O combustível sonegado aos postos atiça há dez dias a brasa do golpismo. Caminhoneiros autônomos ou a serviço de empresas de transporte rodoviário de cargas apelam pela ruptura institucional. Em frente à Refinaria Duque de Caxias, uma faixa pregou “Intervenção militar é solução; buzina, Brasil!”. Ali, taxistas e motociclistas se uniram aos caminhoneiros em gritos pela dita intervenção, cuja tradução sincera é golpe militar ou golpe de Estado.
Num bloqueio na rodovia Régis Bittencourt, picharam no asfalto “Queremos intervenção militar já”. Na cidade potiguar de Mossoró, esbanjaram pontos de exclamação: “Queremos intervenção militar no Brasil urgente!!!”. No país inteiro, aflito e atônito, foi assim.
Difundiu-se num grupo de rede social restrito a caminhoneiros a mensagem, anotada pelo repórter Ricardo Senra: “As reações à greve dos caminhoneiros, amplamente apoiada pela população, demonstram que o brasileiro está sem paciência alguma com as ‘autoridades’. As condições são ideais para uma verdadeira revolução que refunde o Brasil. Mas onde está a liderança desse processo? Escrevam no para-brisa dos caminhões e carros. Intervenção militar!”.
A repórter Josette Goulart capturou esta incitação em vídeo, no grupo catarinense de WhatsApp “Carreteiros na luta”, que reúne 257 participantes: “Vamos parar o Brasil. Vamos parar tudo. Você que quer uma intervenção civil e militar saia às ruas e dê apoio aos caminhoneiros”. Na manhã da quinta-feira, as consultas sobre “intervenção militar” alcançaram o segundo lugar no ranking brasileiro do Google. Parentes de caminhoneiros e aliados deles promoveram no fim de semana atos diante de quartéis no Rio Grande do Sul e em Minas. As vivandeiras, essa espécie imortal, imploravam por “intervenção militar”.
O cineasta Jorge Furtado contou: “Um amigo passou por uma fila de caminhoneiros em greve e gritou: ‘Força aí, companheiros!’. Os caminhoneiros responderam: ‘Sai fora, vermelho! Comunista!’”.
Acossado pela ditadura nas décadas de 1960 e 1970, o ator Francisco Milani teve de trocar de ofício. Passou a exercer a digna e dura profissão de caminhoneiro. De regresso à carreira artística, elegeu-se vereador no Rio. Militava no Partido Comunista Brasileiro.
Um pouco de história
A história oferece pistas para elucidar o caráter de certos movimentos sociais e caldos de cultura. Em novembro de 2015, caminhoneiros interditaram estradas de ao menos 14 Estados. Um dos líderes bravateou como reivindicação prioritária a queda de Dilma Rousseff. A presidente reagiu à obstrução com o aumento dos valores de multas e sanções aos motoristas. Derrotou o protesto.
Os empresários do transporte rodoviário do Chile tramaram em 1972 uma paralisação de quase um mês que provocou vasto desabastecimento de mercadorias. A CIA integrou a conspiração oposicionista que estacionou os caminhões. Às vésperas da deposição do presidente Salvador Allende, em 1973, reeditaram a operação e devastaram ainda mais a economia.
O golpista Michel Temer nada tem a ver com Dilma e muito menos com Allende, governantes consagrados pelo voto popular. Mas os três locautes e greves prestaram-se a idêntico propósito: extremistas de direita alvejarem a democracia.
É claro como roupa lavada em propaganda de sabão em pó que nem todos os caminhoneiros comungam da fé intervencionista. Mas foram raras as invocações por “Lula livre” e raríssimos, e olhe lá, os incentivos às candidaturas presidenciais de Marina Silva, Ciro Gomes, Geraldo Alckmin, Manuela D’Ávila ou Guilherme Boulos. “Não tem uma bandeira vermelha, estão de parabéns”, festejou o deputado Jair Bolsonaro.
“Sabe que todo caminhoneiro vota no Bolsonaro, né?”, esclareceu, com uma pergunta, o empresário e caminhoneiro Claudinei Habacuque, dono de quatro caminhões. Parcela expressiva dos caminhoneiros e sobretudo dos seus patrões tem lado, e a este tem sido útil. Desfralda a bandeira para se livrar do problema, “Fora, Temer!”, mas acrescenta o estandarte liberticida “Intervenção militar!”.
