Hugo Adrian Palazón, 36 anos, é um cartonero – um catador de lixo – de um bairro pobre de Buenos Aires, na Argentina. Ele sustenta a esposa e cinco filhos recolhendo caixas de papelão, latinhas e garrafas plásticas nas ruas da cidade. Pelo menos era isso que ele fazia até perder um dos olhos.
No dia 18 de dezembro de 2017, milhares de pessoas saíram às ruas de Buenos Aires para protestar contra uma reforma previdenciária controversa que, segundo os sindicatos, corta benefícios e prejudica os aposentados. A passeata percorreu os quarteirões em volta do Congresso argentino e foi, em sua maior parte, pacífica. Porém, a polícia também teve que enfrentar, durante horas, centenas de manifestantes armados de pedras, pedaços de concreto e outros objetos.
Então a tropa reagiu – e com violência. A Praça do Congresso, e as ruas das redondezas foram evacuadas à força. Em vídeos gravados por celulares, aparecem pessoas correndo dos policiais, encurraladas em ruas estreitas, fugindo dos tiros, dos jatos d’água, da fumaça e do gás lacrimogêneo.
Palazón estava à procura de objetos recicláveis a alguns quarteirões dali, ao lado de seu carrinho, quando uma multidão se aproximou correndo. Logo atrás, a polícia municipal disparava balas de borracha e bombas de efeito moral.
Ele gritou que estava apenas trabalhando, mas não adiantou. A 3 metros de distância, segundo ele, um policial mirou em sua cabeça e apertou o gatilho. Palazón se abaixou e tentou se proteger com os braços, mas algo já havia atingido seu olho direito. Mais tarde, um médico lhe diria que o impacto da bala de borracha havia sido tão devastador que parecia que seu olho havia sido picado em mil pedacinhos.
Ele não foi o único que perdeu um olho naquele dia.
No Hospital Oftalmológico Santa Lucía, Palazón conheceu Horacio Ramos, um metalúrgico e ativista de 53 anos. Ramos havia participado da manifestação e também perdera um olho ao levar um tiro à queima-roupa na cabeça. Tendo perdido imediatamente a visão, ele levou a mão ao rosto, que logo ficou coberta de sangue.
“Eles estavam atirando para cegar”, disse Ramos mais tarde ao The Intercept. “Atiraram em mim a 7 ou 9 metros de distância. Ele mirou no meu rosto.”
Daniel Sandoval é professor e também compareceu ao protesto. Segundo testemunhas, ele foi espancado e alvejado por policiais. Sandoval foi atingido por 21 balas de borracha, seis delas na cabeça. E uma no olho.
“Foi o pior momento da minha vida. Parecia que eu estava sendo caçado”, contou Sandoval ao diário argentino Página 12.
Durante a manifestação de 18 de dezembro, mais de 60 pessoas foram presas e mais de 160 ficaram feridas, inclusive policiais – segundo a polícia, 125 agentes ficaram feridos, um número muito maior do que o relatado por outras fontes. Cinco pessoas perderam um olho ao serem atingidas por balas de borracha – um número sem precedentes para um protesto na Argentina até então. Além disso, um policial também perdeu um olho, mas, segundo testemunhas, ele pode ter sido atingido por um colega.
Muitas das vítimas, inclusive Ramos, tiveram que passar por uma cirurgia para a retirada das balas.
“A maioria dos policiais estava mirando no rosto dos manifestantes. Estavam atirando nos olhos dos homens e no peito nas mulheres”, afirma a advogada especialista em direitos humanos María del Carmen Verdú, do grupo ativista portenho Coordenação contra a Repressão Policial e Institucional (Correpi).
Verdú diz ter atendido 20 mulheres que haviam sido atingidas por tiros no peito no dia 18 de dezembro. “Os manuais oficiais orientam o policial a atirar com balas de borracha da cintura para baixo. É difícil acreditar que todos os policiais tenham esquecido o protocolo ao mesmo tempo”, diz.
Palazón, Ramos e Sandoval são apenas três das vítimas mais recentes do mais violento surto de repressão na Argentina desde o fim da ditadura militar que dominou o país de 1976 a 1983, segundo um relatório da Correpi publicado em dezembro.
A ministra da Segurança argentina, Patricia Bullrich, chamou o relatório de “mentira absoluta”. Porém, de acordo com as estatísticas da Correpi, que entram em detalhes sobre cada morte, a polícia argentina matou, em média, uma pessoa por dia depois que Mauricio Macri assumiu a presidência, no fim de 2015 – foram 725 mortes em 721 dias.
Muitos ativistas de direitos humanos enxergam no aumento da brutalidade policial uma forma de controle social para facilitar a tentativa do governo de desfazer as políticas progressistas de seus predecessores Néstor e Cristina Kirchner. A reforma da previdência, aprovada pelo Congresso no dia 18 de dezembro, é apenas uma pequena parte de um grande pacote de reformas neoliberais que estão abalando o Estado de bem-estar social argentino.
