Há pouco mais de um mês, assisti perplexa ao caso da esterilização forçada de Janaína Aparecida Querino, uma mulher em situação de rua. Por uma decisão liminar do juiz Djalma Moreira Gomes Júnior, concedida em 2017, após pedido do promotor Frederico Liserre Barruffini, Janaína passou pela operação de laqueadura – um procedimento que está em alta no Brasil e ninguém sabe dizer por quê. Em maio deste ano, a administração municipal recorreu, e o Tribunal de Justiça de São Paulo anulou a decisão. Tarde demais. Janaína, que tem 36 anos e vive na cidade paulista de Mococa, havia sido esterilizada há três meses. O ocorrido me lembrou de imediato a um fato pouco lembrado: a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da laqueadura involuntária dos anos 1990.
Janaína foi submetida à cirurgia no dia 14 de fevereiro, logo depois do parto do oitavo filho, quando estava na Penitenciária Feminina de Mogi Guaçu. Logo se instalou uma polêmica. Ela havia consentido ou não ao procedimento? Aos prantos no maior programa jornalístico domingueiro da TV nacional, ela afirmou que jamais desejou a operação, e o ofício da Assistência Social de Mococa indicou “desinteresse em passar pelo procedimento”. O que grande parte dos brasileiros parece não se dar conta é que, neste caso, isso não é o mais relevante.
Deliberações relativas ao planejamento familiar de qualquer cidadão jamais podem partir do Ministério Público, pois são de livre decisão das mulheres e dos homens deste país. São direitos individuais e devem partir unicamente dos cidadãos e cidadãs. Mas vamos ao que está no cerne de todo esse imbróglio: no Brasil do “somos todos iguais”, uns são mais iguais que outros.
A CPI dos anos 1990 não foi instaurada por acaso. Ela foi fruto de denúncias e estudos de que o escasso acesso aos métodos contraceptivos, principalmente nas áreas mais carentes do país, era campo fértil para que ligaduras de trompas (como também são chamadas as laqueaduras) fossem oferecidas como escambo eleitoral e sem qualquer critério.
A Pesquisa Nacional de Demografia em Saúde, feita pelo Ministério da Saúde em 1996, mostrava que 45% das brasileiras em uniões estáveis estavam laqueadas e um quinto delas com menos de 25 anos. A CPI, presidida pela então senadora petista Benedita da Silva, do Rio, com relatoria do senador pefelista de Tocantins Carlos Patrocínio, comprovou a prática indiscriminada da laqueadura e o uso eleitoreiro da cirurgia. Na ocasião, um depoimento sem rodeios de Antônio Pedroso Neto, do Conselho Federal de Medicina, deixava clara a indiferença do governo perante o problema.
A redução da violência evitando que o pobre “se reproduza”
O descaso vinha de mais tempo. As leis que favoreceram a imigração no Brasil revelam um projeto de nação que excluía negros e indígenas. Os imigrantes europeus receberam benesses jamais sonhadas pelos descendentes de escravos que construíram o país. Em 1911, em Londres, no Congresso Universal das Raças, o médico e antropólogo João Batista de Lacerda expôs ao mundo a tese do embranquecimento com o artigo “Sobre os mestiços do Brasil” (Sur les métis au Brésil). Nele, fazia uma defesa da miscigenação porque acreditava que a raça branca acabaria por sobrepor a negra e a indígena. Ficou famoso o quadro usado por Lacerda para exemplificar sua teoria. Em “A redenção de Cam”, uma avó negra agradece aos céus o neto branco nos braços de sua filha mestiça casada com um homem branco.
João Batista Lacerda parece ter feito escola – Getúlio Vargas, 34 anos depois, no artigo 2º do decreto-lei nº 7.967, dispôs: “Atender-se-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia (…)”.
Esterilizações forçadas em pobres (que, na sua maioria, são negros) em um povo com este histórico não parece nada fora dos padrões. Mas para sair do terreno do empirismo foi criada uma CPI para averiguar a “incidência de esterilização em massa de mulheres no Brasil.” Movimentos sociais, entidades e a Igreja apontavam os programas de controle da natalidade e planejamento familiar, muitos financiados com capital estrangeiro, como focos da prática que deixou estéreis milhares de mulheres involuntariamente.
Esses programas eram capitaneados por entidades que, segundo diversos depoimentos, seguiam orientações que constam no chamado Relatório Kissinger, documento norte-americano classificado como sigiloso, mas que pesquisadores tiveram acesso nos anos 90. Era o Memorando de Estudo de Segurança Nacional 200, que tratava do crescimento da população mundial e a segurança dos Estados Unidos. Ganhou o nome de Henry Kissinger porque foi concluído em dezembro de 1974, sob sua direção.
Programas de laqueaduras forçadas no Brasil seguiam orientações que constam no chamado Relatório Kissinger.
