Mauricio Oviedo Soto tinha seis anos quando um juiz da comarca de Milwaukee, no estado do Wisconsin, reconheceu oficialmente a sua adoção. Com uma canetada, ele passou a se chamar Mauricio Cappelli, o sobrenome de seu novo pai americano.
Quase 32 anos depois, no dia 12 de março de 2018, Cappelli desembarcou de um voo comercial no Aeroporto Internacional Juan Santamaría, em San José, capital da Costa Rica, sua terra natal. Ele ainda estava tentando processar o que acontecera nas últimas 24 horas: pela manhã, na cela de um centro de detenção de imigrantes no sul do Texas, Cappelli foi informado por policiais de que seria deportado naquele mesmo dia – pela segunda vez na vida – para o país onde nascera.
“Eles entraram na cela e mandaram que eu arrumasse logo minhas coisas. Embarquei no avião com a roupa da prisão”, conta Cappelli ao Intercept, por telefone, da Costa Rica.
Cappelli já havia nascido quando sua mãe, Yamileth Oviedo Soto, conheceu Kurt Cappelli na Costa Rica, em setembro de 1980. Na época, Kurt Cappelli tinha um contrato de um ano para trabalhar em San José como engenheiro de produtos, e os dois acabaram se apaixonando. Quando Mauricio tinha um ano e quatro meses, em maio de 1981, Yamileth o levou ao Wisconsin para morar com Kurt. Dois meses depois, eles se casaram na cidade de Milwaukee.
Mauricio teve uma infância típica dos subúrbios de classe média do Meio-Oeste dos EUA. Foi lobinho dos escoteiros, jogava beisebol em ligas infantis locais e adorava atividades ao ar livre. Dos três filhos de Cappelli, ele era o único adotivo, mas era tão americano quanto os irmãos – pelo menos é o que todos pensavam. Ele tinha documento de identidade e um certificado chamado Certification of Birth Facts, uma espécie de certidão de nascimento para crianças nascidas no exterior, emitida pelo estado do Wisconsin.
Como Cappelli, agora com 38 anos, acabou detido em um centro de detenção do serviço de imigração dos EUA é uma história que só poderia acontecer em um sistema arcaico, que, até a virada do século, não concedia automaticamente a cidadania americana a crianças estrangeiras adotadas por americanos. Segundo os autores do Child Citizenship Act (“Lei de Cidadania para Crianças”, em tradução livre), aprovado no Congresso no ano 2000, essa lei naturalizou 140 mil crianças adotadas. Mas quem tinha mais de 18 anos ficou de fora. Segundo a Adoptee Rights Campaign (“Campanha pelos Direitos dos Adotados”, em português), essa ressalva – uma concessão política para atrair o apoio do Partido Republicano – excluiu de 25 a 49 mil filhos adotivos em todo o país.
Durante seis meses, o Intercept entrevistou mais de 25 pessoas que foram adotadas na infância por cidadãos americanos mas continuam sem cidadania – às vezes mais de 40 ou 50 anos depois. Algumas delas não moram mais nos EUA, pois sua condição lhes proíbe de entrar no país. Outras vivem constantemente com medo da deportação. A maioria tem residência permanente, um status nebuloso previsto na legislação de imigração americana que pode ser revogado se a pessoa cometer um crime que se enquadre numa ampla lista de “delitos graves” não violentos, como furto a residência ou venda de drogas.
Muitas das pessoas contactadas se recusaram a dar entrevista por medo de consequências negativas para sua vida pessoal ou profissional, mas Cappelli e outros filhos adotivos aceitaram falar. Diversos grupos estão há meses pressionando os membros do Congresso pela aprovação do Adoptee Citizenship Act (“Lei de Cidadania para Adotados”, em tradução livre), um projeto de lei apresentado no segundo trimestre deste ano que prevê a concessão de cidadania às pessoas excluídas do Child Citizenship Act.
As histórias desses americanos adotados revelam a incompetência generalizada dentro de certos órgãos federais e estaduais, além de uma lastimável falta de comunicação entre o Departamento de Estado e o Serviço de Cidadania e Imigração (USCIS). Em todos os casos apurados pela reportagem, as pessoas só ficaram sabendo que não eram cidadãos americanos muito depois dos 18 anos de idade – o prazo máximo para a naturalização dos filhos. Um número surpreendentemente grande de crianças teve o pedido de naturalização negado devido à falta de um único documento – um certificado de cidadania conhecido como “Formulário N-600” – que seus pais adotivos não puderam apresentar a tempo.
