Um funk que viralizou em 2012 foi o prenúncio do que aconteceria ao Rio de Janeiro de hoje: “A cidade é nossa! Tá tudo dominado! Eu sou do bonde do Morcego!” A letra, que enaltece a poderosa Liga da Justiça – grupo criminoso comandado por Ricardo Teixeira da Cruz, o Batman – já antevia o tamanho que as milícias teriam no jogo de tabuleiro do poder paralelo da cidade. Na metrópole do Rio, os grupos comandados por policiais, bombeiros, vigilantes, agentes penitenciários e militares, fora de serviço ou ainda na ativa, aterrorizam a população mais do que os históricos senhores do tráfico como o Comando Vermelho.
Um levantamento inédito feito pelo The Intercept Brasil, com base em informações obtidas com exclusividade do Disque Denúncia, mostra que, das 6.475 ligações anônimas que o serviço recebeu em 2016 e 2017 – referentes às atividades de traficantes e paramilitares na capital –, 65% delas denunciam milicianos. Como não há dados sistematizados pelo governo sobre o avanço das milícias no Rio, o volume de denúncias – analisadas por palavras-chave – são o mais forte indicativo dos caminhos do crime organizado.
Principais suspeitos da execução da vereadora Marielle Franco, os paramilitares se alastram pelas zonas ainda não colonizadas por traficantes explorando um modelo de negócios baseado em extorsão e exploração clandestina de serviços como gás, luz, televisão a cabo e as vans do transporte alternativo. Quando encontram bocas de fumo, eles avançam a golpes de metralhadora.
Nascidos no vácuo do poder público em meados dos anos 2000 sob a aura de proteção das comunidades contra o tráfico, os grupos de “autodefesas comunitárias” foram apoiados e encorajados por governantes, cresceram e se tornaram o que vemos hoje: políticos e empresários – concorrência que bate de frente com as facções de traficantes pelo controle de uma mina de ouro, as “prefeituras” dos bairros. Tudo isso ao custo de muito sangue. Os “seguranças comunitários” se tornaram, também eles, senhores da vida e da morte.
A semente plantada frutificou. Dentre os dez bairros da região metropolitana com maior número de denúncias nesse período, apenas um não fica na cidade do Rio – Cabuçu, em Nova Iguaçu, na Baixada (9º lugar). Os demais mostram como os milicianos estão sufocando os traficantes na capital: Campo Grande, Santa Cruz, Jacarepaguá, Sepetiba, Guaratiba, Taquara, Cascadura, Praça Seca, Paciência e Bangu. Destes, apenas o bairro de Cascadura não se situa na Zona Oeste da cidade. É lá reduto por excelência inclusive de políticos eleitos na cidade.
Milícia is the new tráfico
“Na esquina da Rua X com Rua Y, no Morro do Abacatão, localiza-se um comércio chamado W, onde podem ser vistos, nos finais de semana, os dois filhos do miliciano morto em 2016, de vulgo Azul, os quais estão tentando implantar o tráfico de drogas na localidade com o apoio de traficantes do Morro X”. Era fim da manhã de 17 de março de 2017 quando o Disque Denúncia recebeu a informação de que milicianos estariam instalando bocas de fumo.
Há uma década, usar drogas em áreas de milícia era terminantemente proibido, para “proteção das criancinhas“. Mas as milícias – que vendiam favelas de “porteira fechada” – hoje também vendem drogas e são concorrentes do tráfico. Dependendo da estratégia do negócio, até alugam bocas de fumo de traficantes.
A história não morreu com Jorge Luiz Braga Antunes, o paramilitar conhecido como Azul. A batalha que ilustra bem esse cruzar das linhas continuou matando.
Quarenta quilômetros longe dali e um ano antes, na zona norte do Rio, a coisa já não era diferente. “Na avenida citada, próximo a um mercado, localiza-se o bar, onde frequentemente, na parte da tarde, pode ser encontrado o miliciano que atua na área de jogo do bicho, extorsão de comerciantes e tráfico de entorpecentes. O citado costuma andar armado, junto com outros milicianos. Ele paga propina para um policial conhecido como Y, que ele chama de ‘sócio’. Ele pode também ser encontrado na Rua X, número 00, Bairro Z, casa de seus familiares”. O telefonema ao Disque Denúncia veio de Deodoro, bairro de classe média baixa que também parece ter dono.
