Dalva passou uma semana no CTI. Deize toma 11 comprimidos por dia. Márcia teve que retirar o útero e Ana Paula tem dores fortíssimas na cabeça, há anos. Renata* lutou contra o alcoolismo e o vício em drogas por quase uma década. Em comum, as cinco têm depressão e transtornos de ansiedade. Elas são mães de adolescentes executados pela Polícia Militar do Rio de Janeiro. Desacreditadas e sem respaldo do mesmo poder que levou seus filhos, elas são sobreviventes de uma estatística cruel que costuma levar outras mulheres como elas ao óbito. Revoltadas com a pecha de “criminosos” que seus filhos receberam, elas foram além: decidiram investigar, sozinhas, as mortes dos próprios filhos. Duas fizeram vestibular e cursaram Direito para entender os caminhos das leis e provar que eles são inocentes.
Nas últimas semanas, The Intercept Brasil conversou com dez mulheres que tiveram seus filhos assassinados por agentes do Estado. Elas sentem como se as balas que tiraram as vidas de seus filhos continuassem alvejando seus próprios corpos. Adoecidas pela violência policial, essas e milhares de outras mulheres são as vítimas não identificadas das execuções que contam apenas o número de mortos deixados nas calçadas, ignorando os que seguem vivos.
O corpo de Márcia Jacintho, hoje com 56 anos, parece que não lhe pertence desde o dia 22 de novembro de 2002. Naquela madrugada, ela despertou com um aviso do marido: o filho não estava em casa. Não era comum que Hanry Silva Gomes de Siqueira, de 16 anos, ficasse fora até altas horas. Tremendo, Márcia foi para a rua, no Morro do Gambá, zona norte do Rio, e bateu de porta em porta em busca de notícias. Horas depois, alguém lhe disse que dois jovens baleados haviam dado entrada no Hospital Salgado Filho, e que ambos estavam mortos. Márcia falou para si mesma: “Acabou”. Chamou o marido: “Acho que mataram meu filho”. Hanry foi identificado pelo padrasto na mesa fria da autópsia.
Márcia se trancou em casa e passou quatro meses comendo quase nada. Perdeu vinte quilos. Só começou a sair daquele estado quando outro adolescente, envolvido com o tráfico na vizinhança, lhe contou o que havia acontecido com Hanry. Logo depois do assassinato, um policial pegou o rapaz e ameaçou matá-lo caso não lhe desse algo em troca da vida. “O cana disse que mais cedo tava com um moleque na mão, botou a arma no peito e apertou”. Por R$2 mil e um fuzil, o menino foi liberado.
Com a informação nas mãos, ela recorreu à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio e conseguiu uma cópia do inquérito. O que leu a revoltou: os policiais alegavam terem sido recebidos a tiros por sete criminosos, entre os quais Hanry. “Devem ter pensado: ‘Vamos escrever isso aqui, alguém vai assinar e acabou. É só mais um negro, favelado. A sociedade lá embaixo vai acreditar que é bandido e vai bater palma, afinal, como dizem, ‘bandido bom é bandido morto'”, disse. “Só que eles não esperavam que essa negra aqui fosse fazer o que fez.”
Foi quando ela assistiu a séries como CSI e Lei e Ordem. Inspirada nelas, resolveu visitar a cena do crime.
Determinada a limpar o nome do filho, Márcia rodou o morro em busca de testemunhas. Até mesmo os meses que passou trancada em casa, em depressão, acabaram ajudando. Foi quando ela assistiu a séries como CSI e Lei e Ordem. Inspirada nelas, resolveu visitar a cena do crime. “Comprei filme para minha câmera e comecei a bater foto de tudo”, conta ela, que diz sempre ter tido o sonho de ser policial civil. “Os delegados ganham o salário deles, mas somos nós, as mães, que produzimos provas.”
Márcia tentava sem sucesso levar suas testemunhas ao Ministério Público. “Olhavam para mim e só viam a mãe de um bandido.” Era preciso ir além: matriculou-se em uma faculdade de direito e mudou o vestuário. Bastou vestir um blazer e uma meia-calça para que o tratamento fosse outro. Apresentando a carteirinha de estudante, passou a ter acesso direto à Promotoria.