O caminho até o Centro de Detenção do Condado de Webb, nos arredores de Laredo – uma cidade texana como tantas outras, de médio porte, na fronteira com o México –, vai serpenteando ao longo de centros comerciais e outdoors com anúncios de clubes de tiro e advogados especializados em imigração. Saindo da Rodovia 83, o visitante tem que seguir por uma estrada vicinal sem nenhuma sinalização – como se por ali não existisse um enorme complexo de detenção de imigrantes.
Durante minha visita, no início de março, conversei com o detento nº A02444709 – Mauricio Cappelli. Ele havia sido transferido um dia antes do Centro de Detenção Rio Grande, outra instalação do mesmo complexo. Cappelli ficou pouco menos de 19 meses em Rio Grande, que ele descreve como um enorme dormitório compartilhado com até 80 outros detentos. Em uma sala de equipamentos que também servia de escritório, em meio a papéis espalhados e pilhas de algemas, Cappelli contou a vida dele para mim.
Sua história começa aos 19 anos, quando ele abandonou o conforto do lar da sua infância para morar sozinho. Sem ter frequentado uma faculdade, Cappelli começou a trabalhar na construção civil e em fábricas. “Eu trabalhava, mas não tinha um norte. Passei a andar em más companhias, a beber muito e a usar drogas”, diz ele, com um sotaque típico de Milwaukee. Certa noite, em março de 2008, Cappelli – que já tinha um histórico de pequenos delitos – se encontrou com um amigo em um posto de gasolina no subúrbio de Milwaukee para fechar uma venda de drogas. A polícia chegou e encontrou 40 gramas de cocaína em poder de Cappelli, uma quantidade suficiente para caracterizar o crime de tráfico de drogas, segundo a lei do estado do Wisconsin. Como ele não tinha um histórico de crimes violentos, a promotoria propôs um acordo a Cappelli: quatro anos de cadeia e mais três de condicional. Ele aceitou e se declarou culpado da acusação de posse de entorpecentes. “Eu não queria mais fugir de mim mesmo e resolvi aceitar as consequências. Eu queria mudar minha vida para melhor”, explica.
Dois meses após a condenação, ele recebeu uma ligação do USCIS. A pessoa do outro lado da linha disse que precisava falar com Cappelli porque ele havia nascido no exterior – um procedimento padrão – e quis saber qual era a sua situação legal nos EUA. “Falei para ele que havia nascido na Costa Rica, mas tinha uma carteira de motorista, um documento de identidade e uma certidão de nascimento. Alguns minutos de conversa depois, ele disse que estava tudo em ordem e desligou”, relembra. Cappelli estranhou a ligação, mas não pensou mais no assunto. (Em um comunicado, um porta-voz do USCIS se recusou a comentar o caso de Cappelli por questões legais relativas à privacidade.)
Depois de um ano atrás das grades, graças a um comportamento exemplar, Cappelli pôde sair da prisão depois de participar um programa de transição com duração de seis meses. O Departamento Correcional do Wisconsin não quis declarar nada sobre seu ex-detento, limitando-se a repetir o conteúdo de uma carta de recomendação escrita pelo agente da condicional, que afirmava que o Capelli era um réu responsável, que comparecia a todas as visitas marcadas e atendia a todos os requisitos da lei estadual.
Depois de solto, Cappelli passou os cinco anos e meio seguintes em liberdade condicional, reconstruindo sua vida. Ele fez um curso de tecnólogo em uma faculdade comunitária local e conseguiu um emprego em período integral através de um programa de formação de aprendizes. “Mauricio era um modelo para o governo mostrar que ex-presidiários podiam ser reinseridos na sociedade. Ele estava começando a seguir em frente, deixando para trás aqueles problemas todos”, diz Kurt Cappelli, seu pai adotivo.
