Engavetada há três anos e ignorada pelo governo de Michel Temer, uma proposta de controle mais rígido de munições no Brasil poderia ser a diferença entre solucionar ou não crimes como a morte da vereadora Marielle Franco. Em um país em que 122 pessoas são assassinadas por dia vítimas de armas de fogo e em que 96% dos homicídios ficam sem solução, o projeto propõe reduzir o tamanho dos lotes de munição comercializados no Brasil – hoje, só lotes de 10 mil cartuchos e que sejam vendidos para forças policiais possuem alguma identificação.
O texto, elaborado a pedido do próprio governo por servidores públicos e ONGs, foi entregue em dezembro de 2015 e deixado de lado. A proposta prevê a criação de lotes de munição menores, que permitiriam “a rastreabilidade individual e não apenas do órgão adquirente”. Com caixas de 50 balas e não de 10 mil, que teriam até o comprador identificado, seria possível rastrear de forma mais eficiente o seu destino.
A vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes foram executados a tiros em março. Até hoje, quase três meses depois do assassinato, os criminosos não foram identificados. A munição usada pelos criminosos pouco ajudou na investigação porque fazia parte de um lote de mais de 10 mil cartuchos comprado pela Polícia Federal do Distrito Federal e roubado em 2006.
Um dos investigadores da força-tarefa da Delegacia de Homicídios do Rio que tenta encontrar os assassinos de Marielle diz que a forma como os lotes de cartuchos são vendidos hoje torna muito difícil identificar os autores dos disparos. “Até se me dessem um lote de 1.500 balas ficaria difícil de descobrir quem é porque iria para vários batalhões, não iríamos ter como saber a pessoa”, afirmou o policial, que preferiu não se identificar.
Para determinar de onde vem uma munição, a polícia precisa recorrer a uma empresa privada – a Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC), única fabricante de munições no país. A medida foi definida em 2004 pelo Exército, que consultou a própria empresa para criar a regulação. Pelo texto, apenas lotes acima de 10 mil cartuchos e vendidos para o governo precisam ser identificados. “Você vai pedir à raposa como se protege o galinheiro?”, questiona Antônio Rangel Bandeira, integrante do grupo de trabalho que elaborou o relatório e membro da ONG Viva Rio.
Como as munições hoje vêm em lotes muito grandes e depois são redistribuídas dentro das forças policiais, é possível identificar o caminho inicial, mas não o paradeiro final ou, ao menos, mais aproximado das balas. Caso dos cartuchos usados no assassinato de Marielle, que, depois que foram comprados pela PF em 2006, já apareceram em um assalto a uma agência dos Correios na Paraíba, em guerras entre facções rivais de traficantes em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio, e na maior chacina do estado de São Paulo, quando 17 pessoas foram assassinadas em Barueri e Osasco em 2015.
Com grandes lotes, o rastreamento da munição fica mais complicado conforme as caixas de balas vão sendo entregues às diversas unidades de polícia espalhadas pelo Brasil porque os investigadores só conseguem enxergar qual setor recebe o lote principal. A partir do momento em que é subdividido, o controle se perde.
Reportagem veiculada pelo “Fantástico”, da Rede Globo, neste domingo, mostrou que o lote UZZ18, de onde vieram as balas usadas no assassinato da vereadora, tinha quase 2,5 milhões de unidades (2.463.000), e não as 10 mil balas previstas pela determinação do Exército à CBC. Depois de comprada pela PF, a munição foi redistribuída para todas as unidades da corporação. Rio de Janeiro, São Paulo e o Distrito Federal receberam a maior quantidade: mais de 200 mil cápsulas cada um, tornando descobrir em que ponto parte das balas foi desviado das mãos da polícia quase impossível.
Coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz, Natália Pollachi, que também participou do grupo que escreveu o documento para o governo federal, diz que o rastreamento mais preciso das munições “dá uma linha de onde começar a investigar”. O caso Marielle, acredita, poderia ter outro desfecho.
“Isso facilitaria bastante a investigação”, disse. “Talvez não indicasse o assassino [de Marielle e Anderson] diretamente, mas pelo menos individualizaria qual equipe ou qual unidade [policial] desviou a munição para que outra pessoa atirasse.”
Natália cita como exemplo a investigação da morte da juíza Patrícia Accioly, em 2011. Uma das principais pistas que levou a polícia até os assassinos da magistrada foram as munições. Como elas estavam identificadas, foi possível determinar que elas foram entregues a três batalhões da PM do Rio e, ao final, nove policiais foram condenados.
Um pedido antigo
O grupo que deu origem ao relatório começou a trabalhar em maio de 2015 a partir de uma portaria do ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, que previa a discussão sobre o controle de armas e a Campanha do Desarmamento. Participaram servidores do ministérios, da PF, da Polícia Rodoviária Federal, do Instituto Sou da Paz, e ONGs ligadas à Rede Desarma.
Além de reduzir o tamanho dos lotes, o documento propõe uma série de outras medidas para melhorar o controle de armas e munições no país como integrar os bancos de dados de armas das forças policiais e do Exército, aumentar a fiscalização sobre empresas de segurança e profissionais que consertam esse tipo de equipamento e controlar melhor a destruição de armamentos apreendidos (leia o relatório ignorado pelo governo) .
Pedidos para apertar esse controle são feitos desde 2007. “Alguma coisa foi feita”, desconversou o ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, quando questionado pela reportagem sobre o destino do relatório.
Em resposta à reportagem, o Ministério de Segurança Pública informou que apenas duas medidas foram tomadas após o relatório ter sido entregue: continuar a indenizar quem entrega armas ao governo (medida iniciada com o Estatuto do Desarmamento, de 2003) e seguir com o esforço de integrar banco de armas do Exército e Polícia Federal.
Faz 15 anos que a lei que determina a integração está em vigor, mas até hoje ela não saiu do papel: os dados sobre o armamento registrado pelo Exército não estão acessíveis à Polícia Federal, mesmo quando se tratam de armamentos pessoais dos militares ou de colecionadores e caçadores.
Ainda assim, o Exército afirmou que a unificação dos sistemas está “em fase adiantada”. “Como se trata de sistemas antigos, com linguagens de programação distintas e de difícil configuração, além de necessitar ferramentas complexas de segurança, devido à sensibilidade dos dados que tratam, os trabalhos ocorrem de forma sistêmica e se encontram em fase adiantada”, afirmou o Exército.
Os militares também responderam, em nota enviada ao The Intercept Brasil, que estão desenvolvendo um sistema de rastreamento mais restrito de munição em que os lotes seriam identificadas a partir da “menor unidade de acondicionamento”. Hoje, a maioria das caixas de balas vêm com 50 cartuchos. Não há, no entanto, nenhum prazo para que isso ocorra.
Procurada, a Polícia Federal não prestou esclarecimentos sobre mudanças sugeridas no controle de munições. A Companhia Brasileira de Cartuchos se limitou a comentar que “cumpre totalmente a legislação em vigor e está em permanente disposição dos órgãos fiscalizadores, para auxiliar na realização de estudos específicos sobre o controle de armas de fogo e munição e proceder ajustes, julgados necessários”.
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