Religião: ticunas do Alto Solimões (AM), membros da Ordem de Santa Cruz, seita que proíbe rituais, durante velório do índio Juvenal Albino, que se suicidou, na aldeia Nova Itália. (Foto: Patrícia Santos/Folhapress)

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Suicídios no Brasil, o país onde o passado não passa

Questão de saúde pública, suicídios se aproximam das 12 mil notificações anuais; na era Temer, dispara o uso de lenha e carvão nas residências.

Religião: ticunas do Alto Solimões (AM), membros da Ordem de Santa Cruz, seita que proíbe rituais, durante velório do índio Juvenal Albino, que se suicidou, na aldeia Nova Itália. (Foto: Patrícia Santos/Folhapress)

Suicídio não tem glamour.

No fim de fevereiro, uma fotografia comoveu quem ainda tem coração para se comover: mostrava um pai de 56 anos, Waritaxi Iwyraru Karajá, velando os túmulos dos três filhos que se mataram entre 2012 e 2016. O caçula tinha 21 anos. A filha, de 24, suicidou-se grávida de quatro meses. “Até hoje eu não descobri o que acontecia na cabeça dos meus meninos”, disse o pai aos repórteres Rodrigo Vargas e Danilo Verpa, o autor da foto.

 De 2011 a 2015, ocorreram anualmente no Brasil 15,2 suicídios em cada 100 mil indígenas.

Waritaxi vive numa aldeia carajá na ilha do Bananal, fincada entre Mato Grosso, Tocantins e Goiás. No mesmo período em que seus filhos morreram, mais 32 carajás tiraram a própria vida. A maioria tinha de 11 a 25 anos e era do sexo masculino. Quem fica fala de abuso de álcool e drogas, desemprego e feitiçaria. De estranheza, incompatibilidade e frustração com a cultura urbana que seduz, mas sufoca. “O jovem não aguenta”, disse Juanahu Karajá, cacique de uma das 68 aldeias da etnia. “Os anciões sabem se virar.”

De 2011 a 2015, ocorreram anualmente no Brasil 15,2 suicídios em cada 100 mil indígenas. Nas contas do Ministério da Saúde, o índice representa quase o triplo da média da população não indígena. Em 2016, 106 índios se mataram, contabilizou o Conselho Indigenista Missionário. Salto de 18% em comparação com o ano anterior.

No princípio de março, estreou nos cinemas Torquato: Todas horas do fim. O protagonista do documentário dos diretores Eduardo Ades e Marcus Fernando é o poeta e letrista Torquato Neto, autor dos versos “Só quero saber do que pode dar certo/ Não tenho tempo a perder”. O artista se suicidou em 1972, aos 28 anos. Despediu-se com um bilhete que termina assim: “Pra mim chega! Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar”. O “pra mim chega!” era presente e fim. Thiago, o rebento de dois anos, o futuro.

Em abril, num intervalo de 12 dias, dois alunos do ensino médio do Colégio Bandeirantes se suicidaram em casa. Entre uma e outra morte, um estudante do Colégio Agostiniano São José fez a mesma coisa. As duas escolas, privadas, ficam na cidade de São Paulo. No Bandeirantes, crianças, adolescentes e adultos se abraçaram e choraram, depois de conversas sobre as mortes.

No Brasil, ao menos 11 mil pessoas se matam por ano. Supõe-se que exista subnotificação. O país não se inclui entre os de maior taxa relativa de suicídios (5,7/100 mil), mas é o oitavo em números absolutos. De 2011 para 2015, os óbitos pularam de 10.490 para 11.736 (mais 12%). Foram 32 por dia. Na faixa etária de 15 a 29 anos, o suicídio é a quarta maior causa de mortes (crescimento perto de 10% de 2002 para 2014). No planeta, 800 mil pessoas de todas as idades se suicidam a cada doze meses — uma morte de 40 em 40 segundos.

Nesta primeira semana de maio, circula reportagem de Monica Weinberg, Luisa Bustamante e Fernando Molica. O trio da revista Veja revolveu o inquérito da Polícia Federal que fundamentou em setembro a prisão do professor de direito Luiz Carlos Cancellier de Olivo, 59. Ele era o reitor da Universidade Federal de Santa Catarina. Os repórteres contam: “Cancellier foi algemado, acorrentado pelos pés e submetido a revista íntima. De uniforme cor de laranja, permaneceu trinta horas detido, parte delas em um presídio de segurança máxima. Ao sair, ficou proibido de pisar no campus da universidade, até ser liberado por ordem judicial”.

