Luís Felipe Manvailer espancou Tatiane Spitzner no carro, na garagem, no elevador, até ela despencar do quarto andar do prédio onde moravam. Se foi empurrada, morta ou viva, ou pulou em desespero pouco importa: foi assassinato. Anderson da Silva contou ter asfixiado Simone da Silva na frente do filho deles, de três anos. Ao matá-la, ele sabia que ela estava grávida.
A Justiça decretou a prisão de Pedro Paulo Barros Pereira, suspeito de ser o mandante da execução de Karina Garofalo, baleada diante de um menino de 11 anos, filho de ambos (“Papai mandou matar mamãe”, teria dito o garoto). Altamiro Lopes dos Santos agrediu até a morte Patrícia Mitie Koike. Rodrigo Bessa Paixão foi preso pela suspeita de ser o autor dos três disparos que tiraram a vida de Natasha Conceição Fonseca da Silva. Duas vezes Natasha prestara queixa de Rodrigo, por agressão e ameaça.
Na cidade paranaense de Guarapuava, no complexo do Alemão, na Barra da Tijuca, em Nova Iguaçu e Jacarepaguá, os suspeitos, acusados ou assassinos confessos eram marido, ex-marido, namorado ou ex-namorado das mulheres mortas. O gênero das vítimas foi determinante para os crimes, todos deste ano. Por isso, a tipificação apropriada é feminicídio.
De 2016 para 2017, os episódios de feminicídio subiram 22% (929 para 1.133), embora persistam resistências à aplicação da norma sancionada em 2015 por Dilma Rousseff. Os registros de violência doméstica somam anualmente 221.238, ou 606 por dia. No aniversário de 12 anos da Lei Maria da Penha, Brasília despertou com mais dois feminicídios.
A Lei 13.104 alterou o Código Penal e introduziu o feminicídio “no rol dos crimes hediondos”. Definiu-o como delito “contra a mulher por razões da condição do sexo feminino”. Decorre de “violência doméstica e familiar”, de “menosprezo ou discriminação à condição da mulher”. A pena é dez anos maior do que a de homicídio. A taxa de feminicídio no Brasil é a quinta mais alta do mundo.
“Nós temos que acabar com o mimimi, acabar com essa história de feminicídio”, declarou Jair Bolsonaro no ano passado. No começo do mês, o deputado falou: “Se uma pessoa matar o meu pai ou a minha mãe, eu vou me sentir triste de qualquer maneira”; “não tem que ter Lei do Feminicídio”. O candidato a presidente omitiu que o padrão é companheiro matar companheira, e não o contrário.
No jornalismo, há quem teime em chamar de “crime passional” o que é feminicídio. Paixão e amor são uma coisa. Ódio, outra. Quem ama não mata.
Mentira tem pernas curtas
Na sexta-feira, no debate da RedeTV!, Bolsonaro perguntou a Marina Silva sobre posse de armas de fogo – para não esquecer o tema, ele consultou uma cola anotada na palma da mão esquerda. A ex-senadora mudou o rumo da prosa. Disse que o adversário desconhece “o que significa uma mulher ganhar um salário menor do que um homem e ter as mesmas capacidades, a mesma competência e ser a primeira a ser demitida, ser a última a ser promovida”.
O concorrente do PSL contra-atacou: “Temos aqui uma evangélica que defende o plebiscito para aborto e para maconha”. A candidata da Rede viveu seu momento mais glorioso na campanha até agora: “Você acha que pode resolver tudo no grito, na violência”; “você um dia desses pegou a mãozinha de uma criança e ensinou como se faz para atirar”.
Bolsonaro encarou Henrique Meirelles. O candidato do MDB indagou sobre desigualdade salarial entre mão de obra feminina e masculina. O deputado engrossou: “É mentira que eu defendi em qualquer época da minha vida que mulher deve ganhar menos do que homem! É mentira! Não existe um só áudio, uma só imagem minha nesse sentido”.
Bastou uma visita ao YouTube para assistir ao que Bolsonaro descartara como mentira. No programa Superpop, ele se abriu: “A mulher, por ter um direito trabalhista a mais, no caso a licença gestante [maternidade], o empregador prefere contratar homem […]. Muitas vezes, por ser mulher, prefere dar um emprego ganhando menos”. A apresentadora Luciana Gimenez questionou: “O que você acha?” Ele respondeu: “Eu não empregaria com o mesmo salário”.
O repórter José Roberto de Toledo conferiu o programa de governo de Bolsonaro e descobriu: a palavra “mulher” é mencionada uma vez. “Deus”, 82.
Rogando pela morte de Dilma
No Brasil que o veterano capitão pretende administrar, o desemprego entre os homens é de 11%; entre as mulheres, de 14,2%. O de pretos alcança 15%, e o de brancos permanece aquém dos 10%. A mulher negra é a mais afetada pela falta de ocupação. Nem um terço das crianças até três anos têm acesso a creches, sobrecarregando muito mais as mães do que os pais.
A Agência Nacional de Cinema divulgou que três em cada quatro dos 142 longas-metragens nacionais que estrearam comercialmente em 2016 foram dirigidos por homens brancos, e nenhum por cineasta negra. Em junho se soube que uma mulher pobre, Janaína Aparecida Quirino, fora submetida a laqueadura por determinação judicial. Não havia diagnóstico clínico que respaldasse a ordem.
A Polícia Militar do Paraná instituiu o critério de “masculinidade” num edital para 16 vagas de cadetes. Explicou o quesito como “capacidade do indivíduo de não se impressionar com cenas violentas, não se emocionar facilmente, tampouco demonstrar interesse em histórias românticas e de amor”. Depois da grita, a PM reformulou o edital. De vez em quando eu, que me delicio com comédias românticas, choro vendo filmes; devo ser fraco em matéria de “masculinidade”.
