Nove servidores do Ministério da Agricultura, Anvisa e Ibama desembarcaram nos Estados Unidos em março a convite do governo norte-americano – o brasileiro bancou apenas as passagens – para um evento co-organizado por uma consultoria que trabalha para fabricantes de agrotóxicos. O périplo incluiu quatro dias de visitas a fábricas de pesticidas, todas com negócios por aqui: Basf, Syngenta, Nufarm e Bayer CropScience.
É comum que funcionários públicos façam viagens para seminários e congressos. O problema, neste caso, é que os nove servidores participam, no Brasil, dos processos que definem se um pesticida pode ou não ser liberado para uso no país, justamente em benefício das empresas que eles visitaram nos EUA. Elas dominam o mercado.
Desde a volta dos servidores, duas empresas conseguiram licenças para colocar seis novos produtos à venda no país: os pesticidas Tibet, Sniper, Tibet Prime, Maestro, e Diquat, da Nufarm, e o Clariva, da Syngenta. Exceto o Maestro e o Clariva, todos são classificados como “extremamente tóxicos” pelo próprio Ministério da Agricultura que os aprovou. Um deles, o Diquat, tem formulação próxima à do perigoso paraquate, que é fatal em casos de intoxicação aguda e está relacionado ao aumento do número de casos da doença de Parkinson entre trabalhadores rurais.
As licenças foram concedidas pelo Ministério da Agricultura, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis, o Ibama, justamente os órgãos nos quais estão lotados os funcionários que viajaram aos EUA.
A opacidade dos processos que levam à liberação de agrotóxicos no Brasil não permite afirmar que as licenças foram concedidas aos produtos por causa da viagem. Há, porém, o claro conflito de interesses entre agentes públicos que deveriam zelar pela saúde pública tendo hospedagem, alimentação e diárias pagas por um governo e por uma empresa privada que possuem objetivos comerciais no Brasil.
Almoço grátis
Empresas investem pesado para conquistar os corações dos reguladores. Além de viagens, são comuns jantares e comemorações que trafegam em uma zona pra lá de cinza – mesmo quando não há crime. Todos os anos, funcionários públicos participam de eventos bancados por empresas, e pouco se sabe sobre o real interesse público deles, já que não há transparência.
O grupo que viajou aos EUA era formado por dois gerentes e um especialista em regulação de Saúde da Anvisa, três analistas ambientais do Ibama e três inspetoras federais do Mapa. Todos trabalham em áreas responsáveis por aprovar os registros de novos agrotóxicos. Nos EUA, ele participaram de um programa de treinamento chamado Cochran Fellowship Program, promovido pelo Ministério da Agricultura dos EUA, o USDA.
Os EUA têm interesse que o Brasil adote seu sistema de aprovação de agrotóxicos.
O objetivo declarado da viagem – visitas a órgãos de regulação norte-americanos – mereceu pouco mais de três dias da viagem. Ao longo de dez dias, quatro foram passados nas multinacionais Basf, Syngenta, Nufarm e Bayer CropScience, além da CropLife America, o sindicato que reúne a indústria norte-americana de pesticidas. Nada, no programa, teve tanto espaço quanto isso.
No USDA, aglutinador do Cochran Fellowship Program, os servidores brasileiros passaram apenas um dia. Na EPA, agência de proteção ambiental norte-americana, e na FDA, que regula os mercados de alimentos e medicamentos, equivalentes ao Ibama e à Anvisa, o grupo passou apenas uma manhã e parte de uma tarde.
“Reduzir restrições” aos agrotóxicos
O Cochram tem dois objetivos, segundo o site oficial. Um deles é “reforçar e melhorar as relações comerciais entre os países participantes e os interesses agrícolas dos Estados Unidos”. Em 2018, o programa teve como tema “O marco regulatório de produtos agroquímicos” e destinou-se especialmente a brasileiros – além dos nove servidores públicos, participou uma funcionária da Andef, o sindicato dos fabricantes brasileiros de agrotóxicos.
