No interior do Centro Internacional de Resgate de Crianças de Heartland, em Chicago, Illinois, dois meninos esperam sentados. Um deles tem 15 anos. O outro tem 9. Seus pais estão a mais de 1.500 km de distância, em dois centros de detenção privados, com fins lucrativos, perto da fronteira. As duas famílias vieram do Brasil para pedir asilo nos EUA, mas acabaram, em vez disso, sendo presas. Já faz quase um mês que os quatro foram separados. Apenas um dos meninos conseguiu falar com o pai, e, mesmo assim, a conversa foi breve.
Na quarta-feira, enquanto o presidente Donald Trump se preparava para assinar um decreto com potenciais implicações devastadoras sobre a detenção de imigrantes, os meninos se tornaram os mais recentes autores de uma ação que questiona as práticas do governo na separação de famílias. As petições iniciais, protocoladas em Chicago, fazem referência a um mesmo acordo de ajustamento de conduta em âmbito federal, conhecido como “acordo Flores”, que o presidente agora está tentando contornar.
Mas, ao contrário do decreto assinado por Trump, que se baseou na falsa premissa de que o acordo Flores exige que as famílias sejam separadas na fronteira, a petição em favor dos meninos destaca o que o acordo realmente determina: que o governo dos EUA não promova a detenção prolongada e desnecessária de crianças.
A ação, proposta pela organização sem fins lucrativos Aldea – Centro Popular de Justiça e pelo escritório de advocacia Amy Maldonado, reflete uma narrativa que se tornou comum nas últimas semanas, à medida que as implicações da “doutrina de tolerância zero” de Trump evoluíram para um escândalo nacional. As famílias vieram de países latino-americanos onde a situação de segurança é terrível e buscaram refúgio nos EUA, só para se encontrar em outra situação assustadora: separadas por um governo que sequer tem um sistema instalado para reunir os pais e filhos que estão sendo sistematicamente afastados.
Os meninos, cujas adversidades foram inicialmente noticiadas na sexta-feira (22) pela Associated Press, são identificados nas ações por suas iniciais. O menino de 15 anos é identificado como W.S.R, e o de 9 anos, como C.D.A. De acordo com as petições iniciais, os meninos chegaram aos EUA com seus pais para pedir asilo. Suas experiências individuais eram distintas, mas ambas as famílias alegam terem sido alvos do crime organizado. Eles cruzaram a fronteira dos EUA no final de maio, no estado do Novo México, mais de um mês depois que o decreto de “tolerância zero” entrou em vigor.
No caso de C.D.A., o menino de 9 anos, a petição alega que pai e filho tentaram entrar nos EUA por uma porta de entrada de fronteira, como havia sido recomendado aos solicitantes de asilo pelo governo, mas foram informados de que ela estaria “fechada”. A dupla então atravessou a fronteira em um ponto entre portas. W.S.R. e seu pai fizeram o mesmo. Eles foram prontamente detidos por agentes da Patrulha de Fronteira dos EUA, e, segundo os advogados das famílias, expressaram sua intenção de pedir asilo.
Já faz quase um mês que as famílias foram separadas. Apenas um dos meninos conseguiu falar com seu pai.
Esse é um padrão que está acontecendo nas fronteiras com cada vez mais frequência, segundo Bridget Cambria, uma das advogadas das duas famílias. “A maior parte das pessoas de que temos notícia, eles tentaram se apresentar em uma porta de entrada e tiveram a entrada negada”, relatou Cambria para The Intercept. “E é por isso que eles são capturados, essencialmente, por estarem procurando um agente de fronteira a quem pedir proteção.”
Embora não tenha sido possível confirmar a prevalência desse padrão específico, The Intercept e diversas outras organizações de notícias e de ativismo jurídico documentaram numerosos casos em que agentes de fronteira recusaram solicitantes de asilo nas portas de entrada, tornando praticamente impossível para essas pessoas exercer seu direito da única forma considerada válida pelo governo Trump.
Os pais foram presos, acusados, e, por fim, processados por entrar no país sem inspeção, uma mera contravenção penal de âmbito federal. As famílias passaram duas noites sem dormir nas instalações de detenção da Patrulha de Fronteira. Certa noite, um funcionário público norte-americano se dirigiu a C.D.A, de 9 anos, e a seu pai. Como narra a petição em nome do menino, o funcionário teria dito ao pai que a dupla precisava ser separada para um “processo”, e garantiu que isso duraria apenas três a cinco dias, quando então eles seriam reunidos. O reencontro nunca aconteceu. Karen Hoffman, advogada que também atua no caso dessas famílias, diz que a separação entre W.S.R. e seu pai foi semelhante. Hoffman conta que os meninos estavam aos prantos e foram tranquilizados por seus pais: “Vou rever você em breve. Prometo que não vou deixar você sozinho.”