A inflação está em disparada; as contas de luz e água chegaram a aumentar até 1.000%. Além disso, centenas de milhares de pessoas perderam o emprego. Consequentemente, o país tem enfrentado uma onda de protestos, e a polícia tem reagido com violência.
A Argentina tem um histórico de violência contra manifestantes, mesmo depois do fim da ditadura – 39 pessoas foram mortas pela polícia em vários protestos no país depois do crash financeiro de dezembro de 2001. Mas alguns ativistas de direitos humanos veem com preocupação esse novo recrudescimento da violência, principalmente quando aliado a um aumento comprovado do número de presos políticos, aos ataques contra a imprensa independente em manifestações e ao desaparecimento de Santiago Maldonado, 28 anos, no dia 1º de agosto de 2017.
Maldonado desapareceu durante uma passeata de apoio à comunidade indígena mapuche na província argentina de Chubut. Testemunhas afirmam tê-lo visto pela última vez sendo preso pela Gendarmaria Nacional Argentina. Dois meses depois, seu corpo foi encontrado boiando no rio Chubut.
Quando o paradeiro de Maldonado ainda era desconhecido, milhares de argentinos saíram às ruas do país para exigir a sua volta. Mais uma vez, os protestos foram reprimidos com violência. Alguns jornalistas chegaram a ser presos por vários dias sem nenhuma acusação.
“O objetivo era claramente prender quem estava filmando para que ninguém visse o que estava acontecendo: as forças de segurança atropelando os manifestantes”, diz Juan Pablo Mourenza, repórter da Rede Nacional de Mídia Alternativa (RNMA). Mourenza foi detido durante um protesto no dia 1º de setembro, um mês depois do desaparecimento de Maldonado.
De acordo com a Correpi, cerca de 200 pessoas desapareceram desde o fim da ditadura, mas o caso de Maldonado é uma evidente reminiscência de táticas repressivas que muitos pensavam já ser página virada na Argentina.
“É inacreditável que, depois de mais de 40 anos, tenhamos mais uma vez que gritar: ‘Vocês os levaram vivos, então nós os queremos de volta vivos’”, lamenta Taty Almeida, uma veterana das Mães da Plaza de Mayo, um grupo de mulheres cujos filhos estiveram entre os 30 mil desaparecidos da ditadura. O filho de Almeida foi visto pela última vez em 1975, aos 20 anos.
As Mães protestam toda semana na Plaza de Mayo há 40 anos. Recentemente, elas também passaram a criticar a nova onda de repressão policial.
Em meados de janeiro, Ramos, o metalúrgico e ativista ferido pela polícia, se juntou às Mães e a outras milhares de pessoas na Plaza de Mayo para exigir justiça pela repressão de dezembro e pela perda de seu olho. Na manifestação, Ramos e seus advogados anunciaram que entrariam com um pedido formal de investigação para apurar os responsáveis pelos tiros. Um juiz local aceitou o pedido, e Ramos foi autorizado a participar do inquérito. O metalúrgico afirma que um órgão de imprensa alternativa local concordou em ajudá-lo a identificar o autor dos disparos por meio de vídeos gravados na manifestação. Apesar disso, Ramos teme que, como a maioria das investigações, isso não dê em nada.
Enquanto isso, as Mães dizem estar cada vez mais preocupadas com as medidas de segurança do governo Macri.
“Não é uma ditadura como a que tivemos nos anos 1970 e 1980”, diz Almeida. “Mas, infelizmente, as medidas que estão adotando – e as declarações que eles estão fazendo – lembram muito aqueles anos. São muito parecidas com o que vivemos durante a ditadura”, compara.
A bala de borracha – também chamada de munição de elastômetro – costuma ser elogiada pelas autoridades por ser um meio seguro de controlar tumultos. Mas não são poucos os casos de manifestantes que ficaram cegos por causa delas. Nos últimos anos, esse armamento tem feito vítimas em diversos países, como Brasil, França, Índia, Estados Unidos, Espanha, África do Sul, etc. A província espanhola da Catalunha proibiu o uso de balas de borracha em 2014 depois que uma mulher perdeu um olho em uma passeata.
De acordo com um estudo realizado por diversos pesquisadores americanos e publicado na revista médica The BMJ em dezembro de 2017, a maioria das lesões graves causadas por balas de borracha acontecem quando a vítima é atingida na cabeça ou no pescoço. Os autores da pesquisa salientam que o uso desse tipo de munição pode causar “morte, ferimentos e invalidez” e pedem com urgência a instituição de normas internacionais.
O uso excessivo das balas de borracha pela polícia argentina é bem documentado. O país foi incluído em um relatório de 2016 sobre armas de controle de distúrbios realizado pela organização Physicians for Human Rights. O documento destaca o uso indiscriminado desse tipo de munição em uma manifestação contra a demolição de uma parte do Hospital Borda, em Buenos Aires, em abril de 2013. Balas de borracha foram disparadas a curta distância, e mais de 40 pessoas ficaram feridas.
