Religiosos que faziam fila para entrar na audiência pública sobre descriminalização do aborto rezaram pais nossos e aves marias, em voz alta e em coro, para encobrir a voz de mulheres que tentavam citar dados de pesquisas e estudos sobre o assunto. A cena aconteceu nesta manhã, em frente ao STF, o Supremo Tribunal Federal.
As manifestantes estavam vestidas como as aias da série The Handmaid’s Tale, que retrata um futuro distópico em que mulheres perdem os direitos sobre o próprio corpo e se tornam propriedade do Estado. Na ficção, o poder é tomado por um grupo religioso totalitário. As aias, no caso, são estupradas sistematicamente para que possam engravidar. Uma vez grávidas, são mantidas numa espécie de cativeiro para não abortar. Elas usam o capuz branco com laterais compridas para sequer poderem olhar para os lados. São animais.
Uma das manifestantes, sem a fantasia, segurava um cartaz que trazia um dado da Pesquisa Nacional do Aborto, feita pela Universidade de Brasília e o Anis Instituto de Bioética em 2016: 54% das mulheres que abortam se declaram católicas. Ela tentava falar sobre isso com os religiosos, sem sucesso. “Nós estamos falando sobre dados científicos, estamos falando sobre ciência”, dizia. As rezas ficavam mais altas.
“O Estado é laico”, repetiam as mulheres, já com a voz rouca. Resposta, aos gritos: “AVE MARIA CHEIA DE GRAÇA, O SENHOR É CONVOSCO…”
Na frente do @STF_oficial, religiosos rezam pai nossos e aves marias enquanto mulheres favoráveis a descriminalização do aborto citam dados de pesquisa. #NemPresaNemMorta #PelaVidadasMulheres #ADPF442 pic.twitter.com/IKgenhdyqv
— The Intercept Brasil (@TheInterceptBr) August 6, 2018
Para mim, que estava acompanhando a cena, foi difícil segurar o aperto na garganta.
O que ocorria ali, a poucos metros do plenário onde acontecia a audiência pública que pode evitar que mulheres sejam presas por abortar – porque mulheres abortam, sendo legal ou não –, se assemelhava de um jeito assustador com o mundo fictício de The Handmaid’s Tale. Na série, que se passa num presente parecido com o nosso, ninguém percebeu que direitos de mulheres estavam prestes a ser minados. Era coisa de exagerados, histéricos.
A reza, em si, é um ato simbólico. Quando tanto nos falta o diálogo, aqueles religiosos não estavam tentando dar argumentos, expor seus pontos de vista. Eles nem ao menos queriam OUVIR o que as mulheres estavam dizendo. Como se vai conversar com uma pessoa que está rezando fervorosamente, repetindo as mesmas palavras seguidamente, em voz alta, como uma criança que coloca os dedos no ouvido para ignorar ordens dos pais?
Os religiosos que estavam sendo ouvidos na audiência foram convocados para explicar pontos de suas crenças, dar argumentos, expor por que acreditam que o aborto é, ou não, aceitável do ponto de vista espiritual ou moral. Uma das organizações mais fortes em defesa do aborto no Brasil, inclusive, são as Católicas pelo Direito de Decidir. O ato de rezar em nenhum momento se enquadra nisso. Rezar não é argumentar. Não é participar do debate.
Aquelas mulheres que tentavam falar sobre aborto também têm as suas religiões. Mais cedo, no início da manhã, elas fizeram um ato ecumênico multirreligioso. Queriam dizer que é possível ter uma crença e ao mesmo tempo defender que uma mulher que interrompe uma gravidez não precisa ser encarcerada e penalizada pela lei.
Enquanto a ministra Rosa Weber, relatora da ação, convocou cientistas, religiosos, defensores de direitos humanos e representantes de movimentos sociais diversos para serem ouvidos e exporem seus pontos de vista, esses religiosos do lado de fora do tribunal optaram pela surdez.
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