Fogos de artifício foram ouvidos em Anapu, sudoeste do Pará, na tarde de 27 de março, uma terça-feira. Eram uma comemoração à prisão preventiva do padre José Amaro Lopes, sucessor da missionária americana Dorothy Stang na defesa dos assentamentos sustentáveis na Amazônia. Padre Amaro foi detido pela polícia local e encaminhado ao Centro de Recuperação Regional de Altamira, mesma penitenciária onde o mandante do assassinato de Dorothy, o fazendeiro Regivaldo Pereira Galvão, cumpre pena de 30 anos. Taradão, como é conhecido, foi preso em setembro de 2017, 12 anos após o crime.
Padre Amaro é acusado de associação criminosa, ameaça, esbulho possessório (crime contra a propriedade), extorsão, assédio sexual, importunação ofensiva ao pudor, constrangimento ilegal e lavagem de dinheiro. A Comissão Pastoral da Terra, CPT, o braço no campo da Igreja Católica, ao qual Amaro é ligado, saiu em defesa do religioso.
A organização diz que as provas foram forjadas e classificou a investigação como uma nova estratégia de fazendeiros locais para enfraquecer a luta pela reforma agrária. Desde 2001, a CPT registrou dezenas de ameaças de morte contra o padre. Quando foi assassinada, em 2005, em um dos assentamentos que ajudou a fundar em Anapu, Dorothy Stang era alvo de um processo semelhante de difamação.
Ameaçados por grileiros
A prisão do líder religioso não é um fato isolado. Nos últimos dois anos, os conflitos de terra se intensificaram em Anapu, deixando um rastro de expulsões e mortes de trabalhadores rurais. Segundo relatório da CPT divulgado no dia 17, o Pará é o líder dos assassinatos no campo. De 2015 para cá, foram 21 mortes ligadas a conflitos fundiários. A tensão já era acentuada desde que Dorothy começou a atuar na região, no início dos anos 2000, quando criou os Projetos de Desenvolvimento Sustentável Esperança e Virola-Jatobá, assentamentos de trabalhadores rurais sem-terra localizados a cerca de 600 km ao sul de Belém. A missão desses PDS, que abrigam centenas de famílias, era explorar a floresta aliando agricultura familiar às técnicas de conservação ambiental.
Em novembro passado, o clima piorou. Um grupo de 200 homens invadiu o Virola-Jatobá. Organizado por dissidentes e com apoio de fazendeiros, o grupo ocupou uma parte do PDS que impede os assentados de escoar a madeira que garantiria o seu sustento. Segundo os assentados, o bando demarcou lotes de 100 hectares com estacas e derrubou parte da floresta que, 15 anos depois da criação da reserva, continuava 90% de pé. Cinco meses se passaram, e o cenário permanece exatamente igual.
“Nunca trabalhei numa comunidade tão insegura. Se continuar assim, nos encaminhamos para uma tragédia.”
Depois da invasão, o ativista Valdemir Resplandes, ligado à CPT, foi assassinado. Em 10 de janeiro, ele foi morto a tiros depois de ser obrigado por pistoleiros a descer da moto em que carregava o sobrinho na garupa. Resplandes já havia relatado que estava sofrendo ameaças de morte desde 2016. “Nos últimos dois anos, nunca trabalhei numa comunidade tão insegura. Se continuar assim, nos encaminhamos para uma tragédia”, atesta Andreia Barreto, defensora pública da Vara Agrária do Pará.
Apesar da violência e da tensão, moradores do PDS e pesquisadores da Embrapa e da Universidade Federal do Pará que atuam na reserva relatam que têm tido dificuldades para chamar a atenção das autoridades para o problema.
As terras do PDS pertencem à União, e cabe ao Incra regularizar os assentamentos. Mesmo tendo a obrigação de zelar pelo patrimônio público, o órgão ainda não pediu a reintegração de posse da área invadida. A Polícia Civil alegou não poder registrar um boletim de ocorrência por se tratar de uma área federal, e não houve uma ação efetiva do Ibama e da Polícia Federal para retirar os invasores da área.
