Em um lugar onde pouco antes havia uma parte intacta da floresta amazônica, a então presidenta Dilma Rousseff inaugurou o maior conjunto do Minha Casa Minha Vida, no extremo norte de Manaus, em fevereiro de 2014. “Esse residencial tem um nome fantástico, se chama Viver Melhor”, comemorou Dilma para as cerca de 55 mil pessoas que estavam no local. Ela apontou como a mudança traria segurança e respeito aos que ali chegavam, e encerrou seu discurso exaltando a qualidade dos apartamentos.
A segurança e a qualidade apontadas por Dilma se esfarelaram nas 8.855 unidades distribuídas entre casas e prédios de quatro andares. Maria Cristina sente medo de que o teto do seu apartamento desabe sobre sua cabeça, sua mãe ou seu filho, que vivem com ela. O teto do banheiro já foi ao chão e, agora, rachaduras atravessam a sala e a cozinha. “Isso não é uma moradia”, desabafa. A Defesa Civil já recomendou que a família saia do apartamento porque a vida de todos está em risco, mas ela diz que não eles têm para onde ir.
“Isso não é uma moradia”
Assim como Cristina, o professor de inglês Benedakson da Gama, de 49 anos, também sente medo. Ele perdeu televisão, cama, geladeira e computador por causa das infiltrações que aconteceram apenas quatro meses após a visita de Dilma.
Cristina, Benedakson e outros mil donos dos apartamentos com 47 metros quadrados podem terminar perdendo tudo. As construções são “irrecuperáveis”, segundo laudo da Defensoria Pública do Estado do Amazonas. Infiltrações, rachaduras nos blocos de concreto e problemas na drenagem e no esgoto foram constatadas em visitas técnicas realizadas pelos engenheiros.
Mais de 91 mil unidades
Erguendo prédios como esses, a Direcional Engenharia se tornou a segunda maior construtora do país em área construída. Antes do programa, em 2007, ela ocupava o modesto vigésimo sétimo lugar no ranking.
A empresa se definia como o “o mais relevante player no segmento de baixíssima renda no Brasil” e diz ter sido a maior construtora da faixa 1 do Minha Casa Minha Vida, modalidade do programa voltada às populações de baixa renda – até R$ 1.800 por mês. A empresa diz ter feito mais de 91 mil unidades no programa, o que teria um potencial de gerar a ela R$ 5,8 bilhões.
O Minha Casa Minha Vida, em sua faixa 1, paga às construtoras um valor fixo por cada unidade construída. Atualmente, o limite é de R$ 98 mil. Isso permite que uma empresa baixe os seus gastos em busca de lucratividade, incluindo, aí, a própria construção. Só é preciso cumprir as exigências mínimas estabelecidas pelo Ministério das Cidades, como a ligação com rede de água e esgoto e um tamanho mínimo, que, na época, era de 39 m2. No caso do Viver Melhor, a Caixa Econômica Federal comprou suas 8.855 unidades por R$ 424 milhões.
Em seu site de relacionamento com investidores, a companhia mostra que seus “diferenciais competitivos” são justamente as características presentes no Viver Melhor: o foco em empreendimentos populares de grande escala, em mercados “pouco explorados” e construções padronizadas. À época, a Direcional se orgulhava da maneira como esses prédios haviam sido erguidos. O seu sistema pré-moldado, utilizado em todo o Brasil, seria à prova de erros.
Hoje, a empresa nega os problemas do conjunto. Por e-mail, ela afirmou que “uma análise recente realizada no condomínio comprova que não há problemas estruturais que geram riscos aos moradores.” Segundo a Direcional, o laudo da Defensoria Pública está defasado.
Diante dos cortes orçamentários do governo, a empresa tem se afastado dessa faixa de renda. Ainda assim, mais de metade do seu faturamento de R$,14 bilhão em 2016 veio dos cofres do governo. Em um ano, a empresa mostrou que quase triplicou a sua atuação nas faixas 2 e 3 do Minha Casa Minha Vida, destinada a famílias com renda de até 9 mil reais.
Violência e custos altos
O conjunto tem problemas que vão muito além das rachaduras. Em fevereiro, um apartamento do Viver Melhor foi invadido, e seu morador, morto e espancado por sete homens. Na semana seguinte, outra moradora foi presa, acusada de decapitar um traficante do conjunto em dezembro de 2017.
À violência, se soma a falta de transporte. Ainda em fevereiro, moradores do Viver Melhor incendiaram pneus e bloquearam a saída do conjunto. Eles pediam o aumento das linhas de ônibus que levam ao centro da cidade, a 27km dali. Em anos anteriores, o alvo do fogo foram os próprios ônibus.
Na mesma semana, uma reunião entre representantes de uma escola militar e moradores do conjunto foi interrompida após um curto diálogo. Os moradores se exaltaram quando um policial militar insinuou que a escola civil local seria um antro de prostituição.