“O objetivo é compartilhar o modelo americano de registro de agrotóxico baseado na avaliação de risco que, em última análise, ajudará a reduzir as restrições comerciais e manter o acesso ao mercado entre os dois países”, diz a carta-convite para “o treinamento para colaboradores da área regulatória do Mapa, Anvisa e Ibama”, assinada pelo USDA, traduzida pela embaixada norte-americana e enviada aos três órgãos do governo brasileiro. The Intercept Brasil obteve documentos relacionados à viagem, onde constam valores, datas, programação e nomes dos servidores, por meio da Lei de Acesso à Informação.
A viagem foi organizada por uma espécie de lobista usada por multinacionais para desbravar mercados externos.
Os americanos têm interesse que o Brasil adote o sistema de “avaliação de risco” – na prática, muito mais permissivo para aprovação de pesticidas do que o modelo usado hoje no Brasil. As fabricantes dos EUA seriam beneficiadas pela medida. No dia 25 de junho, uma comissão especial da Câmara aprovou a tramitação do chamado PL do Veneno, proposta que afrouxa as restrições sobre agrotóxicos, implementando na prática um sistema de registro parecido com o dos EUA. O texto agora vai para votação em plenário.
Ao receber o convite dos americanos, uma servidora do Ministério da Agricultura justificou a viagem em carta endereçada ao seus superiores dizendo que os custos seriam pagos pelos estrangeiros: “Ressalto que o treinamento foi oferecido e será custeado pelo governo americano levando em consideração demandas que informamos (…) ao USDA, de forma que resulte em benefícios nas áreas de registro e controle de agrotóxicos e afins”. Em outro documento, ela afirma que “o treinamento também está em linha com as metas do AGRO+, um programa de 747 medidas do governo Michel Temer em favor do agronegócio visando desburocratização de registro de agrotóxicos.” Os documentos podem ser lidos aqui, nas páginas seguintes à carta-convite do USDA.
Apesar de ser apoiado pelo governo norte-americano, a logística do Cochran Fellowship Program é organizada pelo setor privado. Neste caso, pela Bryant Christie, uma empresa que diz “ajudar indústrias e organizações dos Estados Unidos a desenvolver, executar, avaliar e fortalecer suas estratégias de acesso a mercados”. Ou seja, é uma espécie de lobista usada por multinacionais para desbravar mercados externos – nesse caso, o Brasil.
Em reportagem de 2016 sobre a candidatura de um dos donos da Bryant Christie, Bill Bryant, ao governo do estado norte-americano de Washington pelo partido Republicano, o jornal Seattle Times dizia que a tentativa dele de se vender como um defensor de causas ambientais era “arriscada”. “A Bryant Christie, a consultoria agrícola que ele fundou, trabalhou com vários grandes fabricantes de produtos químicos, incluindo DuPont, Basf e ConAgra. Um dos clientes da Bryant Christie, a Bayer, foi identificado pelo Instituto de Pesquisa de Economia Política da Universidade de Massachusetts Amherst como o pior poluidor aéreo corporativo do país em 2010”, diz a reportagem. Basf e Bayer foram duas das indústrias visitadas pelos servidores brasileiros durante o treinamento nos EUA.
Durante os dez dias de viagem, o grupo foi acompanhado por Alinne Betania Oliveira, especialista em Políticas Comerciais da Bryant Christie nos Estados Unidos. Até novembro, ela era diretora de Relações Internacionais da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, a CNA, entidade que reúne os ruralistas brasileiros e trabalhou com afinco para que o PL do Veneno fosse aprovado.
