O debate ocidental sobre a longa guerra civil síria acontece muitas vezes na internet ou, pior ainda, nas redes sociais. Consequentemente, ele tem ficado cada vez mais simplificado e polarizado, parecendo mais um bate-boca entre torcedores do que uma discussão racional e bem fundamentada. A propaganda travestida de análise tem dominado o discurso sobre a Síria.
O resultado disso é que agora existem duas narrativas dominantes sobre as causas da guerra. Embora tenham algo de verdade, ambas são igualmente simplistas e, portanto, enganosas – mas muito bem adaptadas a discussões acaloradas nas redes sociais.
Uma delas – promovida pelo regime de Bashar al-Assad e seus apoiadores – afirma que as potências ocidentais e alguns países do Golfo conspiraram para derrubar o governo sírio, instigando protestos e contratando rebeldes para fazer seu trabalho sujo. Segundo essa ótica, o conflito na Síria seria basicamente obra de agitadores externos.
A segunda narrativa sustenta que a guerra pode ser explicada pelo descontentamento legítimo do povo sírio contra o governo, que acabou resultando em uma revolta, em plena Primavera Árabe. Essa interpretação vê a violência contra o regime como consequência de protestos legítimos de cidadãos comuns contra um ditador repressivo.
Ambos os lados são inflexíveis quando se trata de defender sua narrativa e desqualificar a versão contrária. Na verdade, porém, ambas não deixam de ser verdadeiras.
O povo sírio vinha, de fato, acumulando um sentimento de injustiça contra a repressiva dinastia Assad e já estava cansado de tantas promessas incumpridas. Ao mesmo tempo, os países do Golfo e os EUA vinham planejando, pelo menos desde 2006, uma operação para a derrubada do regime sírio.
Mas essas duas narrativas, repetidas à exaustão, encobrem uma causa fundamental da eclosão e da longevidade do conflito: a intensa concorrência entre a Arábia Saudita e o Catar. A rivalidade entre os dois países é um elemento crucial da guerra, e seu envolvimento só foi possível graças ao apoio dos EUA e da União Europeia, que favoreceram um ou outro lado em diferentes momentos do conflito.
Em primeiro lugar, a cobertura midiática e o debate sobre a guerra civil síria – tanto no Oriente quanto no Ocidente – é fortemente influenciada pelos interesses propagandísticos dos regimes catari e saudita. Os dois países controlam, direta ou indiretamente, quase todos os meios de comunicação do mundo árabe.
Além disso, as duas nações exercem influência sobre jornalistas e especialistas ocidentais através de vultosos investimentos na comunidade de estudos de política externa em Washington, seja por meio de think tanks ou empresas de Relações Públicas. Os think tanks de Washington – como a Brookings Institution, o Middle East Institute e o Center for Strategic and International Studies – são famosos por receberem muitos recursos dos países do Golfo, e, portanto, refletem os interesses dessas potências regionais.
Assim, não é nenhuma surpresa que a maioria dos especialistas em Oriente Médio que mais emitiram opiniões sobre a guerra na Síria tenha se posicionado de um ou outro lado do embate entre sauditas e cataris. Os Emirados Árabes também investiram em think tanks americanos, e suas políticas – pelo menos no que diz respeito à Síria – se alinham às da Arábia Saudita.
Depois da ascensão do Comitê Americano-Israelense de Assuntos Públicos (AIPAC), nunca um país do Oriente Médio teve tanta influência na capital dos EUA. Aliás, se não fosse pela coincidência de seus interesses na questão síria, a AIPAC teria lutado para reduzir a influência desses novos atores em Washington. No entanto, essa organização e suas afiliadas apenas ecoam a propaganda das nações do Golfo.
A competição entre o Catar e a Arábia Saudita na Síria tem raízes históricas. Ambos os países têm relações de longa data com o regime sírio.
