O Roda Viva é apresentado há mais de 30 anos na TV Cultura de São Paulo, emissora do governo do estado paulista, comandado por tucanos há 24 anos. Agora, pensemos na candidatura abençoada pelo sistema que a casa representa: que tipo de questionamento se poderia esperar? Quase nenhum. A comparação das entrevistas do Roda Viva com Manuela d’Ávila e Geraldo Alckmin fornece um exemplo perfeito da tática de uma televisão pública transformada em instrumento de propaganda política.
A postura agressiva e frequentemente sarcástica da maioria dos entrevistadores mal deixava a pré-candidata do PCdoB concluir um raciocínio – um vídeo editado pela Mídia Ninja contou 62 interrupções, desde as mais brandas até as que descambavam para o bate-boca –, a ponto de, por diversas vezes, Manuela precisar reagir no mesmo tom: “eu queria retomar a palavra se tu permitires, pode ser?”, “eu posso terminar alguma frase, sim ou não?”, “eu gosto [de ver] que vocês gostam de falar mais que eu, mas vamos lá…”.
Já os raros questionamentos mais incisivos a Alckmin mantiveram-se no nível da civilidade esperada no trabalho jornalístico e apenas conseguiram demonstrar como o velho político esquivava-se de responder a perguntas incômodas, desfiando platitudes sobre o combate à corrupção – “quem errou tem de pagar” – e sobre a necessidade de união nacional para o bem do Brasil. Isso quando não exalava falsidade e artificialismo ao contestar o que era público e notório, como sua relação conflituosa – para dizer o mínimo – com João Doria, que deixou a prefeitura para concorrer ao governo de São Paulo.
No caso de Manuela, o mais grave nem foi a montagem de um pelotão de fuzilamento, que evidentemente excluía a diversidade eticamente necessária em programas que desejem promover um debate esclarecedor, mas a ocultação da filiação ideológica de alguns dos convidados. Coube à candidata apontar o vínculo de Frederico d’Ávila, apresentado apenas como diretor da Sociedade Rural Brasileira, com a campanha de Jair Bolsonaro – embora ele próprio houvesse de se denunciar, ao defender a castração química para prevenção do estupro e afirmar que o nazismo era de esquerda, porque o partido de Hitler era nacional-socialista.
No caso de Manuela, o mais grave foi ocultação da filiação ideológica de alguns dos convidados.
Da mesma forma, Joel Pinheiro da Fonseca foi anunciado como “economista e filósofo”, quando é também articulista da Folha de S.Paulo e se autodefine como um “libertário”, precisamente ao modo de uma certa tradição da direita norte-americana que rejeita a presença do Estado na economia, e pretensamente representaria o “novo” na política brasileira, como foi apresentado em reportagem da revista Época há dois anos, quando colaborava com o partido do mesmo nome e manifestava interesse em concorrer a cargos eletivos no futuro.
O rolo compressor sobre Manuela tinha dois objetivos: apelar ao mais arcaico anticomunismo para desqualificar as pretensões da candidata e questionar se sua postulação era mesmo “pra valer”, se no momento decisivo ela não abriria mão da candidatura em prol da “velha esquerda corrupta”. Por isso, Manuela teve de gastar boa parte do tempo para responder – quando a deixavam falar – sobre o PT e Lula, esse espectro que ronda as eleições, e sobre… Stálin, verdadeira obsessão do âncora do programa, Ricardo Lessa. Um mês depois, ao comandar a entrevista com Alckmin, nem passou pela cabeça do jornalista perguntar: “governador, e a Opus Dei?”
Ficou patente, também, a tentativa de distorcer o sentido da fala da candidata, especialmente quando Joel, cujo ímpeto quase adolescente demarca a distância em relação à sobriedade do perfil de seu pai (o economista Eduardo Giannetti da Fonseca, consultor da companha de Marina Silva), a acusou de promover o discurso de ódio nas redes sociais, como se contestar quem dissemina fake news ou deturpa o discurso alheio equivalesse a uma agressão. Porém essa falácia tem endereço certo: reiterar o mantra do consenso, que rejeita a atitude crítica como algo nefasto por alimentar a polarização que perturba a ordem necessária ao progresso. São essas distorções que as edições de vídeos a partir do programa ajudam a perpetuar, nesses tempos de múltiplos canais de informação alternativos na internet.
Reiterar a necessidade de consenso foi precisamente a linha do discurso de Alckmin, e é notável que uma declaração feita lateralmente, como um comentário vadio, assim como quem pisa nos astros, distraído, de que “está pensando” em extinguir o Ministério do Trabalho, não tenha recebido sequer um arquear de sobrancelhas. A experiência de dois mandatos à frente do governo de São Paulo e as várias denúncias de corrupção nesse período – sobre merenda escolar, sobre o metrô, sobre a Sabesp –, além da repressão a movimentos sociais, seriam uma fonte inesgotável de questionamentos. Sobre educação, tema recorrente no programa, apenas ao final mencionou-se a relação – na verdade, repressão – aos professores.
No entanto, é falso dizer que o candidato “passeou” na frente de uma bancada dócil ao partido que controla aquele canal de TV: se não foi contundente nem abrangente como deveria, nem por isso deixou de levantar questões constrangedoras, que não existiriam no caso de uma entrevista “chapa branca”. Thaís Bilenky, da Folha, e Silvia Amorim, do Globo, foram as responsáveis por esses momentos. Na comparação com a entrevista a Manuela, porém, o tratamento cortês dado a Alckmin pela maioria da bancada de entrevistadores soou totalmente desproporcional. Enquanto a desconfiança com Manuela era geral, com Alckmin se restringiu a dois membros da bancada.
Ver retrospectivamente esses programas, disponíveis no YouTube, é útil também para refrescar a memória: na abertura da entrevista a Manuela d’Ávila, em 25 de junho, o âncora, Ricardo Lessa, anunciou a presença de Geraldo Alckmin para o dia 30 do mês seguinte. Entretanto, ele compareceu uma semana antes, dia 23 de julho, logo depois de finalmente fechar acordo com os partidos de direita, que ainda hoje gostam de se chamar de “centrão”, e assim indicar a aposta eleitoral das forças que deram o golpe dois anos antes. Imediatamente a mídia – e a TV Cultura não ficaria atrás –, se lançou à inglória tarefa de tirar aquela candidatura do volume morto.
Comparar o que aconteceu nos programas com Manuela e Alckmin é expor a farsa da encenação de um debate que não poderia haver num ambiente dominado pelos interesses político-partidários do governo de São Paulo. Mas a farsa maior é a da própria encenação de um processo eleitoral que exclui o líder das pesquisas. Como disse o cientista político da UnB Luís Felipe Miguel, “convém não esquecer: houve um golpe em 2016”. Supor eleições democráticas no contexto em que as forças golpistas continuam a tutelar a vontade popular é legitimar essa farsa.
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