Conflito de interesses
A viagem dos nove servidores custou pouco mais de R$ 57 mil ao governo brasileiro. Aí estão inclusos gastos com passagens aéreas e, no caso dos empregados da Anvisa, diárias. O Mapa disse ter pago o deslocamento de duas das duas três servidoras que viajaram. Questionamos a pasta quem arcou com a outra passagem, mas não tivemos resposta. Já despesas com hospedagem foram bancadas pela organização do Cochran Fellowship Program, que ainda pagou a cada funcionário do governo brasileiro US$ 836,50 – R$ 2.727 em valores de 11 de março, ou R$ 3.153 na cotação atual –, para pagamento de refeições e despesas durante os 13 dias de permanência nos EUA.
Não é possível saber se as despesas de hospedagem e a ajuda de custo, além de outros custos do treinamento, foram bancadas integralmente pelo USDA ou se os fabricantes de agrotóxicos que receberam os servidores brasileiros em suas instalações também contribuíram com dinheiro para a viagem por meio da Bryant Christie, empresa que organizou a viagem. The Intercept Brasil fez esta e outras perguntas ao USDA, usando o Freedom of Information Act, versão norte-americana da Lei de Acesso à Informação. Ainda não recebeu resposta.
“A viagem expôs um claro conflito de interesses”. Luiz Cláudio Meirelles, da Fiocruz.
A viagem, embora não seja ilegal, revela um conflito de interesses e, dependendo da interpretação, entra em rota de colisão com artigos dos códigos de ética de servidores públicos – documentos que regem o comportamento dos funcionários. Publicado no Diário Oficial da União poucos dias antes da viagem dos servidores aos EUA, o código de ética dos servidores do Ministério da Agricultura diz o seguinte: “as despesas relacionadas à participação de agentes públicos do Mapa em eventos, como seminários, congressos, visitas e reuniões técnicas, no Brasil ou no exterior, que guardem correlação com as atribuições de seu cargo, emprego ou função, promovidos por instituição privada, deverão ser custeadas, preferencialmente, pelo Mapa”. Não foi o que aconteceu.
O texto prossegue: “poderá a instituição privada, responsável pela organização de evento no país ou no exterior, custear, por meios próprios ou de seus patrocinadores, no todo ou em parte, as despesas relativas a transporte, alimentação, hospedagem e inscrição do agente público do Mapa, desde que respeitado o previsto na Orientação Normativa Conjunta CEP/CGU nº 1; observado o interesse público; a não ocorrência de conflito de interesse e vedado qualquer tipo de remuneração”.
A Anvisa também tem um código de ética interno, que proíbe seus empregados de “receber presente, transporte, hospedagem, quaisquer vantagens ou favores, assim como aceitar convites para almoços, jantares e festas”. Mas faz uma ressalva: os funcionários podem participar de “seminários, congressos e eventos semelhantes, desde que seja respeitado o interesse de representação institucional e que seja previamente autorizada pelo diretor-supervisor”. Os códigos de ética, no entanto, não estipulam punições para os funcionários.
“Não faz sentido servidores de órgãos de controle irem visitar empresas que são fiscalizadas.” Pedro Serafim, do MPT.
“A viagem expôs um claro conflito de interesses”, criticou o pesquisador Luiz Cláudio Meirelles, especialista em agrotóxicos da Fiocruz. Ele foi o primeiro gerente-geral de Toxicologia da Anvisa, cargo que ocupou entre 1999 e 2012. “É lamentável que instituições [como a Anvisa] tenham perdido a capacidade crítica.”
“Não faz sentido servidores de órgãos de controle irem visitar empresas que são fiscalizadas. Ainda mais com despesas cobertas pela organização”, disse Pedro Serafim, servidor de carreira do Ministério Público do Trabalho (MPT), atualmente subprocurador-geral do Trabalho em exercício e coordenador do Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, que tem entre seus integrantes o próprio MPT e o Ministério Público Federal.