O Relatório Kissinger foi adotado como política oficial pelo presidente Gerald Ford em 1975 e defendia que o crescimento populacional dos países menos desenvolvidos era uma ameaça para a segurança nacional americana, pois geraria riscos de distúrbios civis e instabilidade política. Para conter o avanço demográfico, o relatório defendia a promoção da contracepção. Treze países estavam na mira desta política: Índia, Bangladesh, Paquistão, Indonésia, Tailândia, Filipinas, Turquia, Nigéria, Egito, Etiópia, México, Colômbia e Brasil. Assim, a vontade histórica da elite brasileira ganhou um aliado de peso e com dólares no bolso.
A CPMI ouviu gente poderosa dos movimentos feministas, movimentos negros, deputados, médicos e juristas. Em 144 páginas, o documento desfila depoimentos impressionantes de ativistas históricas como Luiza Barrios, que se tornaria ministra-chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial de 2011 a 2014; de Jurema Werneck, atualmente presidente da Anistia Internacional no Brasil; de Edna Rolland, do Instituto Geledés para Mulheres Negras, que viria ser a relatora da Conferência Mundial contra o Racismo, em 2011. E ainda traz falas de Adib Jatene, então ministro da Saúde; do embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, da deputada Jandira Feghali; do então presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil Dom Luciano Mendes de Almeida, entre outros.
Dom Luciano, por exemplo, foi taxativo ao afirmar que em um país com 16 habitantes por quilômetro quadrado não se deveria estar falando em controle da natalidade, mas o fazia porque havia uma intenção genocida por trás, dentro de uma perspectiva racista.
Também falaram os médicos que consideravam tudo um grande exagero, como Elsimar Coutinho. Coutinho, então presidente da Associação Brasileira de Entidades de Planejamento Familiar, era tido como porta-voz da política de esterilização no país. A associação era uma entidade civil que congregava as entidades de planejamento familiar. Seu orçamento entre 1988-90 foi de 8,3 milhões de dólares.
Segundo o relatório da CPI, um de seus objetivos era treinar médicos, enfermeiras e paramédicos em técnicas de esterilização. O texto da relatoria apresentou dados de instituições no Brasil e no exterior comprovando que a prática da laqueadura era muito alta, fora dos padrões mundiais. Fato confirmado no depoimento de Jatene.
Vinte anos passaram e, em 2011, Elsimar concedeu uma entrevista ao jornal A Tarde afirmando que as ações do programa de planejamento familiar desenvolvidas há 20 anos pelo Centro de Pesquisa e Assistência em Reprodução Humana, instituto que dirigia, auxiliaram na diminuição da violência entre os jovens da Bahia. Para justificar seu ponto, usou o número de esterilizações não em mulheres, mas em homens, pois o número de vasectomias feitas pelo centro saltou de zero em 1984 para 489 em 1991: “O planejamento familiar diminui as desigualdades sociais porque diminui o abandono e a mortalidade infantil, diminui a violência entre os jovens. (…) Uma única vasectomia protege de uma gravidez indesejada um número enorme de mulheres”.
Na mesma matéria, Edna Rolland rebate: “Os pobres têm muitos filhos porque são pobres, e não o contrário. A causa que tem que ser atacada é a pobreza, a expropriação de condições dignas de vida. O planejamento familiar é um direito de todos e não devemos pensar em um programa para pobres e um para não pobres, da mesma forma que não existe educação para pobres ou saúde para esse grupo”.
O Estado brasileiro permanece ausente e incapaz de estabelecer ações voltadas à reprodução enquanto questão de saúde pública.
A discussão está muito longe de ter um fim no Brasil e no mundo. A CPI da laqueadura resultou no projeto de lei sobre planejamento familiar aprovado pelo Congresso Nacional em 1996, sancionado, após muitas pressões, sem vetos pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. Está lá: “É condição para que se realize a esterilização o registro de expressa manifestação da vontade em documento escrito e firmado após a informação dos riscos da cirurgia”. Mas, embora algum avanço tenha sido verificado, o Estado brasileiro permanece ausente, incapaz de estabelecer ações voltadas ao tema da reprodução enquanto questão de saúde pública.
Thais Machado Dias, do Coletivo Feminista de Saúde e Sexualidade, mencionou o perigo de que o caso de Janaína, a mulher que foi esterilizada a mando da Justiça, abra um precedente para uma reedição das medidas racistas do passado: “Fazer com que pessoas que não cabem numa dita norma social não se reproduzam é um processo eugênico que se repetiu em vários momento da história. Se a gente trabalha com laqueadura involuntária para pobres, mulheres negras e usuários de substâncias, vamos retroceder anos de história e de direitos humanos”, declarou a veículos após a repercussão do caso.
A crise migratória recente e as medidas protecionistas do governo norte-americano, com as crueldades da separação de pais e filhos e o ódio a imigrantes, nos faz pensar que o Relatório Kissinger e a CPI da esterilização em massa não aconteceram há três décadas, mas ontem.
Janaína Aparecida Querino está aí para provar.
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