Muitas pessoas esquecem que o governo saudita foi um sustentáculo para Hafez al-Assad, pai de Bashar, durante quase três décadas, e que os dois países tinham interesses convergentes na região. Exemplos da consonância entre Assad e os sauditas incluem a repressão à resistência palestina e à esquerda libanesa em 1976, a guerra de 1991 no Iraque, posições unificadas nos planos de paz patrocinados pelos EUA, e a inimizade com Yasser Arafat, o falecido líder da Organização para a Libertação da Palestina (OLP).
A concordância daqueles anos entre sauditas e sírios foi importante para a atuação do EUA na região. Os diplomatas americanos dependiam da Arábia Saudita e de sua generosidade financeira para influenciar a política externa da Síria. Hafez al-Assad era uma peça fundamental do eixo Síria-Arábia-Egito, que se formou depois da invasão do Kuwait pelo Iraque em 1990 e que dominava a política árabe da época.
Entretanto, nos anos 1990, os interesses do Catar e da Arábia Saudita se desencontraram. No fim da década, o Catar ficou praticamente isolado, devido a seu conflito com a Arábia Saudita (o novo emir catari, Hamad bin Khalifa, havia derrubado o pai, pró-saudita).
A contragosto, o Catar se alinhou ao grupo da mumana’ah (“recusa”, em árabe), uma política de resistência a concessões no conflito entre israelenses e palestinos, ao mesmo tempo em que normalizava suas relações com Israel e recebia tropas americanas. O novo emir do Catar acusou o regime saudita de tentar derrubá-lo para devolver o trono a seu pai, o que provavelmente é verdade.
Quando começou a consolidar seu poder na Síria, Bashar al-Assad mudou sua política para o Líbano, contrariando os interesses da Arábia Saudita e do primeiro-ministro libanês, Rafic Hariri. Consequentemente, o Catar se tornou um aliado natural de Assad; já a Arábia Saudita se distanciou do regime sírio. E é essa divergência entre os dois países que continua tendo um impacto na guerra civil síria até hoje.
Com Bashar no poder, o regime saudita passou a tentar minar o domínio sírio sobre o Líbano – um domínio patrocinado por EUA, França e pela própria Arábia Saudita a partir de 1989. Em 2004, este país foi um dos membros da coalizão que aprovou a Resolução 1.559 do Conselho de Segurança da ONU, cujo objetivo era acabar com o protagonismo sírio no Líbano e desarmar o Hezbollah.
Além disso, os sauditas planejavam derrubar o governo sírio, contando com figuras-chave da elite dirigente do país (altos funcionários da era Hafez, em sua maioria).
Enquanto isso, Hariri, o político libanês favorito da Arábia Saudita, começou a bater de frente com Bashar. Com isso, o rompimento dos sauditas com a Síria se consumava, e a camarilha síria patrocinada por Riad – e apoiada por Hariri – intensificou sua conspiração. Isso marcou o início do fim do domínio Sírio sobre o Líbano. A descoberta desse complô deve ter sido o motivo do assassinato de Hariri, ocorrido em 2005.
Enquanto a Arábia Saudita se afastava de Bashar al-Assad, o Catar tinha outros planos para a região, encorajado pelas fraquezas da política externa saudita e pela ascensão de Recep Erdogan na Turquia, seu novo aliado. Catar e Turquia planejaram a expansão da influência da Irmandade Muçulmana na região – da Palestina à Tunísia.
Não foram esses dois países que instigaram as revoltas árabes. Todas elas eclodiram espontaneamente devido a insatisfações legítimas com a repressão, a tortura, as injustiças socioeconômicas e uma política externa subserviente aos interesses ocidentais. Mas as duas novas alianças rivais no Oriente Médio – Arábia Saudita, Emirados Árabes e Israel de um lado, e o Catar e a Turquia do outro – tentaram explorar essas revoltas para atender a seus próprios interesses.
Logo no início da Primavera Árabe, em 2011, a aliança Arábia Saudita-Emirados Árabes agiu para manter a ordem estabelecida ou restaurar tiranos depostos – muitas vezes com a ajuda de Israel.
