A tragédia da violência no Brasil vai além das milhares de pessoas assassinadas. Ela também ocorre no trânsito. Em 2016, os acidentes mataram mais de 35 mil pessoas. Em uma década, são mais de 400 mil mortes decorrentes de desastres com caminhões, carros, ônibus e motos, incluindo os atropelamentos. É urgente agir para reduzir esses números e fomentar políticas que previnam a combinação de consumo de álcool e outras drogas com direção, um dos aspectos mais relevantes para a segurança no trânsito.
Nos últimos anos, porém, a ausência de uma discussão aprofundada e amparada em evidências somada a ações oportunistas e demagógicas do governo federal levaram o Brasil a adotar uma política cara, ineficaz e discriminatória que replica, no transporte, os equívocos da política contra as drogas. E, se depender de um esforço coordenado em andamento, isso pode piorar.
Trata-se do exame toxicológico de larga janela de detecção que, a partir da implantação da lei 13.103, de 2015, se tornou obrigatório para qualquer pessoa que queira solicitar ou renovar uma permissão de dirigir veículos automotores nas categorias C, D e E – aquelas que permitem que motoristas exerçam atividade profissional. Esse teste é realizado em amostras de cabelo, outros pelos do corpo ou unhas e deve ser capaz, segundo a lei, “aferir o consumo de substâncias psicoativas que, comprovadamente, comprometam a capacidade de direção e deverá ter janela de detecção mínima de 90 (noventa) dias, nos termos das normas do Contran”.
Os grupos de drogas que têm que ser pesquisados são as anfetaminas, os canabinoides, os opiáceos, a cocaína e o mazindol. Curiosamente, e sem nenhuma justificativa, outras drogas psicoativas com demonstrado potencial de dependência e que podem comprometer a capacidade de direção, como os benzodiazepínicos, não foram incluídas na lei. O exame, então, passou a ser realizado somente por laboratórios credenciados pelo Denatran.
Um intenso lobby já garantiu a obrigatoriedade do exame em todo país e, agora, seu objetivo é derrubar qualquer obstáculo judiciário ao exame e, mais a frente, torná-lo obrigatório para qualquer categoria de motoristas – ou seja, para todas as pessoas que dirigem veículos de qualquer tipo no Brasil.
Antes de tudo, há inúmeros problemas técnicos com o exame:
- Ausência de locais apropriados para coleta de material em todo o território nacional: muitos postos de coleta disponíveis pelos laboratórios atualmente credenciados não têm estrutura para adequada para essa tarefa.
- Foram demonstradas falhas na interpretação dos resultados: para citar um exemplo, o resultado positivo para canabinoides (derivados da maconha) detectados no cabelo pode não estar relacionado ao uso dessas drogas por quem passou pelo exame.
- Os exames não estão considerando a diferença entre pelos corporais e do couro cabeludo: os primeiros são incapazes de servir como parâmetro para averiguar o uso de substâncias psicoativas nos últimos 90 dias.
- Não existe nenhuma indicação que exame em unha, cuja ocorrência já foi relatada pela imprensa, possa ser utilizado para fins de prevenção de acidentes.
- Tem ocorrido atraso nos laudos e, consequentemente, perda da validade do exame (60 dias).
- Inexistem evidências científicas que apontem para a eficácia da medida do ponto de vista de segurança no trânsito: nenhum país do mundo adota esta política para aumentar a segurança no trânsito.
Ainda que o exame não tivesse todos esses problemas listados, obter a informação de que alguém fumou maconha, cheirou cocaína ou consumiu algum opiáceo ou anfetamina há 90 dias não comprova que a pessoa tenha dirigido sob o efeito de drogas – ou o que irá fazê-lo no futuro.
Além disso, o exame não é suficiente para atestar que essa pessoa faça uso problemático ou seja dependente dessa substância, assim como não seria se o exame apontasse que, há 90 dias, ela consumiu bebidas alcoólicas.
Ao contrário, o exame pode reforçar o estigma que já recai sobre pessoas que consomem substâncias psicoativas ilícitas. E, pior, caso essa mesma pessoa realmente esteja no limiar de um uso problemático – convém, também, não ignorar as consequências de exames falsos-positivos –, a exclusão do direito de dirigir profissionalmente pode torná-la ainda mais vulnerável à discriminação de seus potenciais empregadores.
A obrigatoriedade desses exames, cujo custo milionário é bancado por cidadãos brasileiros, produz um diversionismo para ações que, de fato, poderiam reduzir as estatísticas dramáticas de acidentes de trânsito. Por exemplo: a falta de fiscalização para flagrar quem está dirigindo sob efeito de alguma droga psicoativa – principalmente o álcool, que é, de longe, a substância que mais está relacionada a acidentes no Brasil – ou cometendo outras imprudências, como o excesso de velocidade.
O mínimo que se espera para colocar em prática uma medida com esse custo econômico e social seria uma avaliação de seus potenciais benefícios. Tomar como critério de sucesso a redução do número de pessoas que estão pleiteando autorização para dirigir – como tem sido feito pelo lobby a favor do exame – é o equivalente lógico a comemorar uma redução do número de voos comerciais pelo seu potencial de diminuição de acidentes aéreos.
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