Quase quatro anos depois, uma ação penal foi finalmente instaurada, e Márcia atuou como assistente de acusação. Conseguiu provar que os PMs haviam pego seu filho e exigido o arrego – dinheiro para que ele fosse solto. Hanry não tinha envolvimento com o crime e se negou a pagar. Foi executado. As investigações de Márcia comprovaram que, após matar o adolescente, os policiais atiraram para o alto, simulando um confronto. Furtaram um lençol que secava em um varal para arrastar o corpo morro abaixo. O largaram no chão e ficaram ali por algumas horas, aos risos, planejando a justificativa que dariam para a morte.
Em 2008, Márcia conseguiu condenar dois assassinos. “Eu fui o olho da Justiça”, orgulha-se ela. A vitória, porém, não aplacou o trauma. Três anos depois, um mioma a forçou a retirar o útero. Em breve, talvez volte à sala de cirurgia – dessa vez, para operar a coluna, castigada por duas hérnias de disco, um desvio de vértebra e artrose. Não bastassem as dores, acentuadas pelas escadarias que sobe e desce na favela, a copeira ainda vive com reumatismo, hemorróidas, vômitos, pressão alta, depressão e crises de pânico.
Toma nove remédios, e há outros que não consegue comprar. Até abril, se consultava em uma clínica privada paga por sua mãe, mas, com o aperto financeiro, perdeu acesso aos médicos. Condenado, dez anos atrás, a pagar uma pensão a Márcia, o estado do Rio ainda não fez nenhum pagamento. Desempregada, ela não tem esperanças de conseguir trabalho. “Quem vai querer alguém com 56 anos e um certificado do INSS que avisa que não posso trabalhar em pé ou carregar peso?”, pergunta.
“Ouviram meu filho gritar muito. Será que ele estava pedindo para não morrer?”
Entre 2002, ano do assassinato de Hanry, e o último mês de março, mais de 14.600 pessoas morreram nas mãos da polícia no Rio, segundo o Instituto de Segurança Pública. Quase todas as vítimas são homens e favelados, a maioria deles, negros. Em 2016, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Rio foi o estado em que as polícias mais mataram. Foram 925 mortes registradas – 7 vezes mais do que o número de policiais assassinados no mesmo período.
Em pouco menos de duas horas de conversa, Renata, de 52 anos, citou oito pessoas que ela conhecia mortas pela polícia ou pelo tráfico. “Toda vez que um dos nossos tomba nas favelas, a gente sangra”, diz a cuidadora de idosos. Ela já militava ativamente contra a violência policial quando seu filho, Matheus, foi assassinado. Estava no trabalho quando soube, por telefone. “Eu acho que desmaiei. Não conseguia acreditar.”
“Meu filho só tinha 14 anos, não teve chance de defesa”, revolta-se a mãe.
O corpo de Matheus, brutalmente torturado, foi abandonado em um valão do Rio de Janeiro. Arrancaram parte de sua pele, dos dentes e das unhas. Como Hanry, o estudante foi pego por policiais que exigiram arrego, e não pôde pagar por sua vida. Foi entregue a traficantes de uma facção rival à da área em que morava – por medo de retaliações, Renata pediu que não divulgássemos o local. “Meu filho só tinha 14 anos, não teve chance de defesa”, revolta-se a mãe. “Foi morto por ser pobre, preto e favelado. Porque, agora, o chicote que estala nas nossas costas vem acompanhado de balas de fuzil.”
Renata perdeu a vontade de viver. Por oito anos, mergulhou no vício em cocaína e no álcool. Durante esse período, sofreu violência doméstica e foi expulsa de casa. Passou uma semana perambulando pelas ruas até encontrar abrigo em uma cracolândia. Nessa época, chegou a liderar a ocupação de um prédio das redondezas. “Ajudei 146 famílias a conseguirem apartamentos do Minha Casa, Minha Vida”, orgulha-se.
