Coberto de tanques de armazenagem e retenção e de chaminés, o local da antiga fábrica Chambers Works no sul de Nova Jersey incomoda os olhos. Vista da ponte que atravessa o Rio Delaware, a zona industrial parece um trecho queimado, uma mancha marrom na paisagem verde da margem oriental do rio. O verdadeiro problema da Chambers Works, porém, não está à vista.
Desde 1892, quando a DuPont escolheu esse local para abrigar suas operações de pólvora sem fumaça, a Chambers Works tem sido o marco zero para algumas das iniciativas comerciais mais ambientalmente devastadoras do mundo. Agora praticamente abandonada, a área de aproximadamente 5 km² poderia servir como um museu de desastres químicos. Gasolina com chumbo; corantes causadores de câncer; Kevlar, uma fibra sintética que causa câncer em ratos, segundo estudos; Freon, um gás refrigerante que abriu um buraco na camada de ozônio; neoprene, o tecido cuja produção libera um gás carcinogênico; urânio refinado para armas atômicas; e PFOA, um componente do revestimento antiaderente de panelas, que polui a água potável ao redor da unidade – e ao redor do mundo – estão entre os 1.200 produtos químicos que a DuPont fabricou e armazenou naquele que era seu maior complexo fabril.
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Martin Cleary se recorda dos cheiros estranhos que costumavam se infiltrar por seu local de trabalho e das águas residuais que corriam pelas valas que atravessavam o complexo a caminho do rio. “[A água] era amarela, às vezes marrom”, diz Cleary, que trabalhou em Chambers Works por mais de 37 anos e passou boa parte desse tempo inspecionando o interior dos tanques químicos. Mesmo tendo desenvolvido um câncer de bexiga que, segundo seu médico, foi consequência de seu trabalho, Cleary quase só tem coisas boas a dizer da empresa onde trabalharam ele e muitos de seus amigos.
“Cada vez que eu precisava fazer exames para os meus tratamentos, eles me davam folga, e eu valorizo isso”, disse Cleary, que continuou a trabalhar depois do diagnóstico e ao longo de duas recorrências do câncer. Ele marcava as sessões de quimioterapia na quinta-feira, para que pudesse se recuperar ao longo do fim de semana e estar bem para trabalhar na segunda-feira. Atualmente, aos 81 anos, aposentado, Cleary também é grato porque a DuPont pagou suas despesas médicas, embora se ressinta um pouco porque a empresa só o fez depois que ele entrou com uma ação. Cleary ainda se sente em dívida com sua antiga empregadora por ter fornecido a ele um filtro que removia da água potável o PFOA que vazava da fábrica, muito embora ele e os demais residentes da área precisassem cobrir os custos de manutenção e substituição desses filtros.
Alguns dos seus vizinhos na cidade de Carneys Point, onde se localiza a Chambers Works, porém, não perdoam tão facilmente a DuPont e sua sucessora, a Chemours, que assumiu a propriedade do local em 2015. A municipalidade processou a DuPont em 2016, e depois ajuizou novamente a ação contra as duas empresas em 2017, alegando que o valor pago por elas não havia sido suficiente para cobrir os custos de reparação da imensa contaminação da propriedade. Em maio, Carneys Point entrou com outra ação relativa ao local, dessa vez contra o Departamento de Proteção Ambiental de Nova Jersey [Department of Environmental Protection, DEP], alegando que o órgão público manteve os moradores da cidade fora das discussões com a DuPont e a Chemours sobre os valores necessários para a limpeza da Chamber Works.
“Nossa preocupação é que eles estejam fazendo as contas sem nós e dando à DuPont um acordo de cavalheiros”, disse Albert Telsey, o advogado que representa Carneys Point, e que descreveu a região da Chambers Work como um desastre ambiental “pior que o Exxon Valdez”, o navio petroleiro que derramou quase 40 milhões de litros de petróleo cru nas águas do Alasca.
Ao longo dos 123 anos em que permaneceu no local, a DuPont liberou aproximadamente 50 mil toneladas de resíduos perigosos no solo, no ar e na água, de acordo com uma análise ambiental concluída em 2016. Depois de seis meses revisando centenas de milhares de documentos e usando um programa de computador empregado por agências reguladoras e pelos militares para estimar custos de limpeza, Jeffrey Andrilenas, o consultor que Carneys Point contratou para avaliar a contaminação ambiental, calculou que a reparação do local custaria mais de 1 bilhão de dólares.
Embora a DuPont e a Chemours tenham removido parte da contaminação nas últimas décadas, a análise concluiu que, mantido o ritmo atual, serão necessários mais 1.600 anos para descontaminar completamente a região da Chamber Works. Mesmo que fossem envidados todos os esforços possíveis, eliminar completamente do local a poluição deixada por DuPont e Chemours levaria um mínimo de 300 anos, segundo Andrilenas, que considera essa a “perspectiva otimista”. Andrilenas avaliou mais de 3 mil áreas industriais em todo o mundo ao longo dos seus 36 anos de carreira, e se referiu à Chamber Works como “uma das áreas mais contaminadas que já encontrei”.
