A intervenção federal no Rio de Janeiro completa cinco meses de muito tiro e pouca inteligência segundo o Observatório da Intervenção. Foram mais de 4 mil tiroteiros desde o início da operação — pelo menos 35% a mais do que nos cinco meses anteriores.
No caos instaurado nos morros cariocas, militares e moradores se enfrentam numa guerra alimentada pelo racismo e pela insegurança. De um lado, estudantes e trabalhadores morrem baleados por parecer suspeitos. Do outro, agentes fardados enfrentam a revolta da gente que os viu crescer nas favelas. Um desses policiais é Saulo Matte, que descreveu essa situação insólita de violência e discriminação entre iguais criada pelo próprio Estado ao The Intercept Brasil.
Meu nome é Saulo Ferreira Matte, 35 anos. Sou um negro pobre da zona oeste do Rio de Janeiro, terra abandonada pelo poder público e adotada pelo “papai” Tráfico e a “mamãe” Milícia. Nunca fui tentado diretamente a ir para o tráfico, mas muitos amigos de infância, sim. Há pouco um amigo de infância que era gerente do tráfico de Vigário Geral morreu. Ele morava na minha rua. Já eu sonhava em ser jogador de futebol. Foi em função desse sonho que conduzi minha vida durante muito tempo.
Sempre fui cristão – talvez por ter crescido na igreja tenha me ajudado a ficar afastado das drogas. Frequentava uma igreja extremamente racista e elitizada no sentido mais subliminar e mais nocivo – aquele racismo que ninguém declara. Me lembro de um episódio da minha infância que me marcou profundamente. Eu tinha uns 10 anos e um amiguinho branco estava vestido quase igual a mim, bermuda da mesma cor e camisa também. Uma tia da escola dominical falou na minha frente que ele estava lindo! Eu olhei pra ele e pra mim e disse a ela: “Eu também, né, tia? Estamos quase igual!”. Ela disse: “Mas ele está um pouco diferente.” Pretos e pardos são maioria (54%) da população, mas apenas 17% entre os membros da parcela mais abastada do país – o 1% mais rico. Na outra ponta, três a cada quatro pessoas entre os 10% mais pobres são negras.
Nesta época, eu via muitos amigos estudando em colégios caros. E, por obra do Divino, ganhei uma bolsa para cursar o ensino médio num excelente colégio da zona oeste. Como havia estudado em colégios públicos de baixa qualidade, sofri com o ensino. Mas sofri muito mais com os contrastes que via todos os dias na escola – fato que me levou a um esquecimento involuntário desse período da minha vida.
Continuei jogando futebol e frequentando aquela igreja – meu avô havia fundado a orquestra, da qual foi maestro (ele contribuiu toda a sua vida para a igreja sem nunca ter recebido um tostão por isso). No futebol, porém, as portas começavam a se fechar à medida que eu crescia.
Na igreja, via os poucos negros entrando para as Forças Armadas e conquistando patrimônio (carros, roupas novas etc). Era incrível como eles passavam por um processo de “despretização”, no qual passavam a ter todo respeito que eles não tinham por ser negros – afinal, agora eles se tornaram homens de pele verde-oliva, pele azul turquesa ou pele branca (Exército, Aeronáutica e Marinha). Uma pesquisa de 2015 da Universidade de Brasília aponta que 67% dos policiais militares locais se declaram não brancos.
Com uma adolescência difícil como qualquer outro negro de periferia, eu me via pressionado. Já tinha 19 anos, idade de arrumar um emprego. Meus “amigos” do colégio estavam na faculdade, e eu não tinha dinheiro pra comer um cachorro-quente com a namorada. Era um período difícil.
Nunca pensei em ser militar. Tentei vestibular uma vez e não passei. Ou começava a entregar currículos ou estudava para algum concurso militar.
Meu pai havia saído de casa, e meus irmãos eram mais novos e não podiam trabalhar. Em vários momentos, não tínhamos o que comer em casa. Nesta época, eu consegui um bico de juiz de paintball – o dono desse paintball era um amigo branco da igreja, ele me pagava R$ 15 por jogo e mais um vale-alimentação. Era o que ajudava, mas não era suficiente. Eu me sentia muito pressionado e com poucas opções. Nunca pensei em ser militar. Tentei vestibular uma vez e não passei. Ou eu começava a entregar currículos ou eu estudava para algum concurso militar.
