O percurso do Chile ao Brasil, de mais de 3,5 mil quilômetros, durou cerca de uma semana. O trajeto, feito de ônibus por um grupo de jovens haitianos, que cada vez mais deixam o país devido às mudanças na lei local de imigração e crise na economia, cortou todo território boliviano até a fronteira com Corumbá, no Mato Grosso do Sul. Ao desembarcarem, na procura por um táxi para entrar na cidade, foram abordados por um chileno, branco, com uma tatuagem que circulava todo o braço e que fazia sinais indicando que necessitavam de uma autorização para prosseguirem. Ele cobrou US$ 100 de cada um para resolver o problema – o sonhado carimbo em seus passaportes. O que não esperavam é o que destino deles seria uma penitenciária da cidade sul mato-grossense.
O homem, que dizia ser uma espécie de despachante, um facilitador dos processos burocráticos para a emissão de vistos, era, na verdade, um coiote. Comuns na fronteira entre o México e os Estados Unidos, os coiotes são pessoas que lucram “atravessando” estrangeiros de forma ilegal para outros países. O carimbo era falso e foi facilmente identificado pela Polícia Federal quando Jean Milando Merius, Woldy Philius, Dumarck Ketson e Julio Jules entraram no Brasil. Ao invés de encontrar seus familiares, trabalho e iniciar uma nova história no país, eles foram presos, acusados de falsificar documentos.
Saíram da prisão somente cinco meses depois, em junho, graças à iniciativa da Defensoria Pública da União, órgão que defende réus que não podem pagar por um advogado particular. Com o apoio dos defensores, entraram com um pedido de refúgio que permitiu que fossem liberados e encontrassem suas famílias no sul e sudeste do país – os passaportes, no entanto, seguem retidos pela PF.
Diáspora caribenha
Entre janeiro e junho, 1.306 haitianos passaram pelo posto da Polícia Federal de Corumbá. A presença deles tem desafiado as autoridades locais que não possuem uma estratégia nem recursos para lidar com o alto número de imigrantes.
Os haitianos se tornaram a terceira maior população de imigrantes a entrar no Brasil por Corumbá, ficando atrás apenas dos vizinhos peruanos e bolivianos – no ano passado, eles sequer estavam entre os dez primeiros da lista. De acordo com a PF, 30% dos inquéritos policiais na região tem relação com documentos falsos. O número é superior ao do tráfico de drogas, por exemplo, que totaliza 17%.
Antes mesmo de receber as solicitações de refúgio, a PF vinha insistindo em fazer o procedimento de notificação de saída que dá ao imigrante 60 dias para se regularizar ou deixar o país, segundo defensor público federal João Chaves.
Até o início de julho, ao menos 300 pessoas seguiam nessa situação, “presas” à cidade, aguardando por algum posicionamento do governo sobre seus pedidos de refúgio. A maioria deles estava espalhada por hotéis, albergues e espaços cedidos por ONGs.
Essa realidade mudou um pouco depois de um ofício encaminhado à PF pela Defensoria Pública da União exigindo informações sobre a situação dos haitianos na cidade e detalhando os seus direitos enquanto imigrantes. “É melhor proteger o haitiano do que mantê-lo retido na cidade com um prazo para ir embora”, diz o defensor público João Chaves. “Se o imigrante sabe que pode fazer a solicitação de refúgio, que é um direito que ele tem, ele não vai precisar da intermediação de um coiote.”
Desde fevereiro, seguindo a atual política, a PF prendeu apenas dois contrabandistas de imigrantes haitianos, na região.
Embora diversos haitianos tenham sido liberados pela PF para seguirem viagem, a situação ainda não está estável. “Sempre chega um novo grupo, e a gente nunca sabe quantos virão”, me disse o padre Marco Antônio Ribeiro, coordenador da Pastoral da Mobilidade Humana.
A nova lei brasileira de imigração, aprovada em 2017, no auge da crise com os venezuelanos, facilita o processo de regularização e a distribuição de vistos humanitários. Em tese, a legislação garante a esses imigrantes o direito de chegarem ao Brasil e solicitar o visto.
No entanto, uma portaria publicada pelo governo em 9 de abril criou restrições que lançaram os haitianos vindos do Chile em um limbo jurídico. O visto humanitário, segundo o texto, deve ser emitido exclusivamente pela Embaixada do Brasil em Porto Príncipe, capital do Haiti, e só teriam direito ao documento os imigrantes que chegaram ao Brasil até data da publicação da portaria. Com isso, a única alternativa legal para os haitianos que chegam sem visto é o pedido de refúgio.