Como essas, há outras dezenas de informações sobre milicianos-traficantes – ou vice versa – recebidas pelo serviço nos últimos dois anos.
Minha Casa, Minha Milícia
Os milicianos ganharam um forte impulso em meados dos anos 2000, quando cresceram exponencialmente, chegando ao ponto de dominar conjuntos habitacionais inteiros do programa federal Minha Casa, Minha Vida. No processo, eliminaram adversários políticos e quem mais estivesse pela frente, um a um.
“O policial faz vista grossa no momento da invasão, se ausentando do local. Depois que a milícia se instala, o policiamento retorna, desta vez para impedir o retorno dos traficantes. Este é um fenômeno que vem de dentro do poder” disse o então comandante do Bope, coronel Mário Sérgio de Brito Duarte, ainda em 2006. Para ele, a expansão desses grupos só era possível com apoio da população e a participação de parcela das unidades policiais dessas regiões.
Os paramilitares, que eram considerados um mal menor, utilizados informalmente (mas publicamente) como estratégia de combate ao tráfico, se tornaram o maior problema da segurança pública do Rio de Janeiro. Ainda assim continuam sendo tratados como colaterais aos traficantes, ganhando cada vez mais dinheiro e espaço para crescer. E matando muito.
Nesta época, uma favela dominada pelo tráfico era tomada por uma milícia a cada 12 dias. Coordenadas por agentes de segurança pública, políticos e líderes comunitários, como apontou relatório elaborado pelo Gabinete Militar da prefeitura do Rio. Era o início de uma época de ouro.
Naquele 2006, a Subsecretaria de Inteligência da Secretaria de Segurança revelou que, em apenas 20 meses, o número de comunidades dominadas por milícias havia saltado de 42 para 92. Hoje, há milícias em ao menos 37 bairros e 165 favelas da Região Metropolitana. Cerca de dois milhões de pessoas vivem em áreas dominadas por milícias na região metropolitana do Rio, o equivalente a um sexto da população total da área.
UPP: paz para crescer
Se a capital do estado concentrou quase 70% das denúncias sobre milícias, a Baixada Fluminense, onde há uma década os milicianos eram raros, já responde por 30% delas. Dentre os municípios dessa região, Nova Iguaçu lidera, com folga, o preocupante ranking, acumulando 745 denúncias no período estudado, ou seja: 39% do total de denúncias sobre milícias na Baixada. A cidade ainda se destaca por, assim como a capital, apresentar mais denúncias relativas às milícias do que de facções do tráfico (76%), seguida por Itaguaí e Seropédica, também na Baixada Fluminense, respectivamente 67% e 99%.
O único projeto de segurança pública implantado pelo governo do estado nos últimos anos, as Unidades de Polícia Pacificadora, deixaram territórios livres aos paramilitares. Com exceção da UPP Mangueirinha, em Duque de Caxias, todas as unidades ficam na capital – nenhuma delas em área de milícia. “Não existe poder paralelo”, diz José Cláudio Souza Alves, autor do livro “Dos Barões ao Extermínio: a História da Violência na Baixada Fluminense”, sobre a atuação das milícias na região. “Além de serem compostas em grande parte por agentes públicos de segurança, elas já elegem vereadores, deputados, comandam secretarias de governo. É parte do poder legalmente constituído.”
Este poder tem forte impacto na Baixada Fluminense, região com histórico de violência há décadas. Com as UPPs concentradas na cidade do Rio, os traficantes migraram para a Baixada, onde disputam as mesmas áreas das milícias. Um caldeirão de violência como o Rio jamais viu.
“Foi criado um cenário ainda mais grave de assassinatos por causa das disputas entre tráfico e milícia. O efeito das UPPs é o de reconhecimento da Baixada como uma grande área de fronteira que permite uma recomposição do tráfico”, explica Souza.
