(Esse texto contém atualização)
No dia 14 de março, The Intercept Brasil recebeu a denúncia de um paciente que afirmava não ter encontrado o 3 em 1, principal remédio para tratamento da Aids, distribuído gratuitamente na rede pública de todo o Brasil. Ele tinha ido ao Centro de Referência e Tratamento DST/AIDS de São Paulo. A pessoa, que pediu para não ser identificada, enviou para a reportagem a cópia de sua receita com uma anotação feita à mão pelo farmacêutico, na qual o funcionário confirmava a falta do medicamento: “faltou 02 frascos”.
Nós ligamos para o CRT de São Paulo, em 27 de março, à procura do 3 em 1. A funcionária afirmou que o remédio ainda estava em falta, mas que “a situação deveria se normalizar no dia seguinte”. No lugar do medicamento, o centro estava distribuindo as três substâncias separadas que compunham a fórmula do 3 em 1. Ou seja: o paciente que topasse levar o remédio teria de tomar três comprimidos, e não apenas um, como antes.
No Brasil, mais de meio milhão de pessoas recebem o tratamento antirretroviral do Ministério da Saúde. No ano passado, foram distribuídas 438 milhões de unidades do remédio. Porém, quando uma medicação com que o paciente já está acostumado é fracionada, ou quando há dificuldade de acesso a ela, existe grande risco de desestímulo ao tratamento, segundo os especialistas que ouvimos. A falta do 3 em 1 põe em risco todo o sistema de tratamento do HIV pelo qual o Brasil ficou mundialmente famoso.
Quando uma medicação com que o paciente já está acostumado é fracionada, ou quando há dificuldade de acesso a ela, existe grande risco de desestímulo ao tratamento
Decidimos ligar para o Ministério da Saúde e perguntar: a distribuição sofre problemas no Brasil todo ou somente em São Paulo? O MS foi categórico: “Não há interrupção na assistência às pessoas com HIV, nem falta de antirretroviral em nenhum lugar do país”. E informou que cada Estado é responsável pela distribuição do medicamento.
Chegou a faltar em 7 estados
Fomos checar se o Ministério estava falando a verdade. E não estava. Ligamos para todos os órgãos estaduais do país apontados pelo próprio MS como responsáveis pela distribuição desses medicamentos nas capitais. Ao todo, entramos em contato com 50 centros onde os pacientes teriam que encontrar o remédio. Descobrimos que houve algum tipo de problema com o fornecimento – da falta do 3 em 1 a baixas no estoque – em 14 estados.
Além de São Paulo, o 3 em 1 foi substituído pela combinação de comprimidos em Santa Catarina, Pernambuco, Ceará, Acre, Alagoas e no Rio de Janeiro. Na capital carioca, pacientes chegaram a ficar dias sem receber nem mesmo as substâncias separadas: “Eu pego mensalmente e nunca havia tido nenhum problema de fornecimento, mas me informaram que eu não teria o 3 em 1 e que me ligariam para buscar depois. Aí quando me ligaram em entregaram os comprimidos separados”, afirmou um paciente.
“O 3 em 1 é a combinação de 600mg de efavirenz, 300mg de lamivudina e 300mg de tenofovir. Estas substâncias podem estar juntas em um único comprimido ou separadas em dois ou três, não fazendo diferença no resultado do tratamento. O que pode causar problemas é ficar sem tomar os remédios, mesmo que em um período curto. O vírus pode criar resistência à medicação e os remédios param de fazer efeito”, explica o médico infectologista Mauro Sergio Treistman, que atende pacientes que tiveram problemas com a distribuição no Rio de Janeiro. Nesse caso de resistência, o paciente teria que modificar o tratamento e dar início a um novo período de adaptação aos medicamentos.
“Falta de pagamento aos fabricantes asiáticos”
Nos outros sete estados (Piauí, Minas Gerais, Paraíba, Amapá, Pará, Rondônia e Roraima) encontramos transtornos dos mais variados, desde a oferta de antirretrovirais com substâncias diferentes das encontradas no 3 em 1 até a falta de outros medicamentos. Em Minas Gerais, o governo estadual está regulando a distribuição aos pacientes porque o volume do estoque está muito baixo. Na Paraíba e no Piauí, as secretarias de Saúde informaram que há falta de um outro remédio para tratamento de AIDS: o Raltegravir.