Para Camila Asano, coordenadora de projetos da ONG Conectas, a portaria vai de encontro à lei, uma vez que a legislação não diz que o visto precisa ser obtido no país de origem. “Se o governo entende o sentido de um acolhimento humanitário, sem demora, deveria reeditar a portaria sobre haitianos. O que impediria nossa embaixada em Santiago de emitir um visto humanitário?”, indaga.
O trajeto
A viagem do Chile ao Brasil costuma começar pela capital Santiago, segue para Iquique, no norte do país, e ruma para território boliviano passando por Oruro, Cochabamba e Santa Cruz, até chegar a Porto Quijarro, cidade fronteiriça a Corumbá. Se o transporte for clandestino, os imigrantes sofrem com os riscos e o alto custo cobrado pelos coiotes. “Arriscamos na clandestinidade pela expectativa de uma vida melhor”, me disse um haitiano que aguardava um parecer da PF para poder seguir viagem para São Paulo.
A situação não é muito melhor se o trajeto for feito de forma legal: parte da polícia boliviana cobra propina para permitir que os haitianos sigam viagem. A cada parada nas rodoviárias da Bolívia, de acordo com relatos que ouvi em Corumbá, os agentes de segurança costumam levar os imigrantes até uma sala fechada e cobrar valores exorbitantes, em dólares, pela permissão para continuar viagem.
“Há pessoas que foram levadas e tiveram que tirar toda a roupa para provar que não tinham mais dinheiro. Teve gente que deixou mais de US$ 2 mil na estrada. Podiam viver bem aqui no Brasil, mas agora não tem mais nada”, contou um haitiano.
Quatro motivos para migrar
A entrada de imigrantes haitianos no Chile era mais fácil antes do governo de Sebastián Piñera alterar a lei de imigração, que agora exige que os haitianos solicitem visto de turista ainda no consulado em Porto Príncipe, com permanência máxima de um mês. Mais simpático aos imigrantes, o antigo governo de Michelle Bachelet permitia que solicitassem o documento ao chegarem ao país e dava aos haitianos três meses. Neste ínterim, eles também podiam requisitar o visto de trabalho – condição proibida pelo atual governo. Nos últimos anos, 100 mil haitianos chegaram ao Chile.
A situação fortaleceu um esquema de venda de contratos falsos de trabalho promovido por coiotes. Os valores variavam de US$ 120 a US$ 500. Sem dinheiro, muitos haitianos se endividavam e acabavam aceitando subempregos. A solução era imigrar novamente.
Outro problema é o racismo. No Chile, contam os haitianos com que conversei em Corumbá, eles são hostilizados no transporte público e, quando não possuem documentos, são ameaçados. Há casos até de espancamento. O frio também coloca em xeque a estadia dos imigrantes no país. Em junho do ano passado um haitiano morreu de hipotermia em sua casa – um galpão sem estrutura fornecido pelo empregador que contratou ele e outros imigrantes para colher frutas –, em Pudahuel, no norte de Santiago.
Além disso, o Brasil também se tornou uma opção de reencontro familiar. De 2010 a 2017, de acordo com dados da Polícia Federal e do Diagnóstico Regional Sobre Migración Haitiana, do Instituto de Políticas Públicas en Derechos Humanos del Mercosur, logo após o terremoto que devastou o país caribenho, cerca de 100 mil haitianos cruzaram as fronteiras brasileiras.
Há ainda uma última questão: a falta de empregos. Antes um dos países mais prósperos do continentes, o Chile hoje também sofre com a crise econômica que atingiu a América Latina. Aqueles que conseguiram trabalhar e juntar dinheiro usam suas economias para partir. Os desempregados e sem recursos por vezes contam com a ajuda de familiares para sair do país, situação similar a dos jovens presos na fronteira. As informações sobre as rotas e possibilidades de viagem se espalham via WhatsApp. Além disso, agências de turismo clandestinas oferecem a viagem ou a venda de informações de trajeto – ao embarcarem eles ficam à mercê dos coiotes até o destino final.
* O repórter Leandro Barbosa viajou a convite da Defensoria Pública da União como parte da Ação Global para Prevenir e Combater o Tráfico de Pessoas e Contrabando de Imigrantes, iniciativa conjunta da União Europeia e do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes.
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