Bolsonaro hesitou mexer as peças, mas no auge da mobilização fez o seu lance. Manifestou-se por Twitter e WhatsApp: “Qualquer multa, confisco ou prisão imposta aos caminhoneiros por Temer/Jungmann será revogada por um futuro presidente honesto/patriota”. Logo recuou o cavalo: “A paralisação precisa acabar, não interessa a mim, ao Brasil, o caos”. Carcomido açulador de golpes, condenou a “intervenção militar”.
O jornalista Janio de Freitas alertou: “Na gravidade e nos modos, a situação provocada pelos caminhoneiros empresariais e autônomos se ajusta, com precisão, ao que Jair Bolsonaro diz e representa para o eleitorado. O governo fraco e frouxo, a falta de ordem e de quem a ponha sob controle, o Congresso dos negocistas, o alto Judiciário confuso e confundindo, e a população indignada, a esperar das ‘autoridades’ a solução que não vem”.
Conspirações fardadas e paisanas
Janio revelou que têm havido “reuniões de militares fora dos quartéis, para ‘discutir a situação’”. Jabeou: “Só poderiam ser vistas como prática de civismo se o passado brasileiro, a partir do golpe da República, não as intrigasse com o espírito da democracia”.
Que o diga o general-de-exército Antonio Hamilton Mourão, fanzoca do torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra e partidário da candidatura presidencial de Bolsonaro. Em entrevista à jornalista Joice Hasselmann, o oficial da reserva vociferou: “Terá que haver uma intervenção forte num primeiro momento, colocando ordem nessa casa”. Atemorizou: “Se o país irá flertar com o caos, só existe uma instituição capaz de impedir que isso aconteça, e essa instituição são as Forças Armadas”.
O general Mourão rechaçou, entrevistado pelo repórter Rubens Valente, a “intervenção militar” nos moldes do estímulo dos caminhoneiros. Porém, desafiou: “Se o governo não tem condições de governar, vai embora, renuncia. Antecipa as eleições […]”. Um dia antes, o deputado e pastor Silas Malafaia rumara pela mesma prosa: “Antecipe as eleições. Dê posse antecipada ao presidente novo”.
Quando Mourão e Malafaia, sócios do consórcio anti-Dilma, especulam sobre antecipação das eleições, a pulga cambalhota na orelha. Com menos de 1% de intenção de voto para o Planalto, Temer é tão abominado que, se um jiló gritar “Fora, Temer!”, os brasileiros elogiarão seu gosto adocicado. Só o ministro Carlos Marun, celebrizado como leão-de-chácara de Eduardo Cunha, encena devoção pelo chefe.
Temer fora é uma coisa – ele já iria tarde. Antecipar o pleito de 7 de outubro, outra. Efetivá-lo hoje favoreceria quem agora mostra vigor nas pesquisas, mas pode sofrer com os segundos parcos no horário eleitoral – Bolsonaro. Noutras trincheiras, diminuiria o tempo para Lula transferir votos ao candidato que apadrinhar e encurtaria campanhas promissoras. A essa altura, conversa sobre mudança do calendário eleitoral planta antecipação para colher adiamento ou cancelamento. Faltam quatro meses e sete dias para o primeiro turno.
Outra conversa ladina é a do “semipresidencialismo” preconizado pelo protagonista do golpe de dois anos atrás. Michel Temer edulcora tal regime como “extremamente útil para o Brasil”. A despeito da retórica ardilosa, seria desprestigiado o instituto do sufrágio popular, ou o presidente escolhido pelos cidadãos. Esvaziariam seus poderes. O ministro Gilmar Mendes é um dos articuladores da proposta, que, alegam, passaria a vigorar em 2023. Não surpreenderia, a depender das restrições ao eleito em outubro de 2018, implementarem a manobra quatro anos antes.
A crise é política. Só adivinhões prognosticam seu desfecho. Ele será influenciado pelo silêncio ou pelo rugido das ruas.
