Você já assistiu ao filme do Batman, “O Cavaleiro das Trevas Ressurge”? Nesse filme, Bruce Wayne, depois uma vida colocando seu corpo em risco para enfrentar os vilões, precisa ir ao médico. Ele sente tanta dor que não consegue nem vestir seu uniforme e voltar para as ruas. No consultório médico, logo descobre que os males de seu corpo são maiores do que o bem que faz como Batman.
Esse sou eu neste momento.
Aos 15 anos, fui cruelmente espancado por um bando racista. O ataque me exigiu três cirurgias de coluna, e perdi 18 meses de escola enquanto convalescia. Mesmo tendo passado por outras cirurgias desde então, minha região lombar nunca se recuperou, e a dor irradia pelas minhas pernas diariamente. Já tentei fisioterapia, injeções contra dor e praticamente qualquer outra coisa que você possa imaginar.
Os chutes e socos no meu rosto fizeram estrago nos meus seios da face, que ainda me dão trabalho quase todo mês, embora os machucados já tenham desaparecido há bastante tempo.
Seis anos depois, eu sofri um terrível acidente de carro e fui arremessado de cabeça pelo vidro dianteiro, em velocidade máxima. O carro havia derrapado no gelo da estrada e atingiu a mureta de proteção antes que meu corpo fosse inteiramente projetado para fora, o que me impeliu de volta sobre o assento.
Foram necessários 400 pontos para consertar meu rosto. Os danos aos meus dentes foram enormes. Minha pálpebra precisou ser costurada de volta, assim como um grande pedaço do meu lábio inferior. Quando os ferimentos cicatrizaram, ainda me restaram vários discos rompidos no pescoço, seios da face em um estado ainda pior e uma enxaqueca crônica.
No ano seguinte, rompi o manguito rotador do ombro enquanto tentava trocar um pneu na chuva. Em 2016, o rompi de novo, enquanto empurrava móveis. E então, seis meses depois, estava prestes a cair de um palco em Nova Orleans quando consegui me segurar, e, por causa disso, fraturei meu outro ombro. A dor no pescoço aumentou exponencialmente.
Meu corpo é uma lástima. Sinto uma dor debilitante e incessante. Sair da cama é uma batalha. Tenho dificuldade para colocar meus sapatos. Dói para tirar e vestir uma camisa. Mas estou aqui: casado, com cinco filhos pequenos e uma carreira exigente.
Tomo remédios para dor de venda liberada. De tempos em tempos, tomo analgésicos controlados. Recebo massagens. Aplico bolsas de gelo e almofadas aquecidas. Estou há 20 anos começando e saindo da fisioterapia. Por fim, a dor no pescoço e na cabeça ficou tão grave no ano passado que precisei ir a uma clínica de dor.
Quando os médicos viram os resultados da ressonância magnética do meu pescoço, não conseguiam acreditar que eu tivesse passado tanto tempo sem intervenção médica. Naquele dia, aplicaram várias injeções para a dor. As injeções propriamente ditas estão entre as piores dores que já senti, que não foram poucas. Os tecidos, nervos e discos estavam tão ferrados que eu conseguia literalmente escutar o som de algo crocante enquanto eles enfiavam a agulha bem fundo no meu pescoço para injetar o medicamento.
Por pouco mais ou menos uma semana, eu me senti um novo homem. Eu vinha sentindo dor há tanto tempo que havia esquecido, de verdade, que poderia me sentir tão livre. Infelizmente, só era permitido tomar as injeções algumas vezes por ano, e meu plano de saúde nem cobria o tratamento.
E então o médico me receitou maconha medicinal.
Apesar de toda a dor que eu sentia, ainda fiquei hesitante. Pelos primeiros 37 anos da minha vida, eu me orgulhava de dizer que nunca havia fumado – nem maconha, nem cigarro, nada. Aliás, também não havia tomado nem um gole de álcool e nem uma xícara de café. Já agia quase como um monge diante dessas essas coisas, e depois de uma vida inteira evitando fumar, eu estava hesitante. Mas o médico insistiu que eu precisava tentar, se minha prioridade era evitar uma cirurgia.
Quando o médico conseguiu me convencer da ideia, eu estava pronto para testar já naquele dia. Eu precisava do alívio. Mas não é assim que funciona.
As leis que determinam se a maconha é lícita para fins médicos ou recreativos variam de um estado americano para outro; atualmente 29 estados e Washington D.C. têm algum tipo de maconha legalizada, e o uso recreativo é permitido em nove desses lugares. Em Nova York, há maconha medicinal, mas não há legalização para uso recreativo, então você precisa de uma licença e uma receita médica para conseguir. Quando o médico conseguiu me convencer da ideia, eu estava pronto para testar já naquele dia. Eu precisava do alívio. Mas não é assim que funciona.
Primeiro, eu precisava de uma habilitação de motorista do estado de Nova York, mas a minha era da Geórgia. Levei algumas semanas para resolver isso, o que incluiu pagar uma multa na Geórgia que eu nem sabia que existia. Depois, precisava me inscrever para obter uma licença de maconha medicinal – o que levou muitas outras semanas. Quando recebi a licença pelo correio, já havia se passado dois meses desde que o médico me dera a receita, e o processo havia me custado várias centenas de dólares.
