Certa manhã de abril, quente e de muito vento, Darling acordou às 4h30 para amamentar seu bebê de um ano. Ela morava em uma casa de um quarto com três outros filhos e a mãe doente na favela de El Junquito, zona oeste de Caracas, na Venezuela. Do alto do morro, ela podia ver o cintilar da cidade à distância, com suas ruas desertas depois do anoitecer. Poucas pessoas ousavam sair à noite em uma cidade famosa por ser a capital mais violenta do mundo.
Darling deixou os três filhos sonolentos na casa do avô, no andar de baixo, subiu as centenas de degraus e o caminho de terra que conduziam à rua principal, entrou em um ônibus, fez baldeação, pegou o metrô e, às 7h10, finalmente chegou à sala de espera de uma clínica particular de Sabana Grande, bairro de classe média do centro de Caracas. Às 8 horas, os médicos fizeram uma incisão de 10 cm em seu abdômen para remover uma parte das trompas de Falópio, deixando-a estéril aos 21 anos de idade. Era uma cirurgia de 30 minutos, que poderia ter efeitos irreversíveis. Mas ao menos Darling sabia que não acabaria como a irmã Jennifer, que aos 23 anos já tinha cinco filhos e era incapaz de alimentá-los.
Um número cada vez maior de jovens venezuelanas está recorrendo a medidas drásticas para parar de ter filhos. Em um país onde o aborto é proibido por lei e uma caixa de anticoncepcionais custa até 10 salários mínimos, as mulheres estão em um beco sem saída. A determinação delas é um sintoma da gravidade da crise econômica da Venezuela, a pior da história do país, e de seus efeitos devastadores sobre as mulheres.
No dia 20 de maio, o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, conquistou a reeleição em um pleito boicotado pela maioria dos partidos de oposição e criticado por um grupo de países latino-americanos. O salário mínimo no país atualmente é de 1 milhão de bolívares mensais –cerca de 45 reais –, e a inflação acumulada dos últimos 12 meses teria chegado a astronômicos 13,78%, segundo a Assembleia Nacional, dominada pela oposição (o governo parou de divulgar a inflação oficial no ano passado). Por causa disso, os anticoncepcionais – e muitos outros produtos – se tornaram artigos de luxo para a maioria dos venezuelanos.
Em um país onde o aborto é proibido por lei e um caixa de anticoncepcionais custa até 10 salários mínimos, as mulheres estão em um beco sem saída.
“O direito de decidir ser ou não mãe está sendo violado”, diz Magdymar León, psicóloga e coordenadora da Avesa, uma ONG venezuelana que trabalha com a saúde sexual. “É uma espécie de maternidade forçada”, afirma.
A escassez de remédios no país chega a 95%, segundo a ONG local Médicos por la Salud, tendo afetado particularmente os anticoncepcionais. “Os contraceptivos não são considerados medicamentos essenciais. Então, em um momento de crise, o governo e os fornecedores priorizam outras drogas, como remédios para tratar a hipertensão ou o câncer. Mas nós achamos que os anticoncepcionais também deveriam ser priorizados, porque a sexualidade está sendo esquecida pelas políticas públicas, e isso afeta diretamente as mulheres”, acredita León.
Por enquanto Maduro tem se recusado a receber ajuda humanitária e a reconhecer a gravidade da crise, preferindo culpar a “guerra econômica” que os EUA estariam praticando por meio de sanções. É verdade que o presidente americano, Donald Trump, impôs sanções ao país, proibindo a negociação de ativos do governo da Venezuela, incluindo os da petrolífera estatal PDVSA. Como o petróleo responde por 95% das exportações venezuelanas, cujas receitas são usadas para importar bens de primeira necessidade como comida e medicamentos, essas medidas podem aumentar ainda mais o sofrimento da população.
As posições do governo em matéria de saúde reprodutiva são contraditórias. Por um lado, as mulheres recebem uma bolsa por cada gravidez e por cada recém-nascido, e isso no país com a maior taxa de gravidez na adolescência da América Latina. A inflação transformou o benefício, que já era pequeno, em uma quantia irrisória – 700 mil bolívares (R$ 32,60) por gravidez e 1 milhão (R$ 46,60) por recém-nascido –, mas León afirma que essa política incentivou as mulheres a terem filhos precocemente. “É uma coisa cultural, algo especialmente presente nas áreas de baixa renda: a maternidade não é uma escolha, e sim o destino da mulher”, diz.
Por outro lado, o governo também patrocina campanhas nacionais de esterilização gratuita em hospitais públicos. Não existem dados oficiais sobre o resultado dessas campanhas ou sobre as taxas de esterilização, mas todos os fatores apontam para um aumento da demanda. O dr. Wilson Torrealba, cirurgião e chefe do setor de Obstetrícia e Ginecologia do Hospital Altagracia de Orituco, na província de Guárico, foi o supervisor da última campanha nesta unidade, iniciada em abril de 2017. “Sabíamos que era uma jogada política, mas participamos mesmo assim, porque assim poderíamos ajudar aquelas pacientes com muitos filhos. Estaríamos resolvendo um problema social”, explica.