Mas a paz durou pouco. Não passou um mês até que milicianos batessem à sua porta, exigindo uma lista dos moradores do Residencial Coimbra – condomínio entregue pelo prefeito Eduardo Paes em 2012, no bairro de Santa Cruz, zona oeste – e o pagamento de propina. A recusa de Renata lhe rendeu um juramento de morte e uma nova mudança de endereço. Longe das ameaças, ela voltou a sofrer com os confrontos constantes entre traficantes e as violentas operações policiais. “Desde o assassinato do Matheus que eu tenho síndrome do pânico. Se estou na rua e ouço um tiro, minhas pernas travam, não consigo me mexer. E, onde moro, a bala come.”
A ansiedade provocou em Deize Carvalho, de 47 anos, um transtorno alimentar. Deprimida, ela foi de 65 quilos aos 101. “Eu mastigava até arroz cru para aliviar a tensão, o que acabou me dando uma úlcera nervosa.” Hoje, o sofrimento psicológico e os problemas cardíacos ocasionados pelo assassinato a obrigam a tomar 11 comprimidos diariamente. “Quando nós, mães e moradoras de favelas, buscamos a Justiça e não temos resposta, acabamos adoecendo.”
Há dez anos, seu filho Andreu Luís da Silva de Carvalho foi torturado e assassinado por agentes do Centro de Triagem e Recepção do Departamento Geral de Ações Socioeducativas. Durante a primeira detenção do menino, pelo furto de um celular, Deize havia denunciado ao diretor da unidade as agressões que o filho sofria. Não sabia que o homem dividia suas reclamações com os agentes que deveriam zelar pela segurança de Andreu. Foram eles que receberam o rapaz de 17 anos em 2008. Torturaram o adolescente por mais de um hora, o espancando até a morte.
Como Márcia, ela passou a investigar as circunstâncias do assassinato e, em 2014, conseguiu uma bolsa para estudar Direito.
“Me senti mutilada”, explicou Deize. Na delegacia, ela tentou se matar duas vezes. Primeiro, puxando a arma de um policial. Depois, tentando se jogar na frente de um ônibus. A depressão só abrandou quando percebeu que precisava lutar por justiça. Como Márcia, ela passou a investigar as circunstâncias do assassinato e, em 2014, conseguiu uma bolsa para estudar Direito. Mas, ano passado, os problemas de saúde atrapalharam seu rendimento, e ela perdeu o benefício.
O estado lhe ofereceu apoio psicológico, mas ela recusou. “Como quem destruiu minha vida pode vir depois para ajudar?”. Há anos, faz terapia com a profissional que esteve a seu lado no momento mais difícil de sua vida: a exumação de Andreu, em 2011, provocada pela investigação da mãe. A ossada do filho revelava a extensão da tortura sofrida: havia fraturas no pescoço e nas costelas, e um afundamento de crânio. Nada disso, porém, foi incluído nos laudos da perícia inicial – comumente produzidos, segundo as mães, para proteger os agressores do Estado.
“Os advogados, os promotores e o juiz também não fizeram quase nada”, acusa Deize, que conseguiu, sozinha, sete testemunhas – uma raridade em casos como esse por conta das ameaças. A audiência, marcada para a tarde, foi uma decepção: o juiz decidiu adiar os depoimentos pelo horário avançado. “Ele só remarcou dois anos depois. Aí, só sobraram três testemunhas”, lamenta a mãe.
Quase 170 mil assassinatos foram registrados no estado do Rio nos últimos 20 anos, segundo o ISP. Mas, para Luciane Rocha, antropóloga da Universidade de Manchester, na Inglaterra, a dor das mães de vítimas do Estado é singular: nesses casos, a execução não se limita à hora do crime. Ela continua com a implementação do “kit bandido”; o registro como auto de resistência, homicídio cometido por policiais que alegam legítima defesa; a difamação da vítima; e a legitimação da morte por parte de uma sociedade que acredita que todos que são mortos pela polícia são bandidos. Sobre os ombros dessas mães, pesa não só o luto, mas a responsabilidade de, do dia para a noite, tornarem-se detetives, peritas, advogadas e promotoras.