“A própria existência do PDS está ameaçada e, com ele, a integridade de florestas que se estendem por mais de 30 mil hectares.”
“A própria existência do PDS está ameaçada e, com ele, a integridade de florestas que se estendem por mais de 30 mil hectares”, alertam os pesquisadores Noemi Miyasaka, da Universidade Federal do Pará, e Roberto Porro, da Embrapa, que atuam no apoio ao projeto desde a sua criação. Eles vêm denunciando o abandono do projeto, que serve de modelo de reforma agrária na região amazônica por aliar agricultura familiar à conservação da floresta.
Diante da omissão do Incra, a Associação Virola-Jatobá, com ajuda da Defensoria Pública do Pará, ingressou com um ação contra o grupo dissidente com o objetivo de retirá-los de lá. No final de março, a entidade conseguiu se reunir, em Brasília, com o diretor de desenvolvimento do Incra, Ewerton Giovanni dos Santos, que prometeu agir para garantir que os assentados consigam escoar a madeira. Na terça e quarta-feira, membros do Ministério Público do Pará e do Ministério Público Federal devem ir até o PDS ver a situação; e uma audiência, no Fórum de Anapu, está marcada para 8 de maio. “Permitir que o Virola-Jatobá permaneça invadido é o mesmo que autorizar sua destruição”, diz o procurador da República Felício Pontes Jr..
Não é a primeira vez que o Virola-Jatobá é ameaçado por grileiros. Em junho de 2016, a partir de denúncias dos assentados, o Incra fez vistorias e conseguiu retirar parte das pessoas que haviam comprado ilegalmente lotes dentro da reserva comercializados por João Cruz Sobrinho e Renato Cintra Cruz, fazendeiros vizinhos ao PDSs.
Ladeira abaixo
A omissão do governo no sudoeste do Pará se agravou na gestão Temer. Após o impeachment de Dilma Rousseff, a gestão do Incra em Altamira foi substituída em 2017, e as vistorias foram interrompidas, permitindo a atuação de invasores. “As invasões nos assentamentos se intensificaram com a crise política em Brasília. Temer nomeou para o Incra um inimigo da floresta, que deu um sinal verde para os fazendeiros que nunca se conformaram com a criação dos PDS a destruir esse modelo”, diz o procurador federal Felício Pontes Jr.
Pontes se refere à nomeação de Clóvis Figueiredo Cardoso como Diretor de Terras e Implantação de Projetos de Assentamento, um advogado que foi investigado por suposto esquema de fraudes no Incra em Mato Grosso (o crime prescreveu, e Cardoso não responde mais à ação). No caso de Anapu, o Incra mantém uma unidade avançada que mantinha uma atuação forte nos assentamentos, mas permaneceu fechada por um tempo e hoje se resume a três colaboradores. Questionado sobre o abandono da unidade em Anapu, o Incra respondeu por meio da sua assessoria de imprensa que “este mês mais cinco servidores de outras unidades serão deslocados para Anapu, em caráter especial, para atendimentos relativos aos assentamentos.”
“O governo é um dos maiores inimigos da Amazônia.”
No Pará, lideranças locais afirmam que o Incra foi aparelhado politicamente por influência do deputado federal Wladimir Costa, do Solidariedade, o mesmo da falsa tatuagem do Temer, réu no STF por peculato e que teve o mandato cassado pelo TRE-PA (ele segue no cargo enquanto recorre da decisão). Costa, ligado aos ruralistas da Amazônia, emplacou o irmão Mário Sérgio Costa na Superintendência do Incra em Tapajós, com sede no município de Santarém, o amigo Alderley Cândido da Silva no Incra de Altamira, responsável por Anapu, e indicou o próprio filho de 22 anos para Secretaria de Desenvolvimento Agrário do Pará. Mesmo sem curso superior, Yorann Costa conseguiu na Justiça o direito de assumir o cargo de delegado federal. Na terça, 11 de abril, após a polêmica, Yorann pediu exoneração da pasta que administra recursos de R$ 100 milhões. Cândido também foi exonerado do Incra, e um tesoureiro do Solidariedade no Pará Andrei Viana de Castro deve assumir o cargo.