Pedro Serafim vem denunciando este tipo de conflito de interesses. O fórum que ele coordena denunciou ao MPF que entidades que reúnem fabricantes de agrotóxicos patrocinaram com R$ 80 mil a realização de um evento chamado Encontro de Fiscalização e Seminário sobre Agrotóxicos em 2017. Mais conhecido como Enfisa, ele é organizado anualmente pelo Ministério da Agricultura para servir como “um fórum nacional para discussão de procedimentos de controle de agrotóxicos”. Participam também funcionários de outros órgãos federais – aí incluídos Ibama e Anvisa –, e estaduais.
Em documento datado de 17 de maio passado, Marco Antonio Delfino de Almeida, procurador da República que coordena o Grupo de Trabalho sobre Agrotóxicos e Transgênicos do MPF, recomendou ao Mapa que “não faça uso de recursos provenientes de empresas privadas no custeio do Encontro de Fiscalização e Seminário sobre Agrotóxicos” de 2018, que estava marcado para junho, em Palmas, mas não ocorreu. Em resposta, o ministério disse não ter dinheiro nem tempo para realizar o evento de outra forma. Assim, “decidimos acatar a recomendação [do MPF] e suspender a realização do Enfisa” em 2018, diz documento assinado no último dia 31 por Carlos Ramos Venancio, coordenador geral de Agroquímicos e Afins do Mapa.
“Como podia o Ministério da Agricultura receber dinheiro de um setor que iria regular?”, espantou-se Serafim. Informado pelo The Intercept Brasil da viagem dos nove servidores federais aos EUA, ele viu semelhança entre os dois casos. “É possível que nesse caso, como no do Enfisa, haja necessidade do MPF fazer uma averiguação.”
Um modelo arriscado
A avaliação de risco é o pilar central do sistema norte-americano de controle de agrotóxicos. Com base nele, os EUA autorizam produtos que causam doenças – inclusive câncer e problemas degenerativos –, desde que usados com cuidados que minimizem seus riscos. A legislação brasileira atual, por sua vez, veda pesticidas para os quais há estudos científicos que comprovam que são causa de problemas graves de saúde para agricultores e consumidores – mas tudo pode mudar se o PL do Veneno foi aprovado pelo Congresso.
Nos EUA, a fiscalização é mais rigorosa do que no Brasil.
“A Europa também adotava o modelo de gerenciamento de risco. Em 2011, os europeus tomaram a decisão de copiar a legislação brasileira”, explicou Luiz Cláudio Meirelles, da Fiocruz. A decisão dos europeus de mudar sua política para agrotóxicos se deveu à conclusão de que não é viável estimar adequadamente qual o risco na prática, uma vez que qualquer pessoa se expõe não só a uma, mas várias substâncias tóxicas ao longo da vida.
“Você pode estabelecer um limite para a exposição ao glifosato [pesticida considerado cancerígeno], por exemplo. Mas, na vida real, o agricultor não entra em contato só com glifosato. Vai manipular dezenas de produtos diferentes. E o consumidor também. Ninguém come só um tipo de verdura ou legume. Come vários. Então, não ingere um só, mas vários pesticidas diferentes”, argumentou.
Há outro ingrediente na equação: nos EUA, a fiscalização é mais rigorosa do que no Brasil. Apenas a EPA tem centenas de funcionários responsáveis pela avaliação e liberação de agrotóxicos. Para comprar e aplicar os produtos, o agricultor precisa fazer cursos e obter uma licença, renovada periodicamente. Os rótulos dos produtos são expressamente claros quanto aos riscos à saúde que eles causam.
No Brasil, onde a fiscalização é mais frágil, nenhum treinamento é exigido de quem aplica os pesticidas, por exemplo. E lobistas a serviço da indústria trabalham para ocultar os riscos que os produtos trazem à saúde.
Num cenário como esse, trazer para o Brasil um modelo como o norte-americano seria o equivalente a autorizar motoristas a dirigirem após consumir qualquer quantidade de álcool ou liberar o porte de armas sem exigir qualquer avaliação psicológica, comparou uma funcionária da Anvisa que pediu para ter a identidade preservada.
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