Quando o período de liberdade condicional terminou, em março de 2015, Cappelli decidiu realizar um objetivo que havia estabelecido ainda na prisão: viajar para a Costa Rica – a sua primeira viagem para fora dos EUA – e visitar os túmulos do tio e da avó, que haviam morrido quando ele estava preso. Então ele deu entrada no USCIS para tirar o passaporte, apresentando a carteira de identidade, a certidão de nascimento especial emitida pelo estado do Wisconsin e a carteira de motorista. O USCIS pediu mais documentos, mas não informou a Cappelli que ele não tinha cidadania americana. Para ele, aquilo era uma mera formalidade. Mesmo assim, intimidado pela burocracia do USCIS – em alguns casos, a emissão do passaporte pode demorar até um ano –, Cappelli optou pela saída mais fácil: ele foi até o consulado da Costa Rica em Chicago, a 145km de Milwaukee, e tirou um passaporte costarriquenho em duas semanas.
Em maio daquele ano, Cappelli passou 10 dias na Costa Rica com seus familiares, muitos dos quais ele nem conhecia. Tendo visitado o túmulo dos parentes falecidos, ele estava pronto para voltar para casa. Mas ele não voltaria a pisar no Wisconsin. Ao fazer conexão em Atlanta, ele foi parado por um agente da imigração, que quis saber por que, sendo cidadão americano, ele havia entrado nos EUA com um passaporte costarriquenho. Cappelli lhe mostrou sua identidade e certidão de nascimento. Horas depois, outro agente disse a Cappelli que seus pais não haviam pedido a sua naturalização, e que, devido a sua ficha criminal, ele seria detido. Aos 34 anos de idade, pela primeira vez na vida alguém lhe dizia que ele não era cidadão americano, e sim um “estrangeiro passível de deportação”.
“Aquilo me deixou atônito. Eu achava que tudo não passava de um mal-entendido”, conta Kurt Cappelli, referindo-se ao telefonema de Mauricio, feito de uma prisão de Atlanta.
Então ele traçou um plano. A poucas semanas da audiência que decidiria o destino de seu filho, Kurt passaria cada hora do dia preparando a sua defesa. Ele ligou para o escritório de todos os membros da bancada do Wisconsin no Congresso – inclusive para o de Paul Ryan, presidente da Câmara. Kurt também conseguiu cartas de recomendação do agente da condicional de Mauricio e de pessoas que o haviam acompanhado e orientado depois da prisão.
No dia 22 de junho, um dia antes da audiência, a família Cappelli pegou o carro e percorreu cerca de 1.300km até Atlanta. A sessão durou apenas alguns minutos: o juiz revogou a autorização de residência e determinou a deportação de Mauricio devido a seus antecedentes criminais. Porém, em vez do fim, esse foi apenas o início das tribulações de Cappelli em sua perigosa luta para voltar para casa a qualquer preço.
De 1945 a 1998, entraram nos Estados Unidos 245.509 pessoas adotadas no exterior, segundo um relatório da Adoptee Rights Campaign, disponibilizado para o Congresso americano no segundo trimestre deste ano. Antes da aprovação do Child Citizenship Act, no ano 2000, não existia nenhum mecanismo de concessão automática de cidadania nos Estados Unidos. Os pais tinham que adotar os próprios filhos novamente, dessa vez nos EUA, e solicitar a naturalização, um processo caro e complexo que durava anos.
“Aquela época era como o Velho Oeste. A adoção não estava no radar do governo”, diz C.J. Lyford, um advogado da Pensilvânia especializado em adoções internacionais.
Isso mudou quando o Congresso aprovou o Child Citizenship Act, em grande parte graças ao republicano Bill Delahunt, então deputado pelo estado de Massachusetts. Segundo os autores da lei, 140 mil crianças adotadas no exterior receberam a cidadania americana em um dia. Contudo, pouco se discutiu o impacto que a exclusão das pessoas com mais de 18 anos – caso de Cappelli – teria na vida de milhares de filhos adotivos nos Estados Unidos.
Excluídos pela lei e tendo descoberto de repente que não eram cidadãos americanos, alguns foram deportados, e os que permaneceram passaram a viver nas sombras, apreensivos. “Nunca tinha imaginado que um dia eu viveria com medo”, conta Sara (nome fictício), uma ativista adotada no exterior quando criança e agora residente ilegal na Califórnia. “Você cresce achando que é americana e se sente segura. É uma sensação reconfortante. Sou tão americana quanto a torta de maçã”, diz.