Antes do início da crise, o hospital de Torrealba só oferecia laqueaduras para mulheres acima de 35 anos com três ou mais filhos, ou em caso de gravidez de risco. A ideia era que as campanhas de esterilização seguissem as mesmas diretrizes, mas Torrealba diz que a coisa logo fugiu do controle em seu hospital.
“Algumas pacientes fizeram laqueadura aos 18 ou 19 anos e com apenas um filho, o que não deveria ter acontecido.”
”Algumas pacientes fizeram laqueadura aos 18 ou 19 anos e com apenas um filho, o que não deveria ter acontecido”, diz o médico. Por causa disso, Torrealba diz ter abandonado a coordenação da campanha depois de quatro meses, durante os quais de 400 a 500 mulheres foram esterilizadas.
Catherin, uma estudante de medicina que fez sua residência em uma maternidade estatal e na unidade de Ginecologia de um hospital público durante seis meses em 2017, diz que teve que atender meninas de 14 anos que chegavam pedindo para participar do programa de esterilização. A cirurgia se tornara a única solução para elas. “Uma menina de 18 anos não iria ao hospital para pedir uma laqueadura se não estivesse desesperada”, afirma. Catherin pediu que seu verdadeiro nome não fosse revelado para não prejudicar sua carreira.
Os médicos do setor privado também notaram um aumento da demanda. Rhayza Martinez, uma ginecologista que trabalhou em quatro clínicas particulares em diversos bairros de Caracas, afirma que 5 em cada 15 de suas pacientes pediam para ser esterilizadas.
“Tenho medo e fico pensando em várias coisas, como na possibilidade de querer ter outro filho mais tarde”, diz Krisbell, que, aos 27 anos, é mãe de duas meninas e está pensando em fazer uma laqueadura (O The Intercept preferiu não revelar os sobrenomes das entrevistadas por questão de privacidade e segurança). “Mas é preciso pensar bem antes de se ter um filho. Na situação atual, é melhor dar conforto e segurança às crianças que eu já tenho do que trazer mais um ser ao mundo apenas para sofrer”, pondera.
O medo de Krisbell tem fundamento: um relatório publicado recentemente pelo governo revela que a mortalidade infantil na Venezuela cresceu 30% em 2016.
Natalie, 31, havia acabado de passar por aquilo que as outras venezuelanas estavam fazendo de tudo para evitar. Ela morava com seus cinco filhos em uma casa nos limites da “Punta Brava”, uma parte da favela de Antímano que deve seu apelido aos tiroteios constantes. Antes da crise, Natalie podia sustentar os cinco filhos, mas, quando o sexto nasceu, no verão de 2017, a situação já havia se deteriorado. As cestas básicas distribuídas desde 2016 a preços subsidiados pelo governo passaram a chegar de maneira esporádica e sem alimentos básicos como leite e feijão. Às vezes Natalie tinha que vender parte do açúcar da cesta para poder comprar e revender cigarros, e, assim, adquirir um pouco mais de comida – nem que fosse apenas pele de galinha, ossos, bananas ou mandioca. Mesmo assim, muitas vezes seus filhos iam para a cama com fome.
No outono de 2017, o bebê de Natalie ficou com asma. Ele começou a inchar e ter dificuldades para respirar, ficando tão cansado que não podia nem chorar. Ela tentou procurar remédios, mas o tratamento era intermitente e caro demais. Pouco depois de ser internado, ele teve duas paradas cardíacas e acabou morrendo aos 9 meses de idade. “Meu filho morreu porque eu não tinha dinheiro para comprar remédio para ele”, lamenta Natalie. Além de ter que lidar com a dor da perda, ela ainda temia pela vida de outros dois filhos, que também haviam desenvolvido infecções respiratórias.
Segundo fontes locais, muitos hospitais e maternidades do sistema público suspenderam temporariamente as cirurgias de laqueadura por falta de equipamentos. Quem pode pagar recorre à Associação Civil de Planejamento Familiar (Plafam) – a principal organização de planejamento familiar da Venezuela – ou a clínicas particulares, mais caras. Krisbell e o marido passaram três meses economizando 13 milhões de bolívares (cerca de 600 reais), o equivalente a mais de um ano de salário mínimo, para pagar a cirurgia pela Plafam. Eles trabalham como bachaqueros, um termo muitas vezes usado de forma pejorativa para designar quem compra comida e medicamentos a preços subsidiados para depois revendê-los no mercado negro. Como a maioria dos venezuelanos – e pela própria natureza de seu trabalho –, Krisbell passava a maior parte do dia nas filas para a compra de alimentos e remédios. Foi assim que ela conheceu Darling e outras jovens que, unidas pelo medo da gravidez, trocavam dicas sobre onde fazer laqueadura.