A aprovação da lei que regulariza a ocupação de terras da União assinada por Temer em julho do ano passado também é vista por ambientalistas como um sinal verde para a grilagem. Agora, a área total do lote que pode ser legalizada aumentou de 1.500 para 2.500 hectares. Além disso, quem ocupou terras ilegalmente até 2011 poderá ser beneficiado (antes o prazo era até 2004). A lei também permite a compra de grandes áreas ocupadas por até 50% do valor mínimo da tabela do Incra. “Isso acaba estimulando novas ocupações, porque elas se tornam lucrativas”, avalia Brenda Brito, analista do Imazon. “O governo é um dos maiores inimigos da Amazônia.”
Nesta época, o governo militar dividiu a área onde hoje fica Anapu em glebas e lotes de 3.000 hectares e distribuiu a empresários e fazendeiros vindos de todo país. Pelo contrato, eles deveriam provar o uso e desenvolvimento da terra por cinco anos para ganhar o direito de posse. Mas caso o acordo não fosse cumprido, as terras voltariam para União.
Foi o que aconteceu com a maioria dos lotes em Anapu que, posteriormente, foram destinados aos PDS. Inconformados com a perda da terra, muitos fazendeiros se recusaram a deixar as propriedades, entrando em confronto direto com os assentados. Dorothy Stang e Padre Amaro organizavam a resistência, fazendo a ponte entre os agricultores, órgãos estatais e MP na defesa do direito à terra.
Campanha difamatória
A denúncia que motivou a abertura do inquérito contra o padre Amaro partiu de Silverio Albano Fernandes, presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Anapu. Silverio é irmão do fazendeiro Laudelino Délio Fernandes, apontado por dois indiciados do assassinato de Dorothy Stang como um dos mandantes do crime. A participação de Délio na morte da irmã nunca foi provada, mas o fazendeiro foi condenado por crimes ambientais e investigado por fraudes milionárias em projetos da antiga Sudam, a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia, criada pelo governo militar. Antes de ser assassinada, Dorothy denunciou Délio por se apropriar ilegalmente de três lotes de terras.
Em depoimento prestado à polícia em 4 de março, Silverio acusou o padre de chefiar uma organização criminosa que estaria por trás da ocupação da Fazenda Santa Maria, em Anapu, supostamente uma propriedade de um parente seu, José Albano Fernandes. A propriedade do lote de 3.100 hectares é reinvidicada pelo fazendeiro, mas a Justiça determinou que as terras voltassem para União. Mas, até o momento, a decisão não foi cumprida. O Incra não conseguiu promover o assentamento oficial das famílias.
O motorista se apresentou para a declarante como Silverio Fernandes, dizendo para a mesma que ninguém invadisse suas terras, ou “teria sangue até a canela”.
Em 2002, Silverio também teria ameaçado Dorothy, que havia denunciado a invasão do fazendeiro em um outro lote pertencente à União. No depoimento de Dorothy, a Polícia Federal anotou: “Quando a declarante se encontrava a pé na estrada Transamazônica, um veículo parou para lhe oferecer carona, sendo que a declarante não conhecia o motorista”. “Durante a carona o motorista se apresentou para a declarante como Silverio Fernandes, dizendo para a mesma que ninguém invadisse suas terras, ou “teria sangue até a canela.”
Além da denúncia de Silveiro, outros dez fazendeiros prestaram depoimentos contra o padre Amaro, alegando que o religioso era o organizador de todas as invasões de terra no município. Vídeos em que Padre Amaro supostamente aparece suscitando a violência no campo foram anexados ao inquérito. Além disso, os acusadores incluíram no processo mensagens de WhatsApp e supostos comprovantes de depósito na conta do religioso e da sua irmã que mostrariam que ele negociava lotes de terra em Anapu.
