Em uma nação dividida, muitas vezes consumida por disputas corporativistas, identificar-se como anticapitalista pode tornar a vida um pouco solitária. Mas as coisas estão mudando.
A revolução talvez não seja televisionada, mas está sem dúvida influenciando a produção de conteúdo.
Desde sua impressionante vitória nas primárias, a candidata de 28 anos Alexandria Ocasio-Cortez vem divulgando com sucesso o socialismo democrático para públicos da região central dos EUA em talk shows e na programação diurna de TV, e até, desafiando os mais céticos, para o estado do Kansas, considerado um “estado vermelho” onde o Partido Republicano tem maioria. Recentemente, a candidata ao governo do estado de Nova York Cynthia Nixon admitiu de passagem que se considera uma socialista democrática, uma declaração que foi recebida, surpreendentemente, com pouca controvérsia. E a líder do Partido Democrata na Câmara, Nancy Pelosi, ainda está se recuperando da reação ao seu menosprezo insensível a uma pesquisa que mostrou que apenas 19% das pessoas com idade entre 18 e 29 anos se identifica como capitalista.
O gracejo de Pelosi, “somos capitalistas, é assim que funciona”, simplesmente não faz sentido para o número cada vez maior de americanos que percebem a desigualdade como característica do sistema econômico, não como uma falha. E agora os ideais anticapitalistas se infiltraram em mais um meio – como tema do filme distópico “Sorry to Bother You”, do ativista comunista, rapper, produtor e roteirista Boots Riley.
O filme gira em torno de um “millennial” letárgico e subempregado chamado Cassius “Cash” Green (Lakeith Stanfield), que consegue um emprego em uma sombria empresa de telemarketing em um subsolo. A namorada de Cash, Detroit (Tessa Thompson), é uma artista performática que também precisa de um emprego de meio período. Em pouco tempo, ela, Cash e um amigo de Cash, Salvador (o comediante Jermaine Fowler) estão isolados em cubículos adjacentes, tentando desesperadamente vender enciclopédias para americanos que, por sua vez, estão preocupados com níveis diversos de perturbações pessoais ou financeiras.
“Estou apenas sobrevivendo por aí”, Cash diz a Detroit no começo do filme. Porém, tantos anos apenas “sobrevivendo” pesam muito sobre seu espírito. “O que estou fazendo agora”, observa ele, “não vai nem importar.”
Cash está morando na garagem de seu tio Sergio, e está ameaçado de ficar sem casa de duas formas: Sergio, vivido pelo sempre incrível Terry Crews, está exigindo que Cash pague aluguel. Porém, em um recorte que reflete a compreensão sistêmica que Riley tem das tribulações da classe trabalhadora, descobrimos que Sergio também está com o aluguel atrasado. Aparentemente, ninguém tem descanso.
Cash está entorpecido por suas circunstâncias econômicas – intimidado pelas humilhações em casa, onde uma porta de garagem com defeito expõe um momento de intimidade entre ele e Detroit; em uma casa noturna, onde ele é invisível para os convidados VIP; e diante de uma incrédula frentista, que olha para ele com desdém quando pede para colocar “40” na bomba, e joga sobre o balcão seus últimos quarenta centavos. Quando o valor humano é atribuído com base no quanto conseguimos ganhar, o desemprego pode se tornar uma questão de saúde mental, e tanto a perspectiva financeira quanto a psicológica de Cash são desanimadoras.
Mas o desânimo de Cash melhora quando ele começa a se superar no trabalho. Ele se torna um “atendente de alto nível” depois que seu colega de cubículo Langston (Danny Glover) o aconselha a usar uma “voz branca” quando faz ligações. Langston explica que uma “voz branca” não é a caricatura estridente e anasalada que os comediantes dos anos 1990 aperfeiçoaram. É algo mais autêntico, uma voz que diz: “por mim dá na mesma fazer minha aula de tênis à tarde ou concluir esta venda”, que soa genuinamente “despreocupada” [worry-free], que, coincidentemente, é o nome do maior cliente da empresa de telemarketing. Aparentemente, a lição é que você precisa ter dinheiro para ganhar dinheiro – ou, no mínimo, soar como se tivesse dinheiro.
E aparentemente Cash tem um talento natural – ou, talvez, sobrenatural. Sua “voz branca”, dublada por David Cross, tem uma dublagem propositalmente ruim, e os personagens do filme a percebem como surreal, mágica, ou até perturbadora.
Mas ela funciona.
Em pouco tempo, Cash pega um elevador decorado, rococó – dublado pela reconhecida simpatizante de Bernie Rosario Dawson – que o leva do subsolo do setor de vendas para o literal e metafórico topo da empresa. Ali, será solicitado a Cash que venda itens que carregam um enorme preço ético.
Na maior parte dos filmes, a tensão narrativa estaria em debater se Cash está ou não justificado ao “se vender” para pagar as contas; Riley, porém, introduz um outro elemento, mais visceral, e que dá ao filme uma sensação realmente revolucionária. No mesmo dia em que Cash é promovido, um carismático líder sindical chamado Squeeze, representado por Steven Yun, consegue organizar uma greve por melhores salários. O conflito central, então, é entre os grevistas e Cash, que fura o piquete todas as manhãs com a ajuda de uma força policial cada vez mais militarizada – pelo menos até que a virada do terceiro ato mude sua consciência.