“Basicamente, o governo dos EUA os transformou em mentirosos, porque isso já faz quase um mês”, disse ela a The Intercept. “Eles não se viram mais. Em um dos casos, eles ainda nem se falaram.”
Segundo fontes que atuaram recentemente em casos de separação de famílias contaram a The Intercept, e funcionários do governo confirmaram na quarta-feira, o governo dos EUA não tem um sistema específico instalado para reunir as milhares de famílias que foram separadas ao longo da fronteira. As petições iniciais nos casos de C.D.A. e W.S.R. alegam que seus pais não receberam nenhuma informação sobre o paradeiro dos filhos após a separação. Ambos os meninos foram enviados para Chicago, enquanto seus pais ficaram sob custódia de oficiais de justiça. Até o protocolo das petições na quarta-feira, o pai de C.D.A. ainda não sabia o nome do local onde seu filho em idade escolar estava sendo mantido.
De acordo com a petição de W.S.R., seu pai levou três semanas para conseguir o número da linha direta que o governo está franqueando aos pais cujos filhos foram levados embora. Na primeira e única conversa desde a separação, o pai de W.S.R. expressou que seu filho está “extremamente infeliz e transtornado, e está desesperado para se reunir a seu pai”. Já de acordo com a petição de C.D.A., seu pai também conseguiu o número da linha direta do governo, que é administrada pelo Escritório de Reassentamento de Refugiados [Office of Refugee Resettlement], o órgão dos Serviços Humanos e de Saúde responsável pela custódia de menores no sistema de imigração.
O pai tentou “repetidamente” ligar para o número, afirma a petição. “Ele diz que pegaram seus dados e disseram que iriam ligar de volta”, segue o relato. “Ele não conseguiu descobrir se pode receber ligações no centro de detenção onde se encontra”.
Os pais dos dois meninos estão atualmente presos em centros de detenção no Novo México e no Texas, onde aguardam entrevistas com os agentes de asilo para apresentar suas solicitações.
Os advogados das famílias argumentam que a detenção continuada dos dois meninos é uma violação direta do acordo Flores, o acordo de ajuste de conduta em âmbito federal de 1997, que limita o total de tempo pelo qual o governo pode manter uma criança detida e determina uma série de proteções para as crianças sob custódia dos EUA.
Em 2014, em resposta a um aumento no número de mulheres e crianças que chegavam à fronteira, o governo Obama expandiu drasticamente a detenção de famílias. O Judiciário por fim interveio, decidindo que o governo, em regra, não poderia manter em detenção por mais de 20 dias crianças desacompanhadas ou crianças capturadas com um membro da família. Em vez disso, as famílias deveriam receber liberdade condicional enquanto seus pedidos de imigração tramitassem pelos tribunais.
Autoridades militaristas e anti-imigração de extrema direita, dentro do governo Trump ou próximos a ele, tais como o procurador-geral Jeff Sessions e o consultor da Casa Branca Steven Miller, há muito tempo manifestam seu ódio contra o acordo, que consideram uma “brecha” frequentemente explorada por mulheres e crianças. O governo vem insistindo que a única forma de prosseguir é a detenção, argumentando que, se as famílias forem libertadas na comunidade, irão simplesmente desaparecer.
O acordo Flores determina que as crianças não sejam detidas por mais de vinte dias. Determina também “contato com os familiares que foram presos com o menor”.
Trata-se de um falso dilema. Como observou recentemente a Comissão de Mulheres Refugiadas, que lida cotidianamente com famílias no sistema de imigração, “o governo também pode incluir as famílias em programas alternativos à detenção (ATD, “alternative to detention”). Infelizmente, o governo eliminou no ano passado um dos programas ATD mais promissores e com melhor relação custo-benefício – o Programa de Gestão de Casos de Família (FCMP, “Family Case Management Program”) –, a despeito de se tratar de uma alternativa muito mais adequada para as famílias que buscam asilo do que a detenção ou a separação.
No âmbito do acordo Flores, segundo os advogados, ambos os meninos brasileiros têm direito a questionar a decisão do governo de entregá-los ao Escritório de Reassentamento de Refugiados. Em ambos os casos, defendem as petições, os meninos foram separados “sem que fosse feita qualquer consideração sobre os irreparáveis danos físicos e psicológicos que a separação causa às crianças, e sem motivo. Não houve, em nenhum momento, alegação de abuso, negligência, ou inadequação parental, e o governo não promoveu nenhuma audiência ou processo antes da decisão de separar.”