O céu está nublado. Deputados, senadores e ministros do STF percebem que cresce a possibilidade de Temer não completar o mandato. Um senador da base governista sugeriu a derrubada do vice de Dilma. José da Fonseca Lopes, presidente da Associação Brasileira dos Caminhoneiros, disse que há “um grupo muito forte intervencionista” que “quer derrubar o governo”. Não seriam, afirmou, caminhoneiros. Há “infiltrados” denunciou o governo. Inexiste liderança única dos manifestantes ou interlocutores plenamente autorizados.
A crise é política. Só adivinhões prognosticam seu desfecho. Ele será influenciado pelo silêncio ou pelo rugido das ruas – neste caso, do recado que se ouvirá.
Como escreveu o Barão de Itararé, há qualquer coisa no ar, além dos aviões de carreira – menos os que permaneceram em solo, imobilizados nos doze aeroportos sem querosene.
20 anos em 2
É justa a bronca dos 2 milhões de caminhoneiros do Brasil. A tresloucada política de preços de combustíveis da Petrobras no governo Temer tornou imprevisível o custo dos fretes. Os reajustes oscilam conforme a cotação internacional do petróleo e a flutuação do câmbio. Em um ano, o barril pulou de 45 para 80 dólares. Só em maio o óleo diesel subiu 11,85% nas refinarias.
Os contratantes, contudo, não pagam um centavo a mais pelo transporte. O caminhoneiro combina um valor que, ao final, pode nem cobrir as despesas com a viagem, porque o combustível ficou mais caro. Inexiste margem para negociação: há frota demais para carga de menos. Se um caminhoneiro não quer, outro topa. O litro do diesel só foi mais caro em 2008. Mas naquele ano o barril saía a US$ 140.
A paralisação foi locaute e greve, mais aquele do que esta. Trinta por cento dos caminhoneiros são autônomos. Os demais trabalham para grandes, médias e pequenas transportadoras. Os patrões apoiaram, se é que não organizaram, o movimento dos trabalhadores. Seria uma greve peculiar. Ao pedirem redução de impostos federais e estaduais e serem atendidos, os caminhoneiros serviram de estridentes porta-vozes dos empresários.
Na noite do domingo, Temer rendeu-se, em pronunciamento recepcionado por panelaços (com muito menos decibéis do que os que atazanavam a antecessora). Abateu tributos, reduziu o preço do diesel, congelou-o por 60 dias, comprometeu-se com reajuste só uma vez por mês, criou tabela mínima para frete, barateou pedágios. Destinou a caminhoneiros autônomos 30% dos fretes da Companhia Nacional de Abastecimento. Manteve a desoneração tributária na folha de pagamento das transportadoras, para júbilo patronal. O acordo sugará R$ 10 bilhões ao Tesouro.
Os contribuintes bancarão com subsídios o lucro dos acionistas privados da Petrobras. Uma sociedade de economia mista sob controle da União não deveria se guiar exclusivamente por vantagens mercantis, à revelia de políticas públicas. É uma aberração brasileiros miseráveis patrocinarem, com novos cortes nos magros recursos sociais, a política de preços da companhia presidida por Pedro Parente.
Os caminhoneiros pareceram poupá-lo de sua artilharia. Melhor para quem conjura a privatização da Petrobras. Os petroleiros iniciam hoje uma greve de três dias para “baixar os preços do gás de cozinha e dos combustíveis, contra a privatização da empresa e pela saída imediata do presidente Pedro Parente”.
O poder dos donos e motoristas de caminhões é imenso no país em que dois terços das cargas são transportadas em rodovias. Excluindo petróleo e minério, 90% delas seguem por estradas. Anteontem persistiam 556 pontos de bloqueios, em rodovias federais. Mesmo com a rendição do governo, numerosos caminhoneiros temem ser passados para trás.
É uma aberração brasileiros miseráveis patrocinarem, com novos cortes nos magros recursos sociais, a política de preços da companhia presidida por Pedro Parente.
Temer e seus aspones os subestimaram. Os caminhões começaram a se enfileirar nas pistas e nos acostamentos na segunda-feira retrasada, 21 de maio. Seis dias antes, a Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos protocolou na Presidência da República o aviso de que a manifestação começaria dali a menos de uma semana. Pediu audiência “em caráter emergencial”, e o governo ignorou a advertência.