A antropóloga Christen Smith, da Universidade de Austin, nos Estados Unidos, ressalta o aspecto político do adoecimento dessas mães. “A violência policial é uma doença com efeitos imediatos mas também duradouros”, argumenta. Os homens negros são alvejados à bala; as mulheres negras têm seus corpos lentamente devastados. Esse adoecimento, para ela, é uma parte essencial do genocídio negro. “O trauma produzido pela violência policial é uma consequência previsível e intencional. Prova disso são as humilhações a que as mães são submetidas.”
Em maio de 2014, Ana Paula de Oliveira e seus familiares tiveram que aguentar o deboche dos policiais da UPP de Manguinhos durante a missa de sétimo dia de seu filho, Johnatha de Oliveira Lima. Os agentes mataram com um tiro o rapaz de 19 anos durante uma confusão com crianças que jogavam pedras na UPP da favela da zona norte do Rio.
Por muito tempo, suas dores de cabeça, acompanhadas por dormência nos braços, fizeram com que Ana Paula temesse sofrer um derrame. “Eu ficava sozinha no quarto me perguntando: ‘Meu Deus, quem vai cuidar da minha filha se eu ficar doente?”, conta ao falar de Maria Paula, filha de 12 anos.
A perda de memória, comum a todas as mães traumatizadas, trazia à Ana Paula outro pensamento devastador: “Será que vou esquecer meu filho?”
A perda de memória, comum a todas as mães traumatizadas, trazia à Ana Paula outro pensamento devastador: “Será que vou esquecer meu filho?” Quando via as fotos do filho, procurava mais do que matar a saudade – forçava-se a lembrar de cada detalhe do dia retratado, como se fizesse um exercício de memória. Ana não tem acompanhamento psicológico estatal.
Em 2015, ela e a amiga Fátima Pinho, duas das Mães de Manguinhos, receberam a medalha Chico Mendes de Resistência. Na próxima segunda-feira, o assassinato de Johnatha completará quatro anos sem que o responsável tenha sido punido. Há 16 meses, o juiz determinou que o acusado – um policial militar – fosse a júri popular. A defesa entrou com um recurso, que deveria ter sido julgado no último mês de outubro. Mas, cedendo a uma manobra evidente, o desembargador responsável adiou a audiência por um motivo banal: o advogado do PM recusou-se a colocar uma gravata. O processo está parado.
Há quase 15 anos acompanhando casos como esse, Dalva Silva qualifica os julgamentos como “desumanos”. Ela é mãe de Thiago da Costa Correia da Silva, assassinado aos 19 anos na Chacina do Borel, em 2003. Assistir à absolvição de um dos policiais do massacre, em 2005, a fez desmoronar. Passou a ter problemas cardíacos e na tireóide. Deprimida, só procurou ajuda quando a perda de peso e o inchaço nas pernas a impediram de andar. Ela começou a fazer terapia depois de sair do CTI. “Foi o que me colocou de pé.”
“O Estado está sempre de costas para a gente. Quando vira, é com a ponta de um fuzil”
Nessa época, Dalva já havia fundado o movimento que se transformaria na Rede de Movimentos e Comunidades contra a Violência. Conhecida por todas as mães com quem conversei, a Rede promove os direitos humanos nas favelas. “O Estado está sempre de costas para a gente. Quando vira, é com a ponta de um fuzil”, comenta. O movimento tem psicólogas e advogados voluntários.
No dia em que nos encontramos, Dalva aguardava, na sala da Rede, a chegada de outras mães para uma reunião sobre o III Encontro Nacional de Mães e Familiares de Vítimas da Violência do Estado, que acontecerá na próxima semana, em Salvador. Os encontros anteriores, em São Paulo e no Rio, impulsionaram a instituição, nos dois estados, da Semana Estadual das Pessoas Vítimas da Violência do Estado, celebrada em maio. Agora, elas querem a criação da data na Bahia.
“Para a gente, é muito importante manter viva a memória dos nossos filhos”, diz Ana Paula, que também participará do encontro. “Sei que vou morrer com essa dor. Mas o amor que sinto pelo Johnatha é muito, muito maior. E é através da luta, encontrando outras mães que querem caminhar ao nosso lado, que a gente coloca todo esse amor para fora.”
*Nome trocado a pedido da vítima por razões de segurança.
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