Me pareceu muito mais atraente estudar um pouco. Passando, eu conquistaria respeito, estabilidade financeira, não precisaria enfrentar fila do SUS, iria me aposentar recebendo o valor integral e poderia comprar tudo que eu não podia (mesmo que a prazo). Por diversos momentos, pensei em desistir, mas eu pensava que se desistisse eu não teria aquelas vantagens e teria que trabalhar pegando trem e ônibus todos os dias. Isso me dava forças pra continuar.
Lembro quando eu era bem pequeno, ia trabalhar com meu pai, a gente pegava trem, superlotado e depois ônibus em engarrafamentos gigantes. Era horrível. Durante a semana, a gente quase não se via. Ele chegava cansado do trabalho e sempre tarde. Nenhum empregador paga por esse trajeto. Não se tem tempo pra si e para a família.
Então, assim aconteceu. Fui a um bom curso, pedi desconto e comecei a queimar cobre com a finalidade de arrumar dinheiro para pagá-lo (arrancava toda a fiação de carros acidentados, queimava o plástico dos fios e vendia o cobre para ferros-velhos para conseguir dinheiro). Naquele ano, eu fui aprovado em dois concursos militares, um pra Marinha e outro para o Exército. Optei pelo segundo.
Lembro quando eu era bem pequeno, ia trabalhar com meu pai, a gente pegava trem, superlotado e depois ônibus em engarrafamentos gigantes. Era horrível. Durante a semana, a gente quase não se via.
A prova que fiz foi para ser sargento – era a mais acessível e mais compatível com o tipo de ensino que tive durante minha vida. A desigualdade racial dentro das corporações militares persiste: brancos ocupam 51% dos cargos de oficiais, e os negros, 47%. Nos cargos de praças, claro, a história é outra: negros somam 58% e brancos 37%. A prova para oficial é muito mais difícil, restrita a quem tem condições de pagar um excelente cursinho preparatório. Talvez seja por isso que, lá em Minas Gerais, onde ocorreu o curso de formação de sargentos, encontrei muitos jovens como eu, com história parecidas, em sua maioria pobres e negros de áreas periféricas da cidade.
Depois de formado, eu percebi que realmente deixava de ser negro para ter uma pele verde-oliva. Em Curitiba, fui apresentado na igreja como o irmão Sargento Saulo.
Agora, com a Intervenção Militar, criou-se uma situação absurda. Hoje, vejo amigos com dedo em riste me incriminado e sendo preconceituosos comigo pelo simples fato de eu ser militar. Esquecem que sou o mesmo menino vindo de Realengo, esquecem que o Exército é um recorte da sociedade, onde existe gente de todos os tipos!
Muitos militares que atuam na Intervenção no Rio moram nessas comunidades ocupadas. Tento imaginar o dilema que eles passam. O Estado brasileiro não faz questão de proporcionar outras opções para esses jovens. Na periferia, tudo é polarizado. Desde pequenos, convivemos com as histórias do mais velho dizendo que foi do Exército ou o bandido Robin Hood – que é bem-visto na periferia, que não deixa ter assaltos na área, ajuda os meninos que querem jogar bola e até dá uma força para passar na prova da própria PM. Sobre as pessoas que saem dessa realidade e vão pra outros lugares, só ouvimos remotamente a história deles.
O Exército age da única forma que ele sabe, que é causando traumas e com truculência. O erro está em quem confiou esse trabalho somente a ele.
Conheço o outro lado, conheço os dilemas de alguns militares e não dá para colocar culpa do estrago que o martelo fez sem culpar quem está usando ele. O Exército é uma ferramenta, não o agente pensante. Costumo dizer que o Exército age da única forma que ele sabe, que é causando traumas e com truculência. Esse é o Exército. O erro está em quem confiou esse trabalho somente a ele.
Minha intenção aqui não é defender o Exército – ele não precisa de mim na sua defesa. Minha intenção é mostrar que os militares são pessoas comuns como aquele menino que você vê queimando fio de sucatas para vender o cobre, que você vê numa igreja, que você vê crescendo na sua rua.
Texto redigido por Sílvia Lisboa conforme narrado por Saulo Matte.
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