Os números são realmente alarmantes. Na capital, a taxa de letalidade violenta – que inclui homicídios dolosos, roubo seguido de morte, lesão corporal seguida de morte e mortes em confronto com a polícia – vem crescendo nos últimos 3 anos. Saltou de 24.1 para cada 100 mil habitantes em 2015 para 32.5 apenas dois anos depois, segundo o Instituto de Segurança Pública. Na Baixada, em 2015, a taxa era de 45.4 para cada 100 mil habitantes. Em 2017, atingiu 60.6.
E essas mortes têm instrumento determinado. Em 2016 – últimos dados disponíveis – 79% das vítimas de mortes intencionais na Baixada foram por armas de fogo. Número que ultrapassa a média do estado, de 74%.
A virada: só no sapatinho
Os grupos paramilitares chamaram atenção popular em 2008, depois da tortura de jornalistas do Jornal O Dia cometida por milicianos do Batan, em Realengo, zona oeste da cidade. “Isso deflagrou uma reação da mídia e da sociedade. A partir daí, a Assembleia Legislativa aprovou a CPI sobre o tema, que despertou a atenção pública para a gravidade do problema e acusou mais de duas centenas de pessoas de pertencerem a essas organizações”, afirma Thais Duarte, uma das autoras do livro “No Sapatinho”, que analisou a ação das milícias no Rio no período.
Como quase tudo no Rio, essa atenção durou pouco. “Como no Rio de Janeiro, a figura do ‘inimigo’ costuma pairar em torno do traficante de drogas e não necessariamente de outros tipos de criminosos, a ação do Estado se pauta muito mais pela lógica da guerra às drogas, ao invés de se ater em profundidade a outras questões”, explica a autora. “As ações não foram desmobilizadas, mas perderam força em relação ao momento da realização da CPI das milícias na ALERJ.”
A vereadora Marielle Franco – executada com o motorista Anderson Pedro no dia 14 de março – trabalhou exatamente nesta CPI, com o deputado Marcelo Freixo. Com o fim dos trabalhos e uma faxina inicial aparente, pouco ou nada mudou no modo como o poder público atua. Enquanto milicianos voltaram a frequentar os palácios do poder, Freixo, ameaçado de morte, segue até hoje com escolta policial. E Marielle foi morta, ao que tudo indica, por esse mesmo poder.
“A repressão estatal não conseguiu desarticular as milícias, apenas enfraquecê-las. A evolução mais marcante da operação das milícias diz respeito à crescente discrição e sigilo das suas atividades, que contrastam com a ostentação de anos anteriores e que dificultaram as investigações e as prisões dos seus membros”, explica Thais Duarte. “No sapatinho” foi, justamente, a expressão mais utilizada pelos entrevistados da pesquisa, lançada em 2012, para se referir ao novo estilo de atuação dos paramilitares.
Ano eleitoral. Ano próspero.
Agora “no sapatinho”, antes, ostentação. Para eleger a candidata a vereadora Carminha Jerominho em 2008 – filha e sobrinha dos milicianos Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho, e Natalino Guimarães, ambos presos –, a milícia matou, de uma vez, sete pessoas na Ilha do Governador. O objetivo era fingir que o ataque foi de traficantes, espalhar medo, e assim, reconquistar apoio no Morro do Barbante. Cinco testemunhas foram posteriormente caçadas e mortas.
Carminha estava presa quando recebeu a notícia de que tinha sido eleita. Dias depois, saiu da cadeia e foi recebida calorosamente ainda no aeroporto. Chegou a ser empossada, mas teve o mandato cassado seis meses depois por irregularidades na prestação de contas da campanha. Caiu em uma desgraça que pouco durou. Depois de ser rejeitada até pelos próprios pares, nas últimas eleições ela botou a cara no sol mais uma vez. A ex-vereadora desafiou Freixo e apoiou seu concorrente à Prefeitura do Rio, o pastor Marcelo Crivella, que agradeceu: “todo apoio é importante“.
Desde a morte de Marielle Franco, outras duas pessoas com ligação política foram mortas no Rio com cheiro da pólvora dos paramilitares. Paulo Henrique Dourado, o Paulinho P9, era assessor de Renato Cozzolino, membro da família que é praticamente a “dona” de Magé. Ele foi executado em 20 de março. No dia seguinte, o irmão do ex-vereador Ricardo Crespo de Araújo, o Castor, foi assassinado em São Gonçalo, também região metropolitana. De acordo com moradores, ele controlava serviços de gatonet em áreas do município.