Sara foi adotada em um orfanato iraniano no início de 1972. Ela entrou nos EUA com um visto de turista com validade de seis meses, em setembro de 1973. Seus pais adotivos, ambos americanos, consumaram a adoção nos Estados Unidos em junho de 1974. Depois de uma “infância normal” em um subúrbio de classe média de Los Angeles, Sara conseguiu um emprego em uma grande empresa americana. Aos 38 anos, quando finalmente terminou de pagar seu empréstimo estudantil – que ela só pôde fazer porque tinha uma carteira de identidade –, Sara quis viajar e deu entrada no passaporte. O pedido foi negado. Ela quis saber o motivo, sendo informada pelo USCIS que seus pais não haviam apresentado o formulário N-600 quando ela era menor de idade e que, por conta disso, ela não era cidadã americana. Sara apresentou o formulário em fevereiro de 2008, mas, em outubro, seu pedido de naturalização foi negado.
“Basicamente, o que eles disseram foi que eu estava morando ilegalmente nos EUA, com um visto de turista vencido havia 34 anos. Consultei um advogado, e ele disse que eu podia ser deportada”, conta. Com exceção de familiares e alguns amigos, ninguém mais está a par da situação de Sara. Na última década, tendo testemunhado os constantes ataques de políticos contra imigrantes, Sara diz sentir-se na obrigação de defender os milhares de filhos adotivos que, como ela, vivem com o medo constante da deportação. “Fui obrigada a viver como uma fugitiva”, diz ela, com lágrimas nos olhos. “Muitos adotados são como eu, filhos de ex-militares que se sacrificaram por este país. Mas agora esse mesmo país está querendo deportá-los”, queixa-se.
Sara foi ao Capitólio para contar sua história a democratas e republicanos. No ano passado, ela fez campanha pela aprovação do Adoptee Citizenship Act, o que lhe conferiria a nacionalidade americana.
As histórias de Cappelli e Sara diferem nos detalhes, mas ambas foram causadas por fatalidades. No caso de Cappelli, o que o prejudicou foi o mau aconselhamento jurídico do advogado de família que orientou a adoção, somado à omissão do USCIS depois da ligação recebida quando estava preso. No caso de Sara, foi a falta de comunicação entre o USCIS e o Departamento de Estado que fez com que seus pais não soubessem da necessidade do formulário N-600 para naturalizá-la.
Não havia nenhum mecanismo para consertar os erros do sistema. Não havia ninguém a quem recorrer quando eles descobriram, já adultos, que não eram cidadãos dos EUA. Adotados quando crianças, pessoas como Cappelli e Sara nunca tiveram contato com outro país. Eles cresceram pensando que eram tão americanos quanto seus familiares e amigos.
É difícil ter uma ideia exata do número de filhos adotivos nessa situação nos EUA. O relatório da Adoptee Rights Campaign é o primeiro estudo detalhado sobre o tema. A pesquisa revelou que o número de crianças estrangeiras adotadas por cidadãos americanos de 1999 a 2016 foi de 267.098. À medida que elas vão chegando à idade adulta – se a proporção de pais adotivos que não apresentaram a documentação necessária se mantiver –, estima-se que, até o ano 2033, entre 32 e 64 mil ficarão sem a cidadania americana. Seria um forte aumento em relação ao número de adotados que ficaram de fora do Child Citizenship Act no ano 2000.
“É uma questão de direitos fundamentais das crianças americanas”, diz Anne Montgomery, pesquisadora da Adoptee Rights Campaign e uma das autoras do relatório. “Será que todos os filhos de cidadãos americanos têm os mesmos direitos, privilégios e salvaguardas? Sim ou não? Atualmente, a resposta é não. Isso é aceitável numa democracia?”, questiona.
Hoje em dia, os estrangeiros adotados se encaixam em duas categorias: aqueles que entram nos EUA com vistos que dão acesso aos mecanismos de concessão automática da nacionalidade previstos no Child Citizenship Act, e aqueles que entram no país com outros vistos. O segundo grupo – que não tem direito à cidadania – inclui os vistos de imigração com base em adoções não consumadas. Nesses casos, os pais precisam adotar novamente a criança e finalizar o processo de adoção nos Estados Unidos. Se, por algum motivo, isso não for feito até a criança completar 18 anos, ela será considerada residente permanente no país, mas não como cidadã.