O vírus pode criar resistência e os remédios param de fazer efeito
Ao questionarmos os funcionários dos centros de distribuição sobre o que estava acontecendo, as justificativas iam desde “medicamentos presos na alfândega” até “falta de pagamento aos fabricantes asiáticos”. Nada disso foi confirmado pelo Ministério da Saúde.
No Pará, o paciente que precisar do 3 em 1 não vai encontrar o remédio no posto de distribuição, muito menos descobrir onde pode ter acesso ao medicamento. Ao entrarmos em contato com o centro de Belém, a funcionária informou que não tinha o composto. Questionada sobre onde poderíamos encontrar antirretroviral, ela passou telefone de outro local, a Casa Dia. Mas adiantou: “nem adianta ligar, porque todo mundo liga, e ninguém atende”. Ligamos. E ninguém nos atendeu. Aliás, a falta de atendimento foi recorrente durante toda a apuração.
No caso do Amapá, não há falta de remédio, mas a própria Secretaria Estadual de Saúde admitiu que o volume de 3 em 1 é pequeno. “No Estado, mesmo com a entrega da remessa reduzida, não houve falta de medicamentos. O componente do elenco que apresenta redução maior é o 3 em 1”, diz a nota enviada pela secretaria.
Nós perguntamos se o Ministério da Saúde monitora a distribuição dos remédios em cada Estado, mas não recebemos resposta.
Pacientes monitoram por WhatsApp
Muitos pacientes que geralmente encontram dificuldades em conseguir o antirretroviral recorrem a associações de apoio. A principal delas é a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, Abia, sediada no Rio de Janeiro. Para o vice-presidente da entidade, Veriano Terto Junior, “falta medicamento na ponta porque o remédio não chega até lá. Ele é comprado no exterior e chega ao Brasil de navio, de avião. Pode acontecer atrasos, problemas de documentação. Isso implica na não liberação do medicamento a tempo”.
As falhas na distribuição não são uma novidade na vida dos pacientes com HIV. Em julho de 2017, 13 estados declararam problemas no estoque, desde a falta de um dos remédios até o atraso na entrega. Em outubro do ano passado, pacientes denunciaram a entrega fracionada dos antirretrovirais. “De maneira geral, temos tido faltas pontuais de medicamentos nos postos de saúde por razões diversas. Acontece eventualmente do paciente ir ao posto e não encontrar. Nestas situações, orientamos que façam contato com seu médico. Acionamos a Secretaria Municipal de Saúde que buscará uma solução para cada paciente, como autorizar a busca do medicamento em outro posto. Esse processo leva em torno de 48 horas, e o ideal é que o paciente não espere os remédios acabarem para ir ao posto buscar a nova remessa, pois casos como esse podem acontecer”, explica Treistman.
A Abia lançou neste mês um grupo de Whatsapp para monitorar onde está faltando o antirretroviral. Interessados em participar devem entrar em contato com a associação pelos telefones (21) 2223-1040 e (21) 2223-1185.
Os problemas na distribuição podem de fato desestimular o tratamento. “A pessoa vive a situação estressante. Aí chega na porta da farmácia, para algumas pessoas custa muito por causa da estigma. Chega lá e não tem o medicamento. Aí o medicamento tá fracionado. Tem gente já fragilizada e isso acaba se tornando um impacto muito ruim. Muito contraproducente pro sucesso do tratamento”, completou Terto Junior.
Atualização, 24 de abril, 20h10
Após a publicação, o Ministério da Saúde – que já havia sido consultado durante a apuração – enviou uma nota solicitando esclarecimentos sobre as informações do texto. O MS explica que diante do estoque reduzido de 3 em 1 (tenovir 300mg + Lamivudina 300 mg + efavirez 600 mg em um só comprimido ), emitiu uma nota técnica orientando a substituição do antiretroviral de dose única pela associação do 2 em 1 ( Tenofovir 300mg + Lamivudina 300mg) com o Efavirenz ( 600 mg). Ou seja, o paciente passou a tomar dois comprimidos no lugar de um, mas como os mesmos componentes.
O Ministério afirma que a situação foi normalizada no final de março, com a entrega de 20 milhões de comprimidos de 3 em 1 o que atenderá 230 mil pacientes pelos próximos quatro meses. E esclareceu que não houve atraso no pagamento aos fornecedores: “as obrigações contratuais foram cumpridas pela pasta. A partir do recebimento dos medicamentos, cabe aos estados encaminharem o produto aos municípios”.
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