Carolina* não tem mais controle sobre sua vida. Sobrevivente de uma agressão grave, cometida por um familiar, ela desenvolveu uma deficiência física. Há uma década, o problema de saúde foi considerado justificativa plausível para uma interdição. Declarando-a como incapaz, um juiz retirou dela o direito de tomar decisões sobre sua vida financeira e pessoal. Desde então, Carolina, hoje com 50 anos, vive em uma instituição para pessoas com deficiência nos arredores de Brasília – onde foi confinada pelos filhos, seus responsáveis legais, contra sua vontade.
Em todo o Brasil, mais de 5 mil adultos com deficiência física ou mental estão morando nesse tipo de instituição, segundo o censo mais recente do Sistema Único de Assistência Social. Entre novembro de 2016 e março deste ano, a organização internacional Human Rights Watch visitou 19 instituições de acolhimento, e descobriu – além dos inúmeros casos de abusos, maus tratos e condições degradantes – que quase todos os seus residentes foram legalmente privados do direito de decidir sobre a própria vida. A maioria foi internada sem seu consentimento.
Em uma instituição do Distrito Federal, todas as mulheres tomam anticoncepcionais sem seu consentimento.
Eles dependem dos seus responsáveis legais – em geral, um familiar ou o diretor da instituição – para tomar qualquer decisão: o que comem, com quem se relacionam, quando dormem, o que vestem, como gastam o dinheiro ou como passarão o dia. Em uma instituição do Distrito Federal, todas as mulheres tomam anticoncepcionais sem sua permissão. Em outras, é comum que os residentes tomem remédios e sedativos dados por funcionários, sem necessidade médica, para controlar seu comportamento.
As instituições não passam de hospícios modernos. Funcionam como asilos para idosos, mas voltados para deficientes físicos e mentais. O problema é que muitos deles, sejam instituições privadas dedicadas a esse fim ou alas de hospitais, operam como depósitos de pessoas.
Como Frederico**, homem de 70 anos internado desde os 5 em uma instituição de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, a maior parte dos residentes vive em instituições desde a infância. São décadas passadas em cima de camas dispostas uma ao lado da outra, sem qualquer atividade de lazer. Em certos casos, não se levanta sequer para usar o banheiro. Com poucos funcionários, algumas instituições evitam o trabalho colocando fraldas nas pessoas, e instruindo a equipe a trocá-las na cama. Às vezes, os quartos têm portas e janelas gradeados, ou grandes portões de ferro.
“Este lugar é muito ruim, é como uma prisão”, disse Carolina à ONG. Ela foi internada à força no mesmo ano que o Brasil ratificou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Segundo o tratado, os adultos com deficiência institucionalizados contra sua vontade são vítimas de privação ilegal de liberdade. “O número de pessoas nessa situação no Brasil é chocante até para nós, que estudamos o tema ao redor do mundo”, criticou Carlos Ríos Espinosa, autor do relatório lançado pela Human Rights Watch nesta quarta-feira.
Segundo o documento, é preciso que o Brasil invista em um processo de “desinstitucionalização” e na criação de “mecanismos de tomada de decisão apoiada”, para garantir a autodeterminação das pessoas com deficiência. Esse apoio envolve a adaptação da comunicação, para que a pessoa possa compreender o que está em jogo e escolha quem possa ajudá-lo com a decisão. Quando nem assim for possível determinar a vontade da pessoa, a decisão deverá ser tomada com base na interpretação mais próxima de suas preferências, e não no que outros julgam ser em seu “melhor interesse”.
Em 2015, foi sancionado o Estatuto da Pessoa com Deficiência, que tornava ilegal a internação sem consentimento, por permitir a privação de capacidade legal apenas em atos de natureza patrimonial e de negócios. Essa determinação, porém, foi revogada pelo novo Código de Processo Civil, adotado naquele ano. Agora, tramita no Senado um projeto de lei que pretende conciliar as duas leis.
*Nome fictício usado no relatório da Human Rights Watch.
**Nome atribuído pela reportagem a um homem citado anonimamente no relatório.
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