Por fim, fui a uma clínica de maconha medicinal, onde fui recebido por uma médica que liberou o que achou necessário. O que eu não sabia era que as clínicas não vendem as flores de maconha, mais conhecidas como “camarão”. O que elas vendem é óleo de cannabis que você pode fumar usando um cigarro eletrônico, ou pílulas digeríveis que têm o mesmo efeito. Comprei o suficiente para durar por um mês. Custou 500 dólares. Fiquei espantado. O plano de saúde também não cobria. Eu, na verdade, nem poderia arcar com esses custos, mas estava tão desesperado para aliviar a dor que gastei o dinheiro mesmo assim.
E me ajudou um pouco – em alguns dias, mais do que em outros. Precisei usar por algumas semanas até realmente sentir que aliviava a dor. Mas a maconha acabou há vários meses, e eu simplesmente não consegui tempo para voltar lá. Era tão caro e tão complicado que deixei para lá, mas eu preciso dela.
Neste momento, enquanto digito isso, estou sentindo dor, mas o processo simplesmente não funciona para mim. O que pega é que esse processo também não funciona para a maior parte dos nova-iorquinos que precisam da cannabis. Somos ocupados. Vivemos com um orçamento apertado. E essa cidade enorme tem meia dúzia de lugares onde se pode obter maconha medicinal. Não deveria ser tão difícil, nem tão caro. A questão é: eu nem saberia que o problema existe nesse nível se não precisasse do alívio da dor que só a cannabis proporciona.
A alternativa a essa via sacra absurdamente complicada, inconveniente e cara é tentar conseguir maconha no mercado negro, mas isso traz alguns riscos óbvios. Eu precisaria infringir a lei e me arriscar a ser preso levando mais alguém junto. Por sorte, não preciso disso: posso usar a via medicinal – tenho 500 dólares, a licença e a receita médica. Dezenas de milhares de nova-iorquinos, porém, que também precisam do que eu preciso, não podem, e isso não está certo.
O fato é que a maconha já está basicamente descriminalizada para as pessoas brancas que a compram para uso recreativo e para qualquer outra que possa pagar pela via medicinal. É completamente errado que alguém seja preso e tenha a vida arruinada porque tem um deseja ou precisa de maconha, mas simplesmente não tem o mesmo nível de acesso à erva.
Há anos estudo e divulgo como as comunidades não-brancas são visadas pela polícia, presas e condenadas por posse de maconha em uma frequência completamente desproporcional em relação às pessoas brancas – muito embora a frequência do uso seja quase idêntica. Agora, porém, na condição de alguém que realmente quer o produto para si mesmo, pude ver de perto o quanto o sistema é enviesado: há pessoas não-brancas indo para a prisão por portarem a mesma substância que eu posso conseguir, porque tenho acesso a um médico e recursos para pagar seus altos custos no mercado medicinal.
Há pessoas não-brancas indo para a prisão por portarem a mesma substância que eu posso conseguir porque tenho acesso a um médico e recursos para pagar seus altos custos no mercado medicinal.
O que piora as coisas é que, tendo fumado maconha depois de adulto, fica óbvio que essa não é uma droga perigosa – e que não tem nada a ver com os filmes educativos contra o uso de drogas. As pessoas deveriam poder curtir essa droga leve sem precisar enfrentar o risco de serem presas.
E o risco de prisão é bem real. Há décadas a cidade de Nova York vem fugindo com todas as forças de uma reforma na guerra às drogas. A cidade tem uma taxa estratosférica de prisões por maconha, embora tenha um prefeito liberal e uma Câmara de Vereadores totalmente dominada pelos Democratas.
Alguns dos promotores locais anunciaram que irão parar de denunciar alguns crimes ligados à maconha, e o prefeito Bill de Blasio também declarou que está determinando algumas mudanças nas políticas policiais. Mas isso não muda o fato de que a maconha ainda não é descriminalizada aqui – e certamente não é legalizada. Promotores nos bairros do Bronx, Queens e Staten Island disseram que irão continuar com as muitas milhares de prisões e condenações que eles acompanham a cada ano por posse de maconha. É um completo absurdo.
As soluções para as injustiças do mercado negro e as altas barreiras de entrada no mercado medicinal são óbvias: a cidade de Nova York precisa imediatamente descriminalizar a Cannabis. E o estado deveria reverter todas as prisões, retirar todas as condenações prévias, limpar os registros, e então legalizar completamente a erva – com a garantia de que as pessoas que pagaram o preço mais alto para vender nos últimos cinquenta anos recebam uma parte relevante dos negócios.
A reputação progressista de Nova York, que é motivo de orgulho para a cidade, se afasta muito da realidade, em especial no que tange à reforma do sistema criminal e a questões de igualdade em comunidades não-brancas.
Eu me preocupava com esse assunto muito antes de ter usado maconha. Agora que uso, as desigualdades e disparidades ficaram ainda mais claras. Nova York ainda tem um longo caminho a percorrer antes de sequer chegar perto de consertar muitos desses seus erros.
Tradução: Débora Leão
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