“O USCIS e o Departamento de Estado coordenam cuidadosamente seus procedimentos de comunicação, a fim de desempenharem suas respectivas funções no processo de adoções internacionais”, afirma ao Intercept um porta-voz do USCIS em um comunicado. “O USCIS e o Departamento de Estado determinam se uma criança adotada tem o direito de imigrar para os Estados Unidos conforme a lei americana”, diz ainda a declaração.
Para os defensores da causa dos adotados, porém, é injusto responsabilizar os filhos pelo incumprimento de requisitos burocráticos por parte dos pais adotivos. “Eles não têm culpa”, afirma Adam Pertman, autor do livro Adoption Nation (“Nação da Adoção”, em tradução livre) e presidente do National Center on Adoption and Permanency (“Centro Nacional de Adoção e Permanência”, em português). “É um absurdo e uma injustiça que essas pessoas sejam punidas pela negligência de seus responsáveis”, diz.
A polarização da política atual em torno da questão da imigração é um risco para os defensores dessa causa. Segundo Pertman, o Congresso poderia acabar colocando as crianças adotadas no exterior na mesma categoria dos dreamers beneficiados pela política de “Ação Diferida para Chegadas na Infância” (DACA, na sigla em inglês), por exemplo. “Não se trata de uma questão de imigração”, afirma Pertman, que foi indicado para o Prêmio Pulitzer por uma série de reportagens sobre adoção, publicadas no Boston Globe em março de 1998. Ele diz que o problema vem em grande parte do preconceito e do estigma contra a prática da adoção na sociedade americana. Afinal, quando um cidadão dos EUA tem um filho no exterior, lembra Pertman, a criança recebe automaticamente a cidadania americana.
Para o ex-deputado federal Bill Delahunt, a adoção é uma questão extremamente pessoal. Ele e a esposa adotaram uma menina vietnamita, em 1975. Ela foi trazida para os EUA durante a Operação Babylift, depois da Guerra do Vietnã. Em entrevista para o Intercept, Delahunt diz que tomou consciência do estigma da adoção quando o governo lhe informou que sua filha não era americana. “Para mim aquilo era um insulto e uma desvalorização dela como ser humano. Tivemos que passar pelo processo de naturalização, que era caro e demorado”, recorda.
Delahunt diz “lamentar profundamente” que o Child Citizenship Act tenha deixado tantos filhos adotivos em situação vulnerável. Ele tem pressionado o Congresso pela aprovação do Adoptee Citizenship Act, apresentado no dia 8 de março. O projeto de lei, que conta com um raro apoio bipartidário, concede cidadania automática aos excluídos pelo Child Citizenship Act.
Segundo assessores do Congresso, o Adoptee Citizenship Act já conta com o apoio de 46 deputados e senadores. Corey Booker, senador pelo estado de Nova Jersey e cotado para disputar a presidência em 2020, é um deles.
“Crianças estrangeiras adotadas por americanos e criadas como americanas deveriam ter os mesmos direitos de cidadania que os filhos biológicos”, diz Mazie Hirono, senadora pelo Havaí, que também apoia o projeto de lei. “Essa lei vai trazer alívio e justiça para milhares de americanos que haviam sido injustiçados por uma brecha legal imprevista”, acredita.
Entretanto, um assessor do Partido Democrata – que pediu anonimato por não ter sido autorizado a falar publicamente – diz que ainda há muitos obstáculos para a aprovação do Adoptee Citizenship Act, pois o projeto está sendo tratado como uma questão de imigração por muitos republicanos. Por outro lado, em abril, o projeto recebeu o apoio mais que bem-vindo da Evangelical Immigration Table, um grupo religioso. “Acreditamos firmemente que esses filhos adotivos, americanos em tudo menos perante a lei, deveriam adquirir os direitos e salvaguardas inerentes à cidadania americana”, escreveram os líderes da entidade.
Apesar disso, o projeto de lei não deixa de ser ambíguo: o texto prevê a exclusão de qualquer indivíduo que tenha sido deportado ou cometido um crime violento anteriormente. Não se sabe, por exemplo, se Cappelli seria beneficiado.