Krisbell acompanhou Darling no dia de sua cirurgia, ajudando a descontrair o ambiente com seu humor irônico e sua energia. A sua própria laqueadura estava marcada para a semana seguinte, mas, quando a anestesia começou a perder seu efeito e Darling vomitou no chão de uma sala de operação sem nenhuma ventilação, Krisbell ficou com um pé atrás. “Vou me cagar de medo”, disse ela com naturalidade à madrasta de Darling, Maria. No canto da sala, os nacos de trompas de Falópio extraídos do abdômen de Darling foram colocados dentro de uma garrafa de plástico cortada ao meio, exalando um odor fétido. Mais tarde, Maria levaria a garrafa de recordação para o marido.
Segundo Darling, sua cirurgia em uma clínica particular custou 78 milhões de bolívares (cerca de 3.600 reais), uma fortuna para a maioria dos venezuelanos. Ela recebera o dinheiro de parentes no Peru. A operação era uma prioridade para a família, mesmo mal podendo alimentar os filhos de Darling e Jennifer, sua irmã. “É muito melhor para ela. Assim ela não vai ter os mesmos problemas que eu estou tendo, sem fraldas, sem leite – e sem dinheiro para comprar leite artificial”, diz Jennifer. Ela também foi esterilizada, mas só depois de dar à luz o quinto filho. A criança ficou malnutrida, pois, devido à pouca ingestão de nutrientes durante a gravidez, os seios de Jennifer não produziam leite, e ela tinha dificuldades para encontrar fórmula infantil.
Para as mulheres que não têm a sorte de ter o apoio financeiro da família e que, portanto, não têm como pagar uma cirurgia de laqueadura, existe uma última e perigosa opção: o aborto caseiro.
A Venezuela, onde 70% da população se identifica como católica, tem uma das leis mais restritivas da América Latina com relação ao aborto. A prática é proibida até em casos de incesto ou malformação do feto, sob pena de seis meses a dois anos de prisão. Por causa disso, a reportagem mudou os nomes das entrevistadas que contaram ter praticado abortos ilegais.
“Não temos nem fraldas, nem nada. Eu não trabalho. O que posso fazer? Se a situação fosse outra, eu teria o bebê.”
Apesar disso, Anna, 27, mãe solteira de duas crianças, decidiu interromper a terceira gravidez após seis semanas. “Imagine se eu tivesse outro filho agora, nessas condições? Não temos nem fraldas, nem nada. Eu não trabalho. O que posso fazer? Se a situação fosse outra, eu teria o bebê”, justifica-se.
Anna foi falar com a vizinha, Janine, que já tinha feito um aborto e agora a ajudava outras mulheres a interromper a gravidez. Janine mandou Anna comprar quatro pílulas de Cytotec – um abortivo originalmente destinado ao tratamento de úlceras gástricas, negociado no mercado negro a 2 milhões de bolívares (R$ 92,50) a cápsula –, além de arruda e uma bebida à base de malte.
“Se a ajuda do governo não é suficiente, então quem vai ajudar essas meninas? Não é o ideal. Para mim o aborto é assassinato, pois o bebê dentro do útero já é uma vida. Mas, se pararmos para pensar, essa criança vai sofrer”, diz Janine enquanto colocava a arruda e a bebida para ferver. Ela instruiu Anna a beber quatro xícaras da mistura junto com duas pílulas de Cytotec. As duas cápsulas restantes deveriam ser inseridas na vagina.
O procedimento não era apenas ilegal, como também arriscado. “A maioria induz o aborto por meio de pílulas como o Cytotec, ou introduzindo objetos na vagina”, diz Torrealba. “Recebemos muitas pacientes com hemorragias graves e níveis de hemoglobina tão baixos que precisam de transfusão de sangue”, conta.
Anna diz que, se algo desse errado, ela teria preferido suportar a dor em casa a ir ao hospital – ela havia ouvido muitas histórias de maus-tratos e até de recusa de atendimento a mulheres que tentavam abortar. Torrealba nega que isso aconteça, dizendo que todos os casos urgentes são tratados como abortos espontâneos.
Magdymar León, coordenadora da Avesa, diz que muitas mulheres têm o mesmo medo de Anna. “Não é um caso isolado. Isso acontece mesmo, e, se a mulher acha que pode acontecer com ela, é claro que vai preferir ficar em casa”, explica. As consequências de não procurar ajuda médica podem ser graves. “Esses abortos clandestinos aumentam a taxa de mortalidade materna”, afirma León. Segundo dados do Ministério da Saúde da Venezuela, essa taxa aumentou 65,8% entre 2015 e 2016.
Esses números mostram até que ponto a crise tem afetado as mulheres venezuelanas. “Nós, mulheres, sofremos com tudo. Sofremos para ter filhos e para não tê-los”, observa Maria enquanto a enteada dorme sob efeito da anestesia, ao que Krisbell começa a rir. “Os homens não aguentariam isso. Não mesmo”, diz.
Esta reportagem contou com a colaboração da International Women’s Media Foundation
Tradução: Bernardo Tonasse
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