A defesa do padre diz que a acusação é uma fraude. Na petição protocolada pela Comissão Pastoral da Terra, os advogados sustentam que o inquérito “é uma farsa, constituindo-se como um instrumento de criminalização indevida, que deve ser questionada em todas as frentes jurídicas possíveis.” Um dos exemplos da farsa seria um suposto vídeo em que Padre Amaro aparece incitando a violência no campo. Segundo os advogados, o conteúdo deveria ser periciado pelo Instituto de Perícia do Pará para ser anexado como prova no inquérito. Mas o laudo que comprovaria a legitimidade da gravação está assinado por um perito do Tocantins. “Quem pagou por este laudo? Quais as credenciais deste perito?”, questiona Marco Apolo, um dos advogados do religioso. Quanto aos depósitos na conta do padre, a defesa acredita se tratar de outra armação: eles teriam sido dados como doações à Igreja e depois apontados como repasses da compra de lotes.
Os advogados da CPT também apontam que a acusação de assédio sexual não se sustenta e que Amaro é, na verdade, a vítima de uma armação. No inquérito da Polícia Civil, o delegado Rubens Mattoso anexou um vídeo em que o religioso aparece num ato sexual na casa paroquial com uma das testemunhas que o acusam e pediu ao juiz que oficiasse a Igreja Católica para que o padre fosse afastado imediatamente de suas funções. O vídeo foi vazado pelo WhatsApp. O advogado afirma que nenhuma gravação foi autorizada. “Qual é a relevância, para a investigação, deste vídeo se não a de desmoralizar Padre Amaro diante de uma comunidade conservadora? Foi feito com o único intuito de enfraquecer a importância do padre na luta pela reforma agrária. Não tem relevância nenhuma para o Direito Penal”, questiona Apolo.
Em nota traduzida em cinco línguas, a CPT e os bispos do Alto Xingu se mantêm firmes na defesa do padre, alegando que sua prisão “é uma medida que vem satisfazer a sanha dos latifundiários da região que pretendem de toda forma destruir o trabalho realizado pela CPT, e desmoralizar os que lutam ao lado dos pequenos para ver garantidos os seus direitos.”
A defesa pediu a revogação da prisão preventiva do padre. No dia 9, os promotores Antônio Manoel Cardoso Dias, Daniel Braga Bona e Juliana Cabral Coutinho, do Ministério Público do Pará, se posicionaram contra o pedido. Na última quinta-feira, o juiz responsável pelo caso, Esdras Bispo, decidiu manter o padre preso. De acordo com o magistrado, os fatos estão “amparados em amplo contexto probatório que servem para demonstrar (…) pressupostos necessários ao deferimento da medida.”
As três equipes de advogados que atuam na defesa do religioso devem entrar com um pedido de habeas corpus no Tribunal de Justiça do Pará nos próximos dias.
O fazendeiro Silverio Fernandes, autor das denúncias, não foi encontrado por telefone nem respondeu os pedidos de entrevista, feitos pelo e-mail que constam na página da Federação de Agricultura do Pará (Faepa).
Esta reportagem faz parte de um projeto financiado pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos.
Atualização: O trecho “o seguinte Segundo relatório da CPT divulgado neste dia 17, o Pará é o líder dos assassinatos no campo. De 2015 para cá, foram 21 mortes ligadas a conflitos fundiários” foi inserido nesta matéria após sua publicação. Errata: Anteriormente, este texto informava que “a ocupação na Amazônia começou nos anos 1970″e que o governo distribui lotes a colonos. O correto é, como informamos agora, “região da Transamazônia” e “empresários e fazendeiros. [18 de abril, 16h04] O município de Anapu só foi criado oficialmente em 1997 e não nos anos 1970, como o texto erroneamente dava a entender [19 de abril, 15h29]
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