A legislação de Nova Jersey exige que proprietários ou operadores de propriedades industriais façam a descontaminação ou entreguem ao Departamento de Proteção Ambiental o valor necessário para fazê-lo, antes que possam vender as áreas ou se fundir a outras empresas. No entanto, isso não aconteceu quando a DuPont transferiu a propriedade do local para sua filial, a empresa Chemours, e posteriormente se fundiu com a Dow.
A legislação de Nova Jersey também permite que as populações atingidas pelas áreas de contaminação industrial participem do planejamento da reparação de danos caso os poluidores não realizem a descontaminação de forma competente e em tempo hábil. A população de Carneys Point alega que a DuPont, que recebeu uma penalidade do estado em 2011 por 220 derramamentos químicos de resíduos perigosos, se enquadra nessa categoria. A cidade, no entanto, não foi incluída nas negociações entre DuPont, Chemours e o Departamento de Proteção Ambiental de Nova Jersey, segundo a ação ajuizada em maio.
Documentos mencionados na ação e analisados por The Intercept mostram que os representantes da Chemours apresentaram em dezembro de 2017 um plano para desembolsar 54 milhões de dólares na descontaminação do local, menos de 5% do que Carneys Point diz ser necessário. E enquanto a cidade pretende que a contaminação seja inteiramente removida, um dos planos mencionados em e-mails entre o DEP e a Chemours deixaria aproximadamente 45 mil toneladas de resíduos perigosos no local, segundo Andrilenas.
Os advogados da cidade inicialmente solicitaram ao DEP de Nova Jersey, em 2016, sua inclusão no planejamento relativo à área. O DEP, porém, ignorou a solicitação, bem como um abaixo-assinado com mais de mil moradores de Carneys Point, exigindo que lhes fosse permitido participar da tomada de decisão, segundo alega a petição inicial da ação.
O Departamento de Proteção Ambiental de Nova Jersey encaminhou as perguntas sobre a limpeza de Carneys Point e as duas ações ajuizadas pelos moradores da cidade para o escritório do Procurador-Geral de Nova Jersey, que se recusou a comentar.
A empresa DowDuPont apresentou uma declaração por escrito em resposta aos questionamentos feitos por The Intercept sobre Carneys Point, mas se recusou a responder perguntas específicas sobre o litígio:
A DuPont e atualmente a Chemours vêm há décadas ativamente reparando a área da Chambers Works à luz dos acordos realizados com o Departamento de Proteção Ambiental de Nova Jersey e a Agência de Proteção Ambiental dos EUA [EPA]. Estamos comprometidos em continuar a cumprir nossas obrigações ambientais nessa área.
Entendemos que a ação ajuizada em dezembro de 2016 é improcedente no mérito. O objeto da ação são as definições técnicas de propriedade e transferêncida de ativos. As caracterizações de Carneys Point quanto à natureza e ao status da reparação em curso na área estão incorretas. Em especial, a alegação de Carneys Point de que a reparação do local custará US$1,2 bilhão é imprecisa e está embasada em uma análise falha. O trabalho de reparação iniciado pela DuPont está sendo continuado pela Chemours.
A Chemours também apresentou uma declaração por escrito que tratava da área em geral, mas não respondeu perguntas específicas sobre as alegações feitas por Carneys Point:
As instalações de Chambers Works incluem diversos aterros sanitários, e o solo e os lençóis freáticos da área foram impactados pelo histórico de operações. A Chemours vem trabalhando com os órgãos ambientais, o DEP de Nova Jersey e a EPA dos EUA, para garantir que essa área não represente risco para a saúde pública ou para o meio ambiente.
A Chemours tomou medidas para reparar a área, inclusive um sistema de bombeamento e tratamento dos lençóis freáticos, com fechamento de bacias e valas, e instalação de uma parede de estacas-prancha para assegurar que o lençol freático local esteja contido. Continuamos a investigar tecnologias adicionais que possam acelerar as medidas de reparação.
A Casa das Borboletas
Uma das razões para que a DuPont escolhesse esse ponto da região sul de Nova Jersey para sua fábrica de pólvora sem fumaça, em 1892, foi o rio, que fornecia fácil acesso de transporte. A água também dava proteção à sede da empresa, que ficava do outro lado do rio, em Wilmington, Delaware. Os dirigentes da empresa estavam preocupados com a possibilidade de que a fábrica explodisse, segundo o livro “DuPont Dynasty: Behind the Nylon Curtain” [“Dinastia DuPont: Por Trás da Cortina de Nylon”, sem tradução no Brasil], uma história abrangente do império corporativo. O medo se provou justificado. A fábrica na região sul de Nova Jersey foi cenário de várias explosões letais, incluindo pelo menos duas que aconteceram nos primeiros oito anos de funcionamento. Explosões de grandes proporções continuaram a acontecer em intervalos regulares ao longo do século que se seguiu.