Mauricio Cappelli aterrissou em San José no fim de julho de 2015. Ele havia recebido da prisão em Atlanta um cheque de 300 dólares – que ele não podia compensar por não ter uma conta costarriquenha. Ele não falava espanhol, e seus familiares, que moram a três horas da capital, não tinham condições financeiras de cuidar dele. Depois de um tempo na casa de um primo, ele acabou indo morar sozinho em um apartamento minúsculo e escuro. “Entrei em depressão profunda e comecei a perder peso”, conta Cappelli. “Eu me sentia muito injustiçado. Como é possível passarem a vida toda dizendo que alguém é americano, para depois expulsá-lo do próprio país aos 35 anos?”, revolta-se.
Com o tempo, Cappelli foi ficando cada vez mais desesperado. Ele adoeceu, mas não tinha plano de saúde para se tratar. Incapaz de conseguir um emprego, vivia das remessas esporádicas que sua família lhe enviava do Wisconsin. Ele só fazia uma refeição por dia. “Todo dia era uma luta. Era como viver em uma cela gigante”, relembra.
Procurando ajuda na internet, Cappelli descobriu a Adoptee Rights Campaign, uma organização sem fins lucrativos que defende os direitos dos filhos adotados fora dos Estados Unidos. Ao ficar sabendo que o grupo estava pressionando o Congresso pela aprovação do Adoptee Citizenship Act, ele entrou em contato por e-mail e pediu para o pai acompanhar as atividades da organização.
“O caso de Mauricio é um exemplo drástico das dificuldades enfrentadas pelos americanos adotados no exterior. Somos uma população vulnerável, sem nenhuma proteção”, diz Joy Alessi, diretora da Adoptee Rights Campaign.
Cappelli recobrou o ânimo ao descobrir que havia um grupo de pessoas nos EUA lutando por pessoas como ele. Apesar disso, temia não sobreviver por muito mais tempo sozinho na Costa Rica. Em junho de 2016, depois de oito meses no país centro-americano, ele decidiu tentar voltar aos Estados Unidos. Ao fazer conexão na Cidade do México, ele foi interrogado pelas autoridades. Os mexicanos também acharam estranho que alguém com um passaporte costarriquenho não falasse uma palavra de espanhol. Após uma rápida busca no sistema compartilhado entre os serviços de imigração mexicano e americano, eles descobriram que Cappelli havia sido deportado dos EUA havia menos de um ano. Ele foi mandado de volta para Costa Rica na mesma noite.
Mas Cappelli tinha um plano B. Ele ligou para um amigo no Wisconsin que tinha parentes no sul do Texas que poderiam ajudá-lo – financeira e logisticamente – a atravessar a fronteira a pé. O tal amigo, que se recusou várias vezes a falar com o Intercept, preparou a viagem. Cappelli apresentou uma série de documentos para demonstrar a veracidade de suas tribulações jurídicas, mas essa segunda viagem pela América Central e México não pôde ser checada pela reportagem porque as redes a que os imigrantes ilegais precisam recorrer para entrar nos EUA, devido à sua natureza clandestina, são inacessíveis para a imprensa.
No início de agosto de 2016, Cappelli saiu da Costa Rica. Ele pegou um ônibus em San José e atravessou Nicarágua, Honduras, El Salvador e Guatemala. Em cada fronteira, os passageiros eram obrigados a mostrar seus passaportes. Cappelli passou despercebido em todas elas. Ao chegar na fronteira da Guatemala com o México, porém, ele afirma que os agentes de imigração mexicanos não o deixaram passar. No mesmo local, ele conheceu um grupo de passadores que, por uma quantia em dinheiro, levaram-no para as margens do rio Suchiate, na divisa dos dois países.
“Eles colocaram a mim e a não sei mais quantas pessoas em câmaras de pneu para atravessar o rio”, relembra Cappelli.
Na manhã seguinte, depois de ter passado a noite em um hotel na cidade fronteiriça de Tapachula, Cappelli pegou uma série de ônibus, passando pela Cidade do México, Monterrey e chegando a Reynosa, na fronteira com os EUA. Três dias depois, Cappelli afirma ter sido orientado pelo amigo do Wisconsin a voltar a Monterrey. Naquela noite, uma van foi buscá-lo no estacionamento do hotel para levá-lo a um abrigo secreto junto à fronteira.