Humilhado ao ser vinculado a um alegado esquema de roubalheira na universidade e ser preso com crueldade sádica, o reitor se matou dias depois de deixar a cadeia. A revista concluiu: “É uma leitura perturbadora [a do inquérito] pelo excesso de insinuações e escassez de provas”. Noutras palavras: de comprometedor, nada para Cancellier de Olivo. Só para a PF e a Justiça.

Efeito Werther

Em quinze anos (2000-2015), os suicídios cresceram 65% na faixa de 10 a 14 anos e 45% na de 15 a 19. Acima dos 40% da média geral, embora ainda com índice menor, constatou o sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz. Quanto mais jovem o grupo, maior o ritmo de elevação da taxa. Um dos fatores ligados às mortes juvenis é o bullying escolar.

No ano passado, tentativas de suicídios e mortes consumadas de jovens foram associadas ao jogo virtual Baleia Azul. É um game de desafios cujo desenlace é a morte autoprovocada. No mesmo 2017, a série televisiva 13 Reasons Why narrou a história de uma estudante de ensino médio que se mata. Nos 18 dias seguintes ao lançamento, a procura na internet por palavras conectadas a suicídio se expandiu 19% nos Estados Unidos, ou 1,5 milhão de buscas a mais. Entre os temas consultados estavam métodos para se matar. Há, contudo, quem interprete a série como um alerta.

O suicídio é estigma e tabu sociais. O silêncio ou discrição sobre ele decorre também do chamado Efeito Werther, o receio de que o barulho sobre uma morte estimule outras. A origem do nome é um romance do século 18, Os sofrimentos do jovem Werther. O protagonista, criação da pena de Goethe, mata-se em virtude de um infortúnio no amor. A ficção teria impulsionado uma onda de suicídios reais.

 Ocultar um problema de saúde pública seria um desserviço jornalístico. Sem conhecê-lo, como combatê-lo?

O Efeito Werther não é ilusório. Em fevereiro se soube que os suicídios aumentaram 10% nos Estados Unidos após Robin Williams se matar, em 2014. O ator de 63 anos lutava contra a depressão. De agosto a dezembro daquele ano, eram esperados, com base no histórico recente, 16.849 suicídios, relataram pesquisadores da Universidade Columbia. Houve 18.690.

Seria um despropósito o jornalismo omitir a causa da morte de Williams. Ou as da escritora Virginia Woolf e do presidente Getúlio Vargas. Embora faça sentido silenciar, em boa parte das vezes, sobre os métodos empregados (estas linhas não os descrevem). Suicídio constrange. Em março, o escritor Victor Heringer se matou em Copacabana, aos 29 anos. A maioria das reportagens escondeu que houve morte voluntária

Ocultar um problema de saúde pública seria um desserviço jornalístico. Sem conhecê-lo, como combatê-lo? A questão é como noticiar, enfatizou em entrevista o jornalista e professor universitário Arthur Dapieve: “Se noticiamos tantos homicídios sem medo de eles estimularem alguém a matar, por que tememos que, ao noticiar suicídios, estaremos estimulando alguém a matar a si próprio?”. Dapieve é autor do livro Morreu na contramão: O suicídio como notícia, fruto de uma dissertação de mestrado.

Suicídios de policiais militares costumam ser ignorados. De 1995 a 2009, 58 PMs do Estado do Rio de Janeiro se mataram. Notificaram-se 36 tentativas. O risco de um PM fluminense se suicidar é quatro vezes maior do que o do conjunto da população.

A prevenção pode evitar muitos suicídios. Ela existe, tocada por gente qualificada e generosa, mas precisa se ampliar. O telefone do Centro de Valorização da Vida, serviço gratuito de apoio emocional e prevenção ao suicídio, é 188. Uma das muitas cartilhas úteis se intitula Suicídio: Informando para prevenir. Pedro Bial conduziu na quinta-feira uma elucidativa conversa sobre o assunto. Vale a pena ver e aprender.