Teria sido mais uma bobeada? Interessaria a alguém, no Planalto, conflagrar o país? Na sexta-feira, encurralado, Temer convocou as Forças Armadas para escoltar caminhões-tanque abastecidos em refinarias e outras missões –não pediram uma “intervenção militar”? O de costume: governo pusilânime, tropa na rua. Em São Paulo, a polícia reprimiu com bombas de gás um protesto de motoboys por combustível mais barato.
Em meados do mês, o governo distribuíra um convite para a cerimônia comemorativa dos dois anos da administração Temer com o slogan “O Brasil voltou, 20 anos em 2”. Todos leram, curvando-se aos fatos, sem a vírgula. Já com os 40 mil postos quase sem uma gota de gasolina, Temer entregou 369 automóveis em evento no Estado do Rio.
Na segunda-feira, oitavo dia da mobilização, jornais publicaram um anúncio do governo federal com o mote “Avançamos com o Brasil”. Na foto, as gôndolas estão abarrotadas de legumes e frutas. Nos supermercados reais, estavam vazias. Não basta empurrar o Brasil para o abismo; Temer tripudia sobre carências e desesperos alheios. Com seu furor ultraliberal na Petrobras, ele é o principal artífice do caos.
À beira do abismo
Nos dias em que o Brasil sem caminhões se equilibrou à beira do abismo, rarearam nas farmácias insulina, hormônios e remédios. Hospitais adiaram cirurgias agendadas e só asseguraram as urgentes. Estoques de oxigênio estiveram na iminência de esgotar. Suspenderam campanhas de vacinação. Não recolheram o lixo em São Paulo e em muitas cidades. Ambulâncias não circularam devido à ameaça de pane seca. Famílias sofreram sem gás de cozinha. Com incômodos ou dramas, os brasileiros padeceram.
Escolas e universidades fecharam – só no Rio, 1.500 estabelecimentos da prefeitura, mais de 650 mil alunos, dos quais metade não costuma levar lanche; perderam a refeição diária garantida. Sem fornecimento de alimentação e com funcionários sem transporte, creches não receberam as crianças país afora.
Hortifrútis desapareceram. Escassearam carne de frango e de boi, muitíssimos produtos. Supermercados limitaram compras. Em pânico, houve gente que estocou comida como um francês aguardando a invasão alemã ou, um tcheco, a soviética. A saca de 50 quilos de batata de um dia para o outro saltou de 70 para 350 reais no atacado.
A Cedae pediu para os cariocas pouparem água, por carecer de insumos de tratamento. Uma unidade do McDonald’s de Copacabana ficou sem Big Mac, porque os pães vindos do Espírito Santo e os hambúrgueres fabricados em São Paulo não chegaram. Num restaurante, a rabada com agrião se metamorfoseou em rabada com brócolis. Com carros na garagem, os engarrafamentos sumiram. A frequência aos cinemas caiu a menos da metade. O faturamento do comércio despencou.
No domingo, os ônibus descansaram em Belo Horizonte e Porto Alegre. O transporte coletivo minguou, com a maior parte das frotas inativa. Trens superlotaram. Quanto mais longe do trabalho se mora, pior –os mais pobres foram os mais afetados. Municípios decretaram situação de emergência e estado de calamidade pública. As polícias fizeram menos rondas motorizadas. Nos postos com estoque de combustível, formaram-se filas, ao pé da letra, quilométricas. Em alguns, os clientes tentaram resolver a tapa quem encheria o tanque primeiro.
Por falta de ração, sacrificaram 64 milhões de aves. Em granjas, frangos famélicos comeram as penas de outros, causando ferimentos que matam. Nos próximos dias, podem morrer 1 bilhão de aves e 20 mil porcos. Interromperam as atividades 167 fábricas de carne de ave e carne suína. Nelas trabalham 234 mil funcionários.
Sem transporte, os produtores jogaram fora leite estragado. Idem os caminhoneiros, nas rodovias. Com o colapso no abastecimento, todas as montadoras de automóveis suspenderam a produção –o setor representa 4% do PIB brasileiro e 20% do industrial. Usinas de açúcar e álcool pararam. Ontem, o movimento dos caminhoneiros arrefecia.
Outro dia o ministro Marun, da Secretaria de Governo, adulou Temer como “o melhor presidente do Brasil por hora de mandato”.
Uns se afligem, outros debocham.
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