Muitas críticas podem ser feitas ao governo tucano de Nelson Marchezan Jr. em Porto Alegre, mas ninguém poderá reclamar da falta de novas ideias. Nesta semana, a prefeitura surpreendeu com mais uma inovação: resolveu cobrar pelo aluguel da Praça da Alfândega, espaço público onde ocorre gratuitamente, há mais de 60 anos, a tradicional Feira do Livro da cidade. Parece piada, mas a Câmara Rio-grandense do Livro recebeu mesmo o inédito carnê, com vencimento em setembro, um mês antes do início do evento.
Exigir que a Feira do Livro pague pelo privilégio de utilizar a praça é uma completa inversão de lógica. O valor do inusitado boleto é de pouco menos de R$ 180 mil – uma ninharia, comparado aos R$ 7,2 bilhões em despesas no orçamento da prefeitura para 2018. Com esse investimento irrisório, a cidade ganha em capital simbólico e tem a chance de reencontrar a si mesma, todos os anos, em meio às bancas que transbordam livros. Além das muitas sessões de autógrafos, que trazem autores de todo o país e do exterior, a quantidade de debates e eventos paralelos é grande, ao ponto de ir além da praça e atingir outros espaços de cultura na cidade. No ano passado, estima-se que 1,4 milhão de pessoas compareceram. São 17 dias em que a literatura entra no cotidiano dos porto-alegrenses, de tal forma que a Feira já está na memória afetiva da cidade. O evento é considerado a maior feira de literatura ao ar livre da América Latina.
Ainda que um mero troco de balas para o Executivo, esse valor é potencialmente impagável para os organizadores e pode resultar no cancelamento do evento – um prejuízo social, cultural e econômico que poupar uma meia dúzia de trocados não poderia sequer começar a quitar. Segundo Isatir Bottin Filho, presidente da entidade, o evento é financiado por meio de leis de incentivo, apresentados com grande antecedência e que não levam em conta, em seus orçamentos, o inesperado aluguel. Como a Câmara do Livro não tem fins lucrativos, nem dinheiro em caixa para desembolsos do tipo, pagar a fatura não seria tarefa fácil. “Recebemos com surpresa a cobrança. (A Feira do Livro) é um fomento à leitura e tradição na cidade e no Estado. Esperamos resolver de maneira pacífica“, afirmou.
Mas sejamos justos: não é de hoje que o governo Marchezan tem procurado gerar divisas com os espaços públicos da cidade. No mesmo dia em que a situação com a Feira do Livro ganhou as manchetes, a prefeitura anunciava, em uma pequena nota, a assinatura de mais uma parceria com o Instituto Semeia, organização financiada pela Natura, que busca colocar a iniciativa privada no comando dos parques naturais e urbanos do Brasil.
O próprio prefeito defende que a adoção de praças na cidade gere como contrapartida a exploração de eventos culturais. Ou seja, a empresa adotante vai poder cobrar dinheiro pelos shows e feiras que ocorram no local – estratégia semelhante a que Marchezan acaba de tomar com a Feira do Livro. A cidade ganha novas barreiras, o caráter público vai para o espaço, mas pelo menos teremos praças bonitas e lindas planilhas das quais nos orgulhar.
Além de não ser muito chegado em tomar conta sozinho das áreas de lazer, Marchezan também não parece colocar a cultura popular entre suas prioridades. Seu governo tomou medidas que estrangularam de vez as escolas de samba da Capital, em um processo que levou ao cancelamento dos desfiles de Carnaval deste ano.
Quem conta com o apreço do atual prefeito é o MBL, movimento pseudoliberal e neocarola que fez de tudo para fechar a exposição Queermuseu, e que acomodou integrantes em diferentes secretarias do governo municipal – entre eles, Ramiro Rosário, secretário que cuida, vejam só, dos parques e praças em Porto Alegre. A participação do MBL não é novidade em governos tucanos, acontecendo também em outras capitais, como São Paulo, e em prefeituras do interior paulista, como Taboão da Serra e Pinheiros.
Integrante do MBL é titular da pasta que quer lotear praças da capital gaúcha.
Tudo isso pode causar assombro em quem não conhece o estado de coisas da cidade, mas não chega a ser surpreendente vindo de um prefeito que cogita extinguir a Fasc, entidade que organiza os repasses do Bolsa Família na capital gaúcha – e alega, para justificar o disparate, um “déficit” de R$ 210 milhões que equivale, na verdade, ao orçamento total do órgão para o exercício de 2018. Toda a grana investida na fundação que atende pessoas carentes e vulneráveis em Porto Alegre seria, nas palavras do prefeito, puro prejuízo. Talvez seja melhor nem perguntar por quê.
É nessa lógica mesquinha, que vende talheres para economizar o tempo de lavar a louça, na qual se insere a absurda ideia de cobrar pela praça que sedia o mais tradicional evento cultural da cidade. A Porto Alegre da gestão Marchezan não precisa de livros, de efervescência cultural ou de espaços de convivência. Precisa render grana, e só. Ou pode ser passada adiante, como algo que a gente vende só para não ficar ocupando espaço em casa.
Atualização em 5 de julho de 2018:
O Instituto Semeia entrou em contato após a publicação da matéria e afirma que a organização, embora de fato fundada pela família de Pedro Passos, um dos sócios da Natura, “não recebe nenhum tipo de recurso da empresa, sendo integralmente financiada pela atividade filantrópica da família Ruggiero Passos”.
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