Para contornar a obrigação de encaminhar ao menos 30% do fundo eleitoral para as mulheres, partidos as escalam como suplentes de candidatos homens ao Senado, contabilizando o dinheiro que se destina aos postulantes titulares. No “Roda Viva”, Manuela D’Ávila foi interrompida no mínimo 40 vezes pelos entrevistadores. Ciro Gomes, oito. Guilherme Boulos, nove. A deputada vestia uma camiseta com a inscrição “Lute como uma garota”.
Bolsonaro praguejou, em 2015, sobre o mandato da então presidente: “Eu espero que acabe hoje, [com ela] infartada ou com câncer, [de] qualquer maneira”.
No passado recente, Dilma tinha pelejado contra o câncer.
‘Ideologia mata!’
As mulheres vão à luta contra a injustiça e a covardia. No campus de Belém da Universidade Federal Rural da Amazônia, estudantes protestaram contra colegas que disseminaram por WhatsApp mensagens misóginas, homofóbicas e racistas. Um dos interlocutores incitou, aparentemente em referência a uma aluna: “Bora logo meter o estupro”. Outro emendou: “Estupro não, sexo surpresa”.
Na quinta-feira, secundaristas da rede carioca de colégios Pensi denunciaram no Twitter assédio sexual cometido por diretores, professores e inspetores (#AssédioÉHábitoNoPensi). Elas relataram comentários, cantadas, carícias, abraços, toques – um conjunto de abordagens não consentidas e intimidadoras, portanto abusivas. A gota d’água foi a demissão de duas professoras que as apoiavam.
Anteontem, houve manifestações em várias unidades da rede e em outros colégios, com gurias e guris vestidos de vermelho. Uma garota carregou um cartaz que ensinava: “Quem cala as vítimas é cúmplice”. As manifestantes entoaram: “Não acabou, tem que acabar, eu quero o fim do assédio escolar!”
Jornalistas esportivas lançaram em março a campanha #DeixaElaTrabalhar, contra o assédio, o machismo e a violência de que são alvo no ambiente do futebol. Exigiram respeito. “Sai daqui, puta”, uma delas ouviu de um cafajeste travestido de torcedor, antes de ser agredida por ele. Outras foram surpreendidas por quem tentou lhes agarrar enquanto trabalhavam. Na Copa da Rússia, um cretino quis beijar a repórter Julia Guimarães, que se preparava para entrar no ar. “Eu não permito que você faça isso!”, ela reagiu altiva, em inglês. “Nunca!”
Mobilizadas por movimentos feministas e outras entidades, manifestantes acompanharam neste mês a audiência pública do Supremo Tribunal Federal que discutiu a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação –uma questão de saúde pública. O procedimento só é legalmente autorizado em casos de estupro, risco da mulher e anencefalia do feto. O Ministério da Saúde estima que no ano passado tenham ocorrido de 938 mil a 1,2 milhão de abortos provocados, quase todos clandestinos. Ao menos 224 mulheres morreram ao interromper a gestação, numa estimativa afetada por subnotificação.
Na barca Rio-Niterói, na sexta-feira, um PM contrariou-se com um passageiro que o fotografava e sacou a arma. O sargento encrencara com a candidata a deputada federal Talíria Petrone e militantes que carregavam material de campanha. A vereadora do PSOL em Niterói, contudo, não distribuía panfletos. “Arma mata!”, advertiu Talíria. “Ideologia mata mais!”, esbravejou o sargento. O fotógrafo Bruno Kaiuca filmou a truculência, documentando a grotesca tirada filosófica do policial.
Quem matou Marcos Vinícius da Silva foi um policial civil, asseguraram testemunhas. Em junho, o adolescente de 14 anos caminhava para a escola no complexo da Maré, onde morava. Sua mãe, a empregada doméstica Bruna da Silva, narrou o último diálogo com o filho. “Ele falou ‘mãe, eu sei quem atirou em mim, eu vi quem atirou em mim. Eu falei ‘meu filho, quem foi que atirou em você?’ ‘Foi o blindado, mãe. Ele não me viu com a roupa da escola’”.
Carregando a camisa escolar ensanguentada do filho, Bruna participou em São Paulo de um protesto de mães. Desabafou: “Eu criei meu filho na comunidade até os 14 anos sem tomar tiro do poder paralelo. Aí, o Estado, que era para proteger e servir meu filho, alveja e assassina ele. Não pode. Chega! Aquela blusa do meu filho é uma vergonha para o Estado e para o Brasil!”.
Hoje faz 161 dias que Marielle Franco e Anderson Gomes foram assassinados. O crime continua sem punição.
Sufragistas
Na nova pesquisa presidencial do Ibope, Bolsonaro é o único dos oito primeiros colocados que não colhe no eleitorado feminino nem metade da intenção de votos que obtém no masculino: 13% entre as mulheres e 28% entre os homens, no cenário que Lula lidera com folga. No total, o deputado atrai 18%, atrás de Lula (37%) e à frente de Marina (6%), Geraldo Alckmin e Ciro (ambos com 5%).
O desempenho de Bolsonaro entre os homens é 115% melhor. Outro contraste expressivo, que contribui para o deputado minguar entre as entrevistadas, é de Marina: a ex-ministra atinge 15% entre elas – 50% a mais – e 10% entre eles. Se somente eleitoras votassem, a dianteira de Lula, com 39%, seria mais ampla (ele se limita a 35% no eleitorado masculino). A candidatura do ex-presidente está na iminência de ser cassada pelo tapetão.
A vantagem de Lula sobre Bolsonaro é imensa também no universo dos brasileiros mais pobres. Entre os de renda familiar até um salário mínimo mensal, o ex-presidente ganha por 53% a 12%. Entