O policial civil Raimundo Nonato de Oliveira Lopes achou que poderia morrer se não atirasse em Antônio Pereira Milhomem, o Tonho, na manhã de 24 de maio do ano passado. Nonato não tinha medo de Tonho. O trabalhador estava desarmado e rendido. O medo vinha dos policiais militares enfileirados nas suas costas.
Nonato havia acabado de chegar a uma clareira na Fazenda Santa Lúcia, localizada na cidade de Pau D’Arco, fronteira agrícola do sudeste do Pará. Nela, policiais militares haviam matado há pouco seis trabalhadores sem-terra que ocupavam a propriedade. Outros quatro, incluindo Tonho, seguiam vivos, mas perderiam a vida logo a seguir. Nonato ainda não sabia, mas presenciaria ali o maior massacre no campo no Brasil desde Eldorado de Carajás, em 1996.
Diante dos corpos que via no chão e de Tonho agachado ao lado deles, Nonato contou que tinha duas opções: ou cooperava com os policiais militares ou seria morto por eles. Escolheu a primeira opção. “Saquei a minha pistola e efetuei entre três e cinco disparos”, contou na última terça-feira, 17, ao ser interrogado nas audiências de instrução e julgamento do caso. Ele não sabe precisar se acertou Tonho e, após os disparos, tentou sair da clareira onde aconteceram as mortes.
Ronaldo Pereira de Souza, que se encontrava agachado ao lado do irmão Tonho, levantou-se e disse que queria morrer de pé. Nonato e os policiais militares atenderam ao pedido e dispararam contra Ronaldo, conhecido como Lico.
A versão de Nonato e de outro policial civil, que também colaborou com as investigações feitas pelo Ministério Público do Pará e a Polícia Federal, contesta a defesa dos 13 policiais militares e de outros dois policiais civis acusados pela chacina, segundo a qual teria havido um confronto com os trabalhadores sem-terra.
A operação, feita em conjunto pelas polícias civil e militar, tinha o objetivo de cumprir mandados de prisão contra 14 pessoas que estariam ocupando a fazenda, de propriedade de Honorato Babinski Filho. Os trabalhadores, que reivindicavam a terra para reforma agrária, eram acusados de ter assassinado um segurança privado da fazenda no mês anterior.
Os policiais militares entraram “no mato” da fazenda antes dos civis. Na primeira incursão, mataram seis agricultores nas proximidades do acampamento onde eles dormiam. Nonato relatou que estava longe do local quando esses primeiros assassinatos ocorreram. Ele só teria chegado ali depois, chamado por um policial militar que pediu sua ajuda sem especificar o motivo.
Chegando no local, Nonato viu os camponeses mortos e outros baleados. “A primeira coisa que eu presenciei foi o corpo da Jane [de Oliveira]”, contou o policial, referindo-se a líder dos camponeses morta naquela manhã. No corpo, ele viu a marca de um tiro de espingarda.
Sua primeira reação teria sido tirar fotos do local, mas foi impedido pelos policiais militares. “Não falaram [o motivo]. Mas ali, pelo pouco da experiência que eu tenho, eu já percebi que as coisas não estavam normais”, contou o investigador. “Ali já estava tudo dominado.”
Diante dos corpos no chão e da ausência de qualquer sinal de conflito, Nonato disse que o correto seria dar voz de prisão aos policiais militares ali mesmo. Mas isso não teria sido possível devido a uma questão numérica: eram quatro civis contra 15 militares.
Foi nessa hora em que ele alegou ter sido coagido a atirar nos irmãos. Na denúncia, o Ministério Público Estadual afirmou que essas duas mortes selaram “de maneira tenebrosa, o pacto firmado entre todos ali presentes.”
Enquanto ainda carregavam os dez corpos das vítimas para uma caçamba, um coronel teria proposto um acordo: o que ocorrera ali teria sido um confronto ocorrido com a presença dos policiais civis desde a entrada na fazenda. O delegado Valdivino Miranda da Silva, o outro delator, contou que o coronel disse, ainda na cena do crime, que “tinha que ser uma história só, porque se não ia dar problema na repercussão.”
Nonato e Silva contam que foram procurados nos dias seguintes pelos policiais militares para afinar a história, mas decidiram fazer a delação.
Pistas sobre os mandantes
Até agora, as investigações sobre o caso tem se focado no que ocorreu no dia do massacre. Pouco se sabe sobre a existência de mandantes ou de outros interessados na morte dos sem-terra.
Um trecho do depoimento de Nonato, porém, pode ajudar a esclarecer quem ordenou as execuções. O policial civil disse que soube de uma reunião na qual o assunto seria uma “vaquinha feita por certos pecuaristas”, que contou com a presença de um delegado da Polícia Civil e de um sargento da Polícia Militar. Ela teria acontecido em Rio Maria, cidade vizinha a Pau D’Arco.
O encontro poderia apontar a possibilidade de que pecuaristas tivessem pago alguma quantia aos policiais que participaram da ação. “A existência dessa reunião dá uma pista sobre possíveis mandantes,” diz Andréia Silvério, advogada da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entidade que atua como assistente da acusação contra os policiais. “Na nossa avaliação, isso pode contribuir com a investigação que a PF vem fazendo.”
A Polícia Federal abriu um segundo inquérito neste ano para investigar quem ordenou a execução. O promotor Leonardo Caldas, responsável pelo caso, afirma que a informação sobre a reunião havia surgido na fase de investigação, mas ela ainda não está comprovada.
15 policiais estão presos
A investigação do massacre de Pau D’Arco resultou na denúncia de 13 policiais militares e 4 policiais civis. Quinze deles estão presos preventivamente desde setembro do ano passado. Eles chegaram a ser soltos, mas tiveram a prisão mantida devido à liminar da ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, que negou o habeas corpus da defesa. Os dois delatores estão soltos devido à contribuição feita à Justiça. Eles contam com a ajuda do Provita, o Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas do Pará.
Parte do que os dois disseram durante as audiências na última semana, realizada em Redenção, cidade vizinha à Pau D’Arco, já havia sido dito em depoimentos à Polícia Federal e ao Ministério Público. Para o promotor, a confirmação das informações diante do juiz e dos advogados de defesa ajudará na condenação dos policiais.
O processo judicial entra agora em sua etapa final. Ainda que não haja um prazo definido, a CPT espera uma decisão ainda em 2018 sobre o caso.
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