Ao longo da última semana, uma van branca fez diversas viagens entre a Mooca, na zona leste de São Paulo, e o autódromo de Interlagos, onde ocorria o Lollapalooza na zona sul. O veículo, modelo Sprinter, levou dezenas de pessoas em situação de rua ao festival. Não para ver os shows, mas para ajudar em trabalhos pesados na montagem e desmontagem dos palcos.
Os trabalhadores, contratados sem qualquer formalização, contam que recebiam entre R$ 40 e R$ 50 por uma jornada de dez a doze horas – um vigésimo da entrada do festival, que custava R$800.
A denúncia de que os palcos do festival teriam sido erguidos com violações trabalhistas foi divulgada no Facebook pelo padre Julio Lancelotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua. Em vídeo publicado na manhã desta segunda-feira, ele conversou com um trabalhador que havia erguido o palco em anos anteriores. Nesta terça-feira, a Pastoral do Povo de Rua entrou com um pedido para que o Ministério Público do Trabalho investigue a situação.
“O equipamento sou eu: é meu corpo, é minha mão. Eles não dão nada.”
Um dia depois da publicação do vídeo, a reportagem acompanhou o padre na Zona Leste da cidade para conversar com mais moradores. Cinco deles, cujos nomes serão omitidos por questões de segurança, contaram que prestaram algum serviço ao festival na última semana. Todos disseram que não recebiam nenhum tipo de equipamento de proteção, como capacetes, luvas ou sapatos adequados. “O equipamento sou eu: é meu corpo, é minha mão. Eles não dão nada”, disse um deles.
A segurança, contam eles, era inexistente. “Esses dias, caiu uma treliça grandona que, se pegava, matava. [A gente] corre risco. Se falar que não corre, é mentira”, disse o mesmo trabalhador.
Quatro deles contam que eram encarregados de trabalhos simples, mas extremamente pesados, como carregar caixas de som e as estruturas para dentro e fora de caminhões. Em alguns casos, também ajudavam na desmontagem do palco.
Outro trabalhou em um dos camarotes, onde carregava caixas de água, bebida e sacos de gelo. “Brincando, um cara me falou assim: ‘se eu pegar alguém comendo aqui, eu vou jogar daqui para baixo’ (…) Nós [estávamos] vendo um monte de comida sendo jogada fora, não podia nem comer”, disse o mais velho do grupo, de 58 anos. Foi o único que conta ter assistido um show no festival, da banda norte-americana The Killers.
“Empresas especializadas”
Esses trabalhadores contaram que dormiam em albergues na região da Mooca, onde foram avisados na véspera do trabalho que um “recrutador” iria esperar com a van para levar os trabalhadores ao festival.
No dia seguinte, em algum local próximo, um homem selecionava os trabalhadores entre algumas dezenas de moradores em situação de rua que se candidatavam para o serviço. Nessa triagem, ficavam de fora aqueles que estavam de chinelo ou de bermuda e aqueles que não pareciam sóbrios. “Ele já pega os conhecidos e os que têm mais saúde, quem está mais inteiro, umas pessoas altas e mais fortes. Dificilmente ele pega alguém que está debilitado”, disse um dos trabalhadores.
“Ele já pega os conhecidos e os que têm mais saúde, quem está mais inteiro, umas pessoas altas e mais fortes.”
Segundo o padre Julio Lancelotti, o mesmo recrutador já levou os moradores para trabalhar em outros shows, como a Virada Cultural e o da cantora Katy Perry no Allianz Parque.
Apesar de reclamarem do pagamento baixo e da ausência de proteção, dois dos trabalhadores disseram que o serviço vale a pena, já que não havia outro disponível naquele dia. “Eu não posso falar que é um trabalho totalmente bom, porque eu vejo algumas irregularidades. Mas de qualquer forma eu agradeço e me fortalece”, disse.
Outros três dizem que nunca mais farão o mesmo serviço. “Mesmo se eu estiver precisando, eu prefiro vender bala no farol do que trabalhar para esses caras aí”, disse um morador em situação de rua que trabalhou somente em um dos dias do festival.
Lancelotti diz que não é contra a oferta de trabalhos aos “irmãos de rua”, como ele se refere aos moradores da região. Ele, porém, diz que isso deve ser feito em situação regularizada.
A Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT, prevê diversas maneiras para contratar trabalhadores temporários e formalizá-los. Entre elas, está a possibilidade de contratá-los como autônomos ou até mesmo de assinar a carteira de trabalho apenas pelos dias trabalhados. Em ambos os casos, os empregadores teriam de cumprir com todas as regras de segurança do trabalho determinadas pela legislação e pelas normas técnicas do ministério do Trabalho e Emprego – incluindo o fornecimento de equipamentos como capacetes e luvas.
The Intercept Brasil enviou sete perguntas à assessoria do Lollapalooza sobre as informações prestadas pelos moradores, para saber de que forma o festival controla as condições de trabalho nas empresas subcontratadas e quais são elas. A empresa não respondeu às perguntas e se resumiu a dizer que “a T4F comunica que contratou empresas especializadas para prestação de serviços diversos para o Festival, e sempre prezou pela segurança dos seus funcionários e prestadores de serviços, seja mediante o uso de equipamentos de proteção ou outros”.
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