Outros muitíssimos suicídios foram e serão inevitáveis, sem pedido prévio de socorro. Ainda assim, quem sobrevive eventualmente se consome em culpas ou elege culpados. O ensaio A mulher calada, de Janet Malcolm, rejeita a condição de vilão atribuída ao poeta Ted Hughes devido ao suicídio, aos 30 anos de idade, da poeta Sylvia Plath. A ensaísta norte-americana mergulha na vida do casal e ensina sobre suicídio, o antes e o depois do luto.

“Toda palavra guarda uma cilada”, escreveu Torquato Neto. Algumas palavras relacionadas ao suicídio: depressão, dor, desencanto, desespero, desânimo, desesperança, dependência, desamparo, desistência, doença, cansaço, transtorno, tristeza, sofrimento, abuso (sexual, de drogas, álcool), bullying, angústia, solidão, autodestruição, automutilação.
Torquato poetou, na música Marginália II:

Minha terra tem palmeiras
Onde sopra o vento forte
Da fome, do medo e muito
Principalmente da morte.

‘País do futuro’

Alguns suicídios, como o do reitor Cancellier de Olivo, compõem o mosaico de uma época. Poucos retratam o tempo com tanta nitidez como o do escritor austríaco Stefan Zweig. Deprimido com a voracidade nazista que devastava a Europa, ele se mudou para cá. Em 1942, matou-se em Petrópolis, aos 60 anos. Zweig escreveu o livro Brasil, país do futuro.

Se o futuro chegou, não é o presumido por Zweig. O noticiário testemunha que o passado não passa.

Amanhã faz 50 dias que Marielle Franco e Anderson Gomes foram assassinados. Até agora, nenhum executor ou mandante foi punido.

“Na Grande SP, a pobreza extrema avançou 35% em um ano.” O ano foi 2016. A estimativa é da LCA Consultores. Mais 180 mil seres humanos decaíram ao limite da subsistência, no Estado brasileiro mais rico.

“Contratações por salário menor fizeram cair arrecadação da Previdência.”

“Desemprego subiu para 13,1% em março e atingiu 13,7 milhões de pessoas.” A elevação acontece pelo terceiro trimestre consecutivo. Em comparação com o encerrado em dezembro, surgiram mais 1,379 milhão de desempregados.

Nunca o índice de trabalhadores com carteira assinada foi tão baixo. Pelo menos desde a implantação desse monitoramento.

A repórter Joanna de Assis revelou no Fantástico o resultado de uma investigação de quatro meses: um sem-número de depoimentos denuncia abusos sexuais cometidos por um antigo técnico da seleção brasileira masculina de ginástica, Fernando de Carvalho Lopes. Ele nega.

A avenida da Legalidade e da Democracia, em Porto Alegre, voltou a ser denominada Castello Branco. A decisão é do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. A via deixa de honrar o movimento democrático que barrou um golpe de Estado em 1961. E volta a exaltar um ditador, Humberto de Alencar Castello Branco, imposto pelo regime liberticida nascido com o golpe de 1964.

“Seguranças do Planalto proibiram representante de índios de entrar em reunião porque usava cocar.” Se o visitante trajasse cueca forrada com dinheiro e puxasse mala de rodinhas recheada de notas, certamente lhe permitiriam entrar.

Na madrugada do sábado, em Curitiba, um homem atirou no mínimo seis vezes contra o acampamento de apoiadores de Lula. Feriu uma advogada e um sindicalista. Um ônibus da caravana liderada pelo ex-presidente havia sido alvejado em março. A autoria dos atentados permanece ignorada.

Aumentou em 7%, no ano passado, o número de brasileiros que moram de favor.

Cresceu em 11% a quantidade de domicílios que, em reação à disparada do preço do gás, passaram a usar lenha e carvão na cozinha. Já são 12,3 milhões as residências nessa situação.

“O investimento público caiu para 1,17% do PIB e baixou ao menor nível em quase 50 anos.”

Como diz o narrador no desfecho de O grande Gatsby, romance de F. Scott Fitzgerald: “E assim avançamos, botes contra a corrente, impelidos incessantemente de volta ao passado”.

Crédito: a tradução supimpa da frase de O grande Gatsby é de Vanessa Barbara, na edição Penguin/Companhia das Letras.

Em destaque: ticunas do Alto Solimões (AM), velório do índio Juvenal Albino, que se suicidou, na aldeia Nova Itália. (Foto: Patrícia Santos/Folhapress)

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