“Sorry to Bother You” é único porque não é uma história em que os protagonistas escapam de suas condições econômicas ruins por meio do esforço individual, da dedicação profissional ou de uma genialidade incomum Em vez disso, ele contrasta a riqueza excessiva meritocrática com o salário mínimo obtido por meio da solidariedade. A primeira vem por acaso e se acumula apenas para poucos eleitos: a voz de Cash é um dom, não é algo que ele se esforçou para ter, e por se tratar de um dom rentável e raro, é altamente valorizada. Em contraste, os empregados de telemarketing esperam obter um padrão digno de vida para todos, ao suspenderem em massa sua força de trabalho.
O filme se diferencia das clássicas histórias “da pobreza à riqueza” como “À Procura da Felicidade” – que é um filme emocionante, mas celebra a jornada de um homem pobre, de sem-teto a corretor de ações, sem criticar a relação entre a concentração de riqueza e a escassez de moradia acessível, ou o absurdo da “meritocracia” que faz a sobrevivência de uma família depender da habilidade do pai de mesmerizar seu entrevistador com um cubo mágico. “À Procura da Felicidade” nos toca porque mostra um homem superando o impossível. “Sorry to Bother You” nos toca porque mostra que não precisamos fazê-lo sozinhos.
Esse enquadramento não é acidental. Como Riley explicou em várias entrevistas recentes, ele não está interessado em arte ou política performáticas que não estejam fundadas em movimentos mais amplos. “Progressistas e radicais se voltaram mais para o espetáculo e se afastaram da efetiva organização no ponto de contradição do capitalismo, que é a exploração da força de trabalho, que também é onde a classe trabalhadora tem poder” – disse ele recentemente a Amy Goodman no programa de TV Democracy Now! [“Democracia Já!”]. “Nós começamos a favorecer manifestações que não necessariamente ameaçam (…) e acho que precisamos aumentar a ameaça dessas manifestações buscando impactar os resultados.”
A conexão entre arte e movimento político é o que faz com que “Sorry to Bother You” soe revolucionário.
Riley criticou, numa entrevista ao Build, um protesto contra a Guerra do Iraque em que os participantes se fingiam de mortos. Segundo ele, o protesto foi encenado com o propósito expresso de aumentar a “consciência” das pessoas sobre a carnificina causada pela guerra. Mas “todos sabem que a guerra é uma merda”, disse Riley, “eles só não acham que podem fazer nada a respeito. Existe, então, uma pergunta diferente que precisa ser respondida pelos artistas.” Ele acrescentou: “a arte tem lugar, mas precisa estar ligada a movimentos reais.” É essa conexão que faz com que “Sorry to Bother You” soe revolucionário.
Depois de ver o filme, eu tive dificuldades para lembrar sequer de uma representação de greve no cinema comercial – que dirá uma representação heroica como a de “Sorry to Bother You”. Embora existam outros exemplos, o único do qual consegui me lembrar sem recorrer ao Google foi “Norma Rae”, uma cinebiografia de 1979 em que Sally Field fazia o papel de Crystal Lee Sutton, que organizou uma greve bem-sucedida numa indústria têxtil do sul dos EUA.
“Sorry to Bother You” talvez tenha mais impacto que “Norma Rae” exatamente porque não é um filme “sobre” a organização de movimentos, o que poderia parecer didático ou inacessível para os públicos que não se enxergam como políticos, ou que prefeririam evitar cinebiografias numa noite de sábado. Ao embutir sua mensagem num cavalo de Troia de comédia satírica, Riley tornou a indignidade do trabalho assalariado parte do diálogo público, inclusive entre um segmento multirracial da população que tem sido excluído das narrativas midiáticas sobre o movimento progressista, embora o promovam.
O elenco com diversidade desafia o mito de que a luta de classes precisa acontecer em prejuízo dos interesses dos não brancos –uma caracterização cada vez mais popular entre os liberais que se opuseram a quebrar os bancos porque isso não vai curar o racismo, que sabotaram um “novo” New Deal afirmando que as disparidades raciais prejudicavam o original, ou que deram a entender, mesmo involuntariamente, que as recentes greves de professores nos estados de West Virginia, Arizona, Kentucky e Colorado estariam de algum modo em confronto com os interesses das pessoas não brancas. É igualmente relevante, porém, para o público branco de classe trabalhadora, para quem uma legítima “voz branca” sem preocupações também é inacessível.
Obviamente, a luta de classes é mais urgente para aqueles que estão na base da hierarquia econômica, e que por um legado do racismo são desproporcionalmente não brancos. Como explicou Terry Crews, quando lhe perguntaram por que aceitou o papel:
Me lembrou de tantas pessoas com quem cresci em Flint, Michigan. Elas tinham desistido de todos os seus sonhos, de tudo o que queriam na vida, pela segurança de trabalhar na fábrica, e isso se virou contra elas. Disseram-lhes que teriam seguro saúde pelo resto da vida, que teriam isso por toda a vida, disseram o mesmo a todo mundo: isso é para o resto da vida, pessoal. E então se passaram 15 anos. E acabou. E todos ficaram: “o que fazemos agora?”
No começo da entrevista, Crews resumiu com precisão: “esse é o filme de que não sabíamos que precisávamos.”
Hoje, quando o país está sendo liderado por um cruel megalomaníaco fortalecido por um ataque à democracia patrocinado pelas grandes empresas, que já dura décadas, a esperança parece ilusória, até mesmo inocente, e a arte política pode parecer igualmente vazia. No entanto, quando a arte se conecta aos movimentos, transforma a esperança superficial em algo que tem o peso da possibilidade: um plano.
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