Mas a pólvora foi apenas o primeiro produto perigoso a ser fabricado em Chambers Works e nas instalações vizinhas, conhecidas como Deepwater. Ao tempo da Primeira Guerra Mundial, a fábrica da DuPont também estava produzindo corantes à base de anilina, que na Europa já se havia demonstrado serem causadores de câncer. Os primeiros casos de câncer nos trabalhadores de Nova Jersey que lidavam com corantes começaram a aparecer em 1932. A empresa continuou a produzir um dos componentes carcinogênicos até 1955, embora já tivesse ciência da excessiva ocorrência de câncer de bexiga em seus trabalhadores por décadas, segundo o estudioso de saúde ocupacional David Michaels.
No começo dos anos 1920, a DuPont começou a fabricar gasolina com chumbo em seu parque industrial às margens do Rio Delaware. O processo de fabricação não apenas espalhava chumbo pelo solo – onde boa parte permanece até hoje – mas também envenenava muitos trabalhadores. O prédio de tijolos de cinco andares no local ficou conhecido como A Casa das Borboletas. O motivo do apelido foram os trabalhadores da DuPont que pareciam estar capturando no ar insetos imaginários: na verdade, estavam alucinando pelos efeitos da inalação da neurotoxina.
Segundo uma investigação feita em 1925 pelo New York Times, “cerca de 80% de todos que trabalharam n’A Casa das Borboletas’, ou que lá entraram para fazer reparos, foram intoxicados, alguns deles repetidamente”. Frank W. Durr, o primeiro caso documentado de morte por intoxicação com chumbo na fábrica, morreu em 1923 numa camisa de força, aos 37 anos. Durr, que era conhecido como “Feliz”, tinha 12 anos quando começou a trabalhar para a DuPont. Para compensar a esposa de Feliz pela morte, a empresa pagou a ela uma pensão de 17 dólares por semana, por quatro anos. O editor do jornal local, que não cobriu a morte de Durr à época, contou ao Times que não conseguira obter nenhuma informação sobre o caso porque “eles escondem as coisas na fábrica de chumbo”.
Durante os anos 1940, a Chambers Works foi também uma das instalações do Projeto Manhattan, o que deixou um legado de radiação e flúor no local de operações da DuPont. Restam muitos outros contaminantes no solo da Chamber Works. Testes acusaram a presença de 75 produtos químicos em concentração superior aos padrões de Nova Jersey nas águas do lençol freático, nos limites da área. No caso do carcinógeno benzeno, por exemplo, a medição acusou uma presença 28 mil vezes maior que os níveis tolerados. Em 1999, o estado concedeu à DuPont uma isenção por 999 anos dos limites regularmente aplicados para esses produtos químicos. Muitos outros contaminantes extrapolam os limites de segurança no local, de acordo com Andrilenas.
O Preço do Progresso
Em alguns momentos, a DuPont considerou que parte das consequências negativas de seu trabalho eram inevitáveis. Depois que a intoxicação por chumbo chamou a atenção para sua fábrica do sul de Nova Jersey, um relatório anual de 1936 descreveu as mortes entre a força de trabalho por esse motivo como “o preço lento e gradual que a humanidade sempre pagou, e talvez deva pagar, pela conquista de novos e perigosos territórios”.
Carneys Point certamente se beneficiou de uma parte dos novos e perigosos territórios que a empresa conquistou. “A fábrica foi fenomenal para a cidade”, disse recentemente Joe Racite, ex-prefeito de Carneys Point. Racite, de 65 anos, conhece muitas pessoas que trabalharam na Chambers Works, inclusive seu falecido sogro, que trabalhou com corantes e morreu de câncer aos 56 anos. Ele ainda se lembra de uma explosão nas instalações, que quebrou as janelas de sua sala no colégio durante as provas finais em 1969. Ainda assim, quando estava no auge, a fábrica quase parecia compensar os problemas ambientais e de saúde que causava.
Atualmente, Racite já não tem tanta certeza. No começo do ano, a DowDuPont transferiu para a Índia um de seus últimos negócios: a produção de uma fibra sintética com aplicações aeroespaciais e militares, conhecida como Aramida. A Chemours recentemente colocou à venda o parque industrial. E, embora o burburinho que acompanhava a fábrica tenha se esvaído, juntamente com a maior parte dos empregos, a poluição permanece – e provavelmente ainda vai pesar sobre Carneys Point por muitas gerações.
Tradução: Deborah Leão
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