Dentro da casa havia grupos de 10 a 15 migrantes, segundo Cappelli. Alguns o acusaram de ser um agente secreto da DEA, a agência antidrogas dos EUA. Eles gritavam com Cappelli, que tinha pele clara e não parecia costarriquenho, apesar do passaporte. “Eles me cercaram. Tive medo de morrer naquela noite, mas alguém acabou ficando com pena de mim e me defendeu, então me deixaram em paz”, conta.
Algumas horas depois, na calada da noite, um guia levou os migrantes em pequenas embarcações para a outra margem do lago Falcon, um grande espelho d’água na fronteira do México com o Texas. Eles desembarcaram e caminharam durante duas horas – até avistarem os faróis de um caminhão.
“O guia e alguns outros saíram correndo imediatamente. Eu estava muito doente e cansado naquela ocasião, então resolvi ficar e me entregar aos agentes da Patrulha de Fronteira”, conta Cappelli.
Depois de três dias em uma delegacia de fronteira, dormindo no chão ao lado de mais de 10 outros imigrantes, os policiais levaram Cappelli para o Centro de Detenção Rio Grande, a duas horas e meia ao norte dali, nos arredores de Laredo. Ele foi acusado entrar ilegalmente nos Estados Unidos.
“Trabalho com isso há muito tempo, mas nunca tinha visto um caso como esse”, diz Marc Gonzalez, um advogado de Laredo que assumiu o caso de Cappelli. “Um filho adotivo que passou a vida inteira neste país agora está preso em um centro de detenção de imigrantes. Isso abriu meus olhos”, afirma.
O juiz do caso se sensibilizou com o sofrimento de Cappelli, adiando o julgamento e permitindo que ele solicitasse a cidadania americana. Segundo Gonzalez, em circunstâncias normais, um imigrante fica algumas semanas no Centro de Detenção Rio Grande. Cappelli ficou 19 meses. Porém, em dezembro de 2017, o USCIS rejeitou o seu pedido de naturalização, alegando que seus pais não haviam apresentado o formulário N-600 quando ele ainda era menor de idade. Cappelli recorreu.
Enquanto o recurso esperava a apreciação de um sobrecarregado USCIS, o governo retirou a acusação de entrada ilegal no território, em fevereiro de 2018. O motivo não foi revelado, mas Gonzalez acha que a promotoria deve ter percebido que um julgamento seria inútil, visto que Cappelli já havia cumprido a quase totalidade da pena no centro de detenção. Sem julgamento, o caminho ficava livre para uma rápida deportação.
Um porta-voz do Serviço de Imigração disse ao Intercept que Cappelli foi deportado por ter “violado a lei de imigração”, mas se recusou a entrar em detalhes. Quando perguntado quantas pessoas adotadas no exterior são deportadas anualmente, o porta-voz disse que o órgão “não dispõe dessa informação”.
O recurso, seguindo o protocolo, foi encaminhado para o Departamento de Apelações Adminstrativas, uma seção do USCIS dedicada à avaliação de recursos contra as decisões do órgão. Em média, o tempo de espera por uma decisão é de seis meses, segundo o site do USCIS.
Os defensores de Cappelli, dentre os quais alguns deputados e senadores, ainda têm esperanças de que a história tenha um desfecho positivo. “Vamos acompanhar o andamento do processo, e espero ter um retorno positivo do USCIS, para que ele possa voltar para Milwaukee e seus familiares o quanto antes”, diz a deputada Gwen Moore, da bancada democrata do Wisconsin, em uma declaração ao Intercept.
Enquanto aguarda a decisão final do USCIS na casa de uma tia, em uma cidade afastada da capital da Costa Rica, perto da divisa com o Panamá, Cappelli, que está desempregado, afirma passar os dias pesquisando o que poderia fazer para ajudar a si mesmo e a outros na mesma situação.
De 2015 para cá, Kurt Cappelli diz ter gastado mais de 10 mil dólares e passado milhares de horas tentando trazer o filho para casa, atormentado pela culpa de um simples erro – não ter apresentado toda a documentação necessária para a naturalização de Mauricio. “É angustiante”, descreve. “Mas, enquanto houver a possibilidade de trazê-lo para casa, tenho que manter as esperanças”, diz.
Tradução: Bernardo Tonasse
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