
No ano passado, antes de uma reunião em junho causar celeuma ao ser noticiada pela Folha, encontros entre militantes de movimentos populares, do MTST, do PT e do PSOL já fermentavam a ideia de formar uma nova frente política. O consenso era a necessidade de, em período de vacas magras para a esquerda, estabelecer unidades, pactos e ações comuns para resistir ao acosso conservador e mesmo fascistoide.
Não seria exigida a extinção de PT ou PSOL. Inspiravam-se remotamente na experiência do Podemos, jovem agremiação espanhola de esquerda. De composição ampla, o Podemos ocupou o lugar político que outrora fora de partidos como o socialista e o comunista. O grande animador dessas discussões sobre as perspectivas da esquerda tem sido o petista Tarso Genro, ex-governador e ex-ministro.
Na tarde do domingo 18 de junho de 2017, uma reunião em São Paulo debruçou-se sobre conjuntura política e frente de esquerda. Nela estavam Tarso, Boulos, Freixo, o petista Lindbergh Farias, militantes egressos do PSTU, líderes feministas, ativistas do movimento negro, coletivo de mídia, professores universitários. Mais ou menos quarenta pessoas.
Falaram das dificuldades legais da candidatura Lula, mas não examinaram nomes. Para os petistas, a expectativa ainda era de a Justiça autorizar o ex-presidente a concorrer. Alguns psolistas já pensavam em Boulos, mas calaram. As tratativas resultaram na Plataforma Vamos, que o agora candidato descreve como “um ciclo de debates para discutir um projeto para o Brasil”.
Lula reage
Ao saber por jornal da reunião, Lula reagiu – “irritou-se”, “reclamou”, “não gostou”, “ficou puto”, conforme os testemunhos que eu ouvi. Petistas contam que o ex-presidente interpelou Lindbergh, o que o senador nega. Lula presumiu que a articulação, se prosperasse, alvejaria o PT. Talvez estivesse certo. Um deputado do partido recusara o convite para o encontro por perceber nele o propósito de “destruir o Lula e o PT”. Tarso e Lula são adversários nas refregas partidárias intestinas.
Lula incomodou-se ainda mais com as notícias sobre a possibilidade de Boulos, liderança com vasta base popular organizada, sair candidato pelo PSOL. O dirigente do MTST foi sondado mais de uma vez para se filiar ao PT. No partido, rumorou-se um receio: o de Boulos exigir a vaga de vice na chapa, hipótese inverossímil devido ao perfil de alianças pretendido. Boulos não pediu nada. Descartou se vincular ao PT.
Boulos, dizem os que o conhecem, descrê do porvir do PT. E também do PSOL. De certo modo, é influenciado pelas Jornadas de Junho de 2013, no que elas evidenciaram de cansaço ou esgotamento das representações políticas tradicionais. Não se considera candidato do PSOL, mas de uma frente de movimentos. Nela se incluem grupos identitários, Frente Povo Sem Medo, PSOL, PCB e quem mais chegar. A vice é a líder indígena Sônia Guajajara. O plano de Boulos é impulsionar um novo movimento de massas de esquerda. Um movimento de espírito pós-PT.
A conferência de movimentos sociais que o proclamou candidato, antes da conferência eleitoral do PSOL, exibiu um vídeo de Lula. A mensagem foi criticada como aval do ex-presidente, 72 anos, à candidatura de Boulos, 35. Ao pé da letra, contudo, Lula minimizou a empreitada nascente: “Acho você uma pessoa de muito futuro na política brasileira”. Futuro não é presente. Continuou: “Jamais vou dizer para você não ser candidato”. Não adiantaria. Lula mencionou a pré-candidata Manuela D’Ávila, do PC do B. E desejou boa sorte a Boulos.
O PSOL espera que Boulos estimule uma votação maior que a de quatro anos atrás. A cláusula de barreira vigora a partir deste ano. Para manter os recursos do fundo partidário e as inserções em rádio e TV, o partido precisa somar ao menos 1,5% dos votos para a Câmara, com o mínimo de 1% em nove Estados. Ou eleger de nove deputados para cima, com eleitos em nove Estados ou mais.
Boulos empreenderá uma campanha virulenta contra a direita. “Bandido”, para ele, é Jair Bolsonaro, e não Lula. Baterá e apanhará. Na semana passada, Leda Nagle entrevistou o humorista Gregorio Duvivier. Contribuindo para a coleção de fake news de 2018, a jornalista perguntou: “Você não acha ele [Boulos] perigosíssimo?. […] Ele quer matar pessoas”. O entrevistado esclareceu que a informação não procedia. A entrevistadora afetou surpresa: “Você nunca ouviu? Jura?”.
Partidário do “Fora, Temer!”, Guilherme Boulos não tem o marido de Marcela na conta de vítima de golpe, e sim na de golpista. Não tabelará com o PMDB. Oferecerá uma agenda nítida, sem circunlóquios, goste-se ou não dela. O jovem candidato oxigena a pré-campanha eleitoral em que o cheiro de mofo ainda prevalece. Se isso renderá votos, são outros quinhentos.
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