“Esses casos mostram que o uso de balas de borracha para dispersar protestos é amplamente usado na Argentina, muitas vezes sem aviso prévio e inclusive contra pessoas desarmadas e em fuga”, afirmam os autores do relatório.
O método de mirar nos olhos dos manifestantes também não é nada novo. Em 2003, a polícia cegou um dos olhos de um trabalhador desempregado chamado Pedro “Pepe” Alveal durante um protesto na cidade argentina de Neuquén. Essa tática continuou sendo empregada episodicamente ao longo dos anos, mas agora é aplicada de forma sistemática, fazendo muito mais vítimas.
“No dia 18 de dezembro, a polícia não se contentou em nos expulsar da praça. O objetivo parecia ser nos machucar, nos mutilar, nos incapacitar”, diz Ramos.
Ramos teve que sair do emprego como metalúrgico em uma empresa nos arredores de Buenos Aires. Os médicos dizem que a poeira e outras partículas em seu ambiente de trabalho poderiam causar uma infecção na cavidade ocular, colocando sua vida em risco.
Quem perdeu um olho no dia 18 de dezembro ainda vai sentir as consequências das balas da polícia por muito tempo.
Em um dia ensolarado de verão, em meados de janeiro, Palazón vai de metrô ao Hospital Oftalmológico Santa Lucía. Ao chegar, senta-se em um banco de metal enquanto espera ser atendido.
Ele usa calça jeans e uma camiseta preta e branca; sob um velho boné surrado, aparece seu cabelo já grisalho. Palazón parece cansado – e mais velho do que seus 36 anos. No lugar de seu olho direito, uma prótese de plástico. Há semanas que ele vai ao médico, mas nada de receber alta definitiva. Porém, mesmo quando o tratamento terminar, ele não sabe se poderá voltar ao trabalho. Pelo menos não como cartonero.
Catar lixo e materiais recicláveis nas ruas é um trabalho pouco higiênico. Os médicos dizem que, se seu olho infeccionar, o cérebro também pode ser afetado, o que pode ser fatal.
“Então aqui estou eu, na beira do abismo. Não tenho mais nada. Agora dependo da minha família”, diz Palazón, mal contendo as lágrimas. “Para ser sincero, não sei nem o que dizer. Todo dia eu acordo me sentindo totalmente impotente. Sabe o que é se sentir assim? Meus filhos me pedem um chocolate, mas não tenho dinheiro para comprar”, lamenta-se.
Mesmo sabendo que estaria arriscando a vida, Palazón pode voltar a catar material reciclável nas ruas daqui a alguns meses. É a única coisa que ele sabe fazer. Tentando pensar positivo, ele diz que vai dar um jeito, nem que seja pelos seus cinco filhos. Mas é difícil. Além da mutilação e da perda de sua fonte de renda, ele também tem que lidar com o impacto psicológico do que aconteceu.
“Perder um olho às vezes é um trauma irremediável. Os danos psicológicos podem ser reparados, mas também podem ter sequelas permanentes”, disse a psicóloga portenha Adriana Fernández ao The Intercept. “E, quando o Estado não assume a responsabilidade por esses danos, as consequências podem ser ainda piores.”
A reportagem entrou em contato com a Secretaria de Justiça e Segurança de Buenos Aires para pedir detalhes sobre a operação policial de 18 de dezembro. Em uma declaração oficial, a Secretaria afirma: “Durante mais de seis horas, os policiais resistiram às agressões de um grupo de manifestantes, que jogavam pedras, paus, coquetéis molotov, explosivos e outros projéteis, deixando muitas vítimas e causando uma destruição de patrimônio no valor de 14 milhões de pesos [cerca de 2,3 milhões de reais]. A polícia avançou para restabelecer a ordem apenas quando os organizadores da passeata – que não estavam participando da agressão – já haviam deixado a Praça do Congresso.”
A Secretaria não respondeu às perguntas da reportagem sobre a suposta prática de atirar intencionalmente na cabeça dos manifestantes.
De acordo com alguns jornalistas, como Juan Pablo Mourenza, o repórter detido na passeata de setembro, havia policiais à paisana em meio aos manifestantes, jogando pedras e incitando à violência.
“Eles [a polícia] fazem essas coisas para desviar a atenção do que é importante de verdade. Para criar desordem. As pessoas não saem às ruas para jogar pedra na polícia. O problema não é a polícia, e sim as medidas que o governo está adotando”, disse Mourenza ao The Intercept. “As pessoas não estão satisfeitas. Elas estão com fome. Elas estão desempregadas”, afirma.
Para Palazón, o dia 18 de dezembro mudou não só a sua vida, mas também a sua opinião sobre a polícia argentina, que ele dizia respeitar.
“Eles saíram para caçar as pessoas. Para caçar. Saíam atirando em todo mundo que viam pela frente”, conta. “Eu só estava trabalhando. Saí no dia 18 de dezembro para tentar ganhar dinheiro e poder comprar alguma coisa para os meus filhos. Para pelo menos dar uma boa refeição a eles. Sabe o que fizemos no Natal? Nada.”
Tradução: Bernardo Tonasse
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