“A gente percebe que estamos em ano eleitoral quando tudo isso começa”, diz o criador do Disque Denúncia, Zeca Borges, que está em contato com o Tribunal Regional Eleitoral e o Ministério Público para repasse de informações. “Isso geralmente fica mais intenso até as convenções, mas continua até o voto”.
A CPI das Milícias provocou a prisão de alguns vereadores e deputados, mas a influência dos milicianos nas eleições não foi abalada. Só no último ano eleitoral, o Disque Denúncia recebeu 87 informações que envolviam candidatos suspeitos de associação com milícias. “De fato, sob a aura de uma pretensa representatividade em relação às comunidades das quais fazem parte, os milicianos se candidatam a cargos no Legislativo e, assim, garantem maior estabilidade, poder e legitimidade no controle local”, explica Thais Duarte, que alerta: “Isso é um ponto para ser observado em relação às eleições de 2018”.
Intervenção? E daí?
Novos territórios, ano eleitoral, paz para crescer. Suspeitas de praticar dezenas de eliminações políticas, as milícias seguem atuando sem serem incomodadas, mesmo sob a intervenção militar federal que já dura mais de um mês. As operações do Exército ignoram as áreas dominadas por paramilitares. O interventor chegou a dizer que agiria contra a corrupção na polícia, mas as visitas feitas em Batalhões focaram apenas nas condições de trabalho.
Milicianos agora agem debaixo das barbas dos militares. Alvo de disputa entre traficantes do Comando Vermelho e milícias, a Praça Seca é um exemplo disso. O bairro da zona oeste do Rio tem registrado índices de tiroteios contínuos absurdos. Só este ano já foram registrados 100 tiroteios/disparos de arma no bairro, de acordo com o Fogo Cruzado, data lab que mensura os impactos de violência armada.
“São horas de tiroteios. Porque não fazem operação aqui. Cadê o exército?”, desabafou anonimamente uma moradora, que passou cinco horas dentro do banheiro de sua casa, para se proteger, no dia 17 de março. No dia seguinte, foram mais de 13 horas de tiroteios. Uma semana depois, outras 17 horas. Sem polícia. Sem exército.
“Morei na Praça Seca por 24 anos e nunca vi a situação como está hoje. Não que não houvesse tiroteio, mas eram muito raros. De uns cinco anos pra cá, eles pioraram de intensidade e frequência”, explica uma ex-moradora do local que pediu anonimato já que hoje vive em um bairro vizinho. Frequentemente, corpos são desovados em plena luz do dia, pessoas são atingidas por balas perdidas no meio da Cândido Benício – a via expressa que corta uma praça –, tiros já atingiram até a estação do BRT. “Já faltei a compromissos por não conseguir sair de casa por causa dos tiros. Tenho amigos que perderam provas de concurso, perderam vagas de emprego por causa da violência. Tá insustentável, e o pior de tudo é que ninguém na grande mídia fala sobre o assunto”.
A situação do Rio é realmente muito ruim, e a solução apresentada – a intervenção federal de cunho militar – é apenas mais uma oportunidade de boas fotos para jornais e TVs. Crimes como assassinatos e roubos de cargas cresceram neste período, exatamente como nos últimos anos de ação das Forças Armadas.
Estes cenários não são novos e os precedentes deixam a dica de que pouco ou nada vai mudar. O interventor federal no Estado foi o coordenador da segurança na Olimpíada. Neste mesmo período, os agentes da Força Nacional que participaram do esquema de segurança dos Jogos tiveram de se submeter às ordens da milícia na Zona Oeste do Rio. Segundo alguns deles denunciaram ao Extra, eles não podiam circular armados pelo bairro Gardênia Azul e foram impedidos até de instalar internet nos apartamentos onde ficaram alojados, no condomínio Vila Carioca, do “Minha casa, minha vida”, no bairro vizinho, o Anil.
Assustador, não? O Bonde do Morcego tem razão: tá tudo dominado.
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