“Aqui dentro é igual a um garimpo, tudo é caro”
Mesmo diante dessas situações, os moradores que ouvimos elegem outro problema como o pior do conjunto: o preço das contas de água e luz, que superam em muito as parcelas dos apartamentos.
Cristina conta que paga R$ 62 por mês no apartamento. Ela mostrou suas contas de luz nos últimos dois meses, ambas superiores a R$400. Já a conta de água ultrapassa R$ 200 mensais, mesmo com o poço artesiano instalado no conjunto.
“Isso aqui não é baixa renda não, é condomínio de luxo”, diz Norma Ferreira Dutra, moradora de 60 anos. “Aqui dentro é igual a um garimpo, tudo é caro”. Devido às contas de luz, Norma conta que atrasou as parcelas do apartamento por mais de um ano, e agora corre o risco de perdê-lo. Em busca de pagar as contas atrasadas, ela agora trabalha das 4 da manhã às 8 da noite em uma lanchonete improvisada dentro do conjunto.
O preço do quilowatt-hora, como é medido o gasto de luz, é o dobro daquele praticado em média no resto de Manaus, que, por sua vez, já é a sexta mais cara entre as capitais, devido a sua dependência em termoelétricas.
Os moradores não têm clareza da razão para as contas serem tão altas. Alguns deles creditam à quantidade de “gatos” nas linhas de luz, devido às ocupações irregulares no entorno do conjunto. Além disso, eles não recebem o desconto da chamada tarifa social, estabelecida pelo Governo Federal em 2010. O desconto completo só é dado para quem consome menos de 220 kWh por mês, um valor baixo para o consumo normal de uma família. Por isso, nenhum dos moradores visitados pela reportagem recebia esse desconto.
Já a chamada “tarifa de esgoto” dobra os preços com a água no local, vinda de um poço artesiano – ainda que parte do encanamento no conjunto esteja entupido e o esgoto vaze para a rua.
“Se eu tivesse um pedaço de barranco, eu já tinha saído.
A incapacidade de pagar a energia e a luz é um dos motivos para os moradores desistirem da sua casa própria. Os apartamentos podem ser comprados por menos de R$ 20 mil reais, mas o comprador muitas vezes também tem que quitar as dívidas do antigo dono com luz e água. Essas vendas são proibidas, mas os imóveis são facilmente encontrados em sites de venda online e em comunidades do Facebook e negociados em contratos de gaveta. Questionada sobre as vendas, a Caixa não soube especificar quantos casos aconteceram e quantos ações foram movidas por ela a respeito.
Enquanto alguns vendem seus apartamentos, outros aguardam uma indenização para poder sair do local. A Defensoria Pública do Estado pede R$ 133,4 milhões ao Estado do Amazonas e à União para indenizá-los, mas o caso sequer foi julgado em primeira instância.
A Secretaria de Estado de Habitação diz que “não é responsável pela obra dos residenciais”, e que era responsável somente pela seleção dos beneficiados.
Questionada, a Caixa se resumiu a dizer que apresentou sua defesa no processo e que mantém um 0800 para receber reclamações: “Todas as demandas recebidas são encaminhadas à empresa construtora para tratamento (vistoria e execução de reparos, conforme a pertinência) recebendo o reclamante o devido retorno de sua reclamação.”
A Direcional, por sua vez, disse que “uma equipe sua fica à disposição dos moradores no empreendimento”, o que é negado pelos moradores e não foi encontrado por mim nos cinco dias em que estive no local.
Enquanto isso, Maria Cristina aguarda a indenização sem muita esperança. “Se eu tivesse um pedaço de barranco, eu já tinha saído. Eu não vou levar minha família para ficar lá na beira da pista,” diz. “Eles só vão abrir o olho, quando o pior acontecer. Mas se acontecer o pior, por mais que eles indenizem, não traria a minha vida de volta para a minha família.”
Esta reportagem contou com o apoio do Lincoln Institute of Land Policy e do IPYS.
Você sabia que...
O Intercept é quase inteiramente movido por seus leitores?
E quase todo esse financiamento vem de doadores mensais?
Isso nos torna completamente diferentes de todas as outras redações que você conhece. O apoio de pessoas como você nos dá a independência de que precisamos para investigar qualquer pessoa, em qualquer lugar, sem medo e sem rabo preso.
E o resultado? Centenas de investigações importantes que mudam a sociedade e as leis e impedem que abusadores poderosos continuem impunes. Impacto que chama!
O Intercept é pequeno, mas poderoso. No entanto, o número de apoiadores mensais caiu 15% este ano e isso está ameaçando nossa capacidade de fazer o trabalho importante que você espera – como o que você acabou de ler.
Precisamos de 1.000 novos doadores mensais até o final do mês para manter nossa operação sustentável.
Podemos contar com você por R$ 20 por mês?