Por sua vez, o Catar e a Turquia apoiaram – financeira e midiaticamente – a ascensão política da Irmandade Muçulmana. A eleição de Mohamed Morsi, membro da Irmandade, para a presidência do Egito em 2012 foi a maior realização dessa política.
Quando as revoltas eclodiram na Síria, tanto a Arábia Saudita quanto o Catar esperavam uma queda rápida de Assad. Mas quando, por diversas razões, isso não aconteceu, os dois países se precipitaram para patrocinar e armar grupos que pudessem controlar. Os sauditas viram nas revoltas uma boa oportunidade para mergulhar a Síria em um conflito sectário.
Diversos grupos de oposição e facções armadas começaram a brotar no país. Um dos mais conhecidos era a Coalizão Nacional Síria – um conjunto de opositores exilados com tênues conexões com grupos rebeldes –, mas também existiam outros com nomes ainda mais pretensiosos. Esse conselho de opositores civis exilados – inspirado naquele que os neoconservadores haviam usado com tanto sucesso antes da invasão do Iraque, em 2003 – foi constituído para projetar uma imagem diferente dos rebeldes sírios para o mundo.
Mas o conselho, embora bem visto no Ocidente, não tinha nenhum contato com os rebeldes que lutavam na Síria. Portanto, sem um conhecimento real do que acontecia no país, o grupo não passava de uma ferramenta de propaganda.
Da mesma forma, a maioria dos líderes exilados – fossem eles alinhados ao Catar ou à Arábia Saudita – não ousava pisar nas áreas controladas pelos rebeldes sírios. A guerra civil ia se tornando um conflito sectário, e os grandes beneficiados foram os jihadistas fanáticos, mais competentes no campo de batalha e mais radicais em sua postura.
Os manifestantes civis não deixaram a barba crescer de repente, trocando de ideologia da noite para o dia, como alguns veículos da imprensa ocidental parecem acreditar. A verdade é que o clima político na Síria, há muito marcado pela influência de correntes islamistas, ficou muito mais propício a ideologias sectárias e religiosas do que ao secularismo e à esquerda. O regime sírio tem um histórico de repressão brutal a dissidentes de esquerda, e isso enfraqueceu ainda mais esse grupo perante as facções sectárias.
O Catar viu na Al Qaeda um parceiro conveniente na Síria. Já a Arábia Saudita preferia o Exército do Islã e outros bandos armados. Os dois países davam outros nomes menos ameaçadores – frequentemente nomes civis – aos grupos rebeldes, mas o disfarce não tardou a cair, e as nomenclaturas fanáticas e religiosas prevaleceram.
O Catar e a Arábia Saudita não estavam sozinhos nessa empreitada: ainda nos primeiros anos da guerra, o New York Times revelou que a transferência de recursos e armamentos à Síria contava com a bênção do governo Obama. Isso porque, na época, todos esperavam uma queda rápida de Assad – e cada um desejava implantar seu próprio fantoche no lugar dele. Essa concorrência feroz não saiu conforme o planejado, e o envolvimento de atores regionais e internacionais só prolongou a guerra e o sofrimento dos sírios.
Mais tarde, a Arábia Saudita e o Catar se distraíram com seu próprio conflito e com a guerra no Iêmen. Mas o bem-estar do povo sírio nunca havia sido uma prioridade para eles – e tampouco para os outros países que intervieram na Síria.
Embora outras narrativas sejam mais fáceis de digerir, servindo aos interesses de potências estrangeiras, a competição entre a Arábia Saudita e o Catar foi – e ainda é – um fator determinante na destruição da Síria. Apesar disso, o envolvimento fatal desses dois países no conflito contou com um apoio considerável do Ocidente, não podendo de forma alguma ser dissociado das políticas imprudentes das potências ocidentais no Oriente Médio.
Tradução: Bernardo Tonasse
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