Em 2004, o então senador Barack Obama maravilhou o país com um discurso, na Convenção Nacional do Partido Democrata, que tinha por objetivo unir o país e derrubar as divisões partidárias.
“Neste exato momento, estão a postos aqueles que se preparam para nos dividir, os mestres da manipulação e mercadores da publicidade negativa, que adotam a política do vale tudo”, disse ele. “Bem, digo a eles esta noite que não há uma América liberal e uma América conservadora; há os Estados Unidos da América.”
Ele falou sobre como as pessoas nos chamados “estados azuis” [onde há maioria de eleitores do Partido Democrata] também “cultuam um Deus incrível” e como as pessoas dos “estados vermelhos” [onde a maioria é do Partido Republicano] também têm amigos gays. “Não há uma América negra, uma América branca, uma América dos latinos e uma América dos asiáticos; há os Estados Unidos da América”, defendeu, e foi recebido com aplausos estrondosos.
Ao longo dos anos que se transcorreram desde então, o debate nacional sobre o casamento igualitário arrefeceu, mas tornou-se ainda mais premente a questão de como nos enquadramos em padrões políticos identificados por cores. Ao mesmo tempo em que aumentou o apoio ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, reduziu-se o apoio ao “casamento interpolítico” – o instituto Gallup questionou pessoas adultas sobre a possibilidade de que seus filhos ou filhas se casassem com alguém de outro polo do espectro político.
E se a origem dessa polarização tiver muito pouco a ver com o que as pessoas realmente pensam de certas questões, ou com aquilo em que acreditam? E se as pessoas estiverem polarizadas simplesmente por rótulos como “liberal” e “conservador” e pela forma como imaginam seus oponentes, mais do que por discordâncias sobre temas como tributos, aborto e imigração?
Essa notícia não surpreenderia ninguém que já gastou tempo discutindo nas seções de comentários de veículos de notícias, e é a sólida conclusão de um novo estudo conduzido por Liliana Mason, professora da Universidade de Maryland.
Seu artigo, “Ideologues Without Issues: the Polarizing Consequences of Ideological Identities” (“Ideólogos sem questões: as consequências polarizadoras das identidades ideológicas”), publicado no final de março pela editora Public Opinion Quarterly, usou dados de 2016 dos institutos de pesquisa Survey Sampling International e American National Election Studies para estudar como e por que os norte-americanos estão polarizados politicamente.
Mason usou métricas que permitem determinar tanto o posicionamento das pessoas em determinadas questões quanto sua identificação política. Ela elegeu seis das questões mais importantes da pesquisa: “imigração, sistema de saúde [Affordable Care Act, o “Obamacare”], aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo, controle de armas e importância relativa entre a redução do déficit e o desemprego”, e a identidade social foi mensurada em uma escala entre liberais e conservadores.
Ela então buscou correlacionar essas respostas com perguntas em que os entrevistados respondiam que tipo de interação poderiam ter com alguém que diferisse deles politicamente: ser vizinhos, se casar, ser amigos, conviver socialmente.
O que ela descobriu foi que a identidade política adotada pelas pessoas tinha um valor preditivo muito maior a respeito das suas preferências de interação social.
Assim, por exemplo, “sair do campo de menor identidade com um rótulo ideológico para o de maior identidade aumenta em 30 pontos percentuais a preferência por se casar com alguém do mesmo grupo ideológico”. Em outras palavras, se você é um liberal ferrenho, é muito mais provável que você queira morar perto de outros liberais ferrenhos. Nem tanto, porém, se você apenas discorda frontalmente deles sobre alguma questão específica, como o aborto.
A pesquisadora prossegue: “o efeito da ideologia com base em temas é menos da metade do efeito da ideologia com base em identidade, para cada um dos elementos de distância social […] Esses efeitos são mensuráveis e significativos, robustos para os controles em relação à ideologia baseada em temas e demonstram que os americanos estão se dividindo socialmente em razão de se denominarem liberais ou conservadores, a despeito das reais diferenças políticas”.
“Há muito tempo se debate na ciência política se o público americano é polarizado ou não”, disse Mason em uma entrevista dada a The Intercept. “Estou de certa forma defendendo a ideia de que na medida em que há múltiplas identidades sociais que se agrupam, as pessoas odeiam mais o que está fora do grupo, independentemente das posições que adotem sobre políticas específicas.”
Ela observou, por exemplo, que os americanos que se identificam mais intensamente como conservadores, independentemente de se posicionarem à esquerda ou à direita em determinadas questões, sentem mais aversão aos liberais do que pessoas que se identificam apenas levemente como conservadores, ainda que tenham posicionamentos muito à direita em certos temas.
Nos últimos anos, tornou-se evidente a frágil relação que alguns eleitores estabelecem com suas preferências em termos de políticas. Donald Trump conseguiu mudar radicalmente a posição do seu partido, que sempre apoiou o livre comércio e passou a se opor a ele, simplesmente adotando ele mesmo esse posicionamento na questão. Os democratas, por sua vez, debocharam de Mitt Romney em 2012 por considerar a Rússia o maior adversário geopolítico dos Estados Unidos, e agora mudaram de lado e enxergam a Rússia exatamente assim. Em relação ao sistema de saúde, a estrutura do Affordable Care Act foi inicialmente imaginada pela conservadora Fundação Heritage e implementada em Massachusetts como Romneycare. Uma vez, porém, que se tornou Obamacare, os líderes republicanos determinaram que se tratava de algo ruim, e assim ele passou a ser visto.
Mason considera que as implicações dessas divisões tão rasas entre as pessoas poderiam dificultar o trabalho da democracia. Se seus objetivos na política não estão ligados a determinadas questões, mas à derrota daqueles que você considera inimigos, pelo que exatamente você trabalha? (E não é de se surpreender que exista uma categoria de ativismo universitário dedicada simplesmente a provocar aqueles que são percebidos como oponentes políticos.)
“O fato de que até algo que deveria se pautar pela razão e pela ponderação, pelo que queremos que o governo faça, que até isso seja altamente motivado pelas identidades é um problema para o debate, para a negociação e para o funcionamento básico de um governo democrático. Porque, se mesmo os nossos posicionamentos sobre determinadas políticas não dizem respeito ao que queremos que o governo faça, mas a quem vai ganhar, então ninguém está realmente preocupado com o que acontece no governo”, comentou a pesquisadora. “Só nos importamos com quem está ganhando em determinado momento. E isso é realmente perigoso para a tentativa de manter um governo democrático.”
Ela sugeriu uma solução: passar algum tempo conversando com seus vizinhos, amigos e pessoas queridas sobre outras coisas além de política.
“O problema não está relacionado às políticas, porque na média somos relativamente moderados no que diz respeito a elas. Conversar com as pessoas sobre política é de certa forma a pior solução de todas, porque só o que isso faz é ativar as nossas identidades políticas, que fazem com que não gostemos uns dos outros. O melhor a fazer se o seu vizinho tem uma orientação política diferente da sua é conversar sobre seu cachorro, ou sobre o que está acontecendo na família”, recomendou Mason. “Em geral, a melhor forma de sair dessa polarização é começar a pensar nos outros como seres humanos.”
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