As petições mencionam ainda várias outras supostas violações ao acordo Flores, além da violação à Quinta Emenda [à Constituição dos EUA], “que não permite nem pode permitir ao governo dos Estados Unidos que separe à força uma família que solicita asilo, pai e filho, sem justificativa ou audiência”. Pelos termos do acordo Flores, observa a petição, órgãos governamentais envolvidos na detenção de crianças devem “tratar todos os menores sob custódia com dignidade, respeito, e especial atenção à vulnerabilidade específica da condição de menor”. Essa obrigação inclui colocar as crianças “na situação menos restritiva adequada à idade e às necessidades especiais do menor”. A petição argumenta que “uma criança separada não está colocada na situação menos restritiva adequada se ela foi detida com um dos pais.”
O acordo Flores prevê diversas proteções para as crianças detidas. Além de exigir que não permaneçam presas por mais de vinte dias, o acordo também determina que elas recebam água potável, comida e cuidados médicos. Determina ainda “contato com os familiares que foram presos com o menor”. No caso dos meninos brasileiros, seus advogados sustentam que o governo não cumpriu esse requisito. As petições prosseguem demonstrando que, pelo acordo Flores, a primeira opção do governo deveria ser reunir a criança com seus pais, sempre que possível. E argumentam que o governo, no lugar do cumprimento do acordo e da busca pela solução menos restritiva para a presença dessas duas famílias solicitantes de asilo nos EUA, aderiu ao curso de ação mais punitivo possível.
Na quarta-feira em que expediu o decreto, Trump pediu a Sessions que protocolasse um requerimento na justiça federal do Distrito Central da Califórnia, para modificar o acordo Flores “de forma a permitir que o secretário, na atual situação de restrição de recursos, detenha conjuntamente as famílias de estrangeiros na pendência de processo criminal por entrada indevida ou de remoção ou qualquer outro procedimento de imigração”. Na quinta-feira, o pedido foi protocolado. Essa medida é uma tentativa clara do governo de afastar o acordo Flores, permitindo que as famílias de imigrantes sejam detidas pelo tempo necessário ao julgamento de seus processos de imigração. Dado o acúmulo de processos no juízo de imigração, isso significaria que solicitantes de asilo com processos viáveis poderiam passar meses ou até anos atrás das grades.
Embora tenha ostensivamente pleiteado o fim das separações de famílias como aconteceram nas últimas semanas, houve relatos conflitantes sobre o status atual da campanha de “tolerância zero” do governo na esteira do decreto de Trump na quinta-feira. No entanto, em havendo milhares de famílias já separadas e crianças espalhadas pelo país, permanece urgente a questão de como se dará a reunificação. A União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU) ingressou com uma ação coletiva demandando que o governo reúna com seus filhos os pais detidos na imigração.
Em uma entrevista telefônica na quinta-feira, Lee Gelernt, o advogado veterano que encabeça a ação da ACLU, disse que a organização a que pertence duvida que o acordo Flores possa ser revertido pelo Congresso ou pelos tribunais. “O motivo é que ele está embasado na Constituição”, disse Gelernt. “O princípio constitucional do devido processo legal exigiu esse acordo.” A ACLU está atualmente pleiteando uma medida liminar em âmbito nacional para reunificar imediatamente as crianças que foram separadas de seus pais. A história do segundo coautor na ação da ACLU, também brasileiro, é incrivelmente semelhante às experiências de C.D.A., W.S.R, e seus pais. Para Cambria, a advogada, a única diferença é que, depois que a ACLU entrou com a ação, as famílias foram reunidas.
O governo Trump tem insistido no argumento de que o acordo Flores exige que as crianças sejam separadas de seus pais, e que ele deve ser rasgado para que o governo não precise separar famílias. O acordo, porém, não exige nada disso. “Teremos uma discussão interessante quando formos a juízo, sobre quem é efetivamente objeto da proteção do acordo Flores, que são as crianças e seus interesses”, disse Cambria. “Eles querem derrubar o acordo, não porque se preocupem em manter as crianças com seus pais. Eles querem derrubá-lo porque isso irá contribuir para um aumento expressivo no encarceramento de famílias e crianças, e eles vão lucrar com isso.”
“O objetivo não é reunir as famílias”, acrescentou. “O objetivo deles é eliminar as proteções e os direitos que as crianças têm na detenção, e isso é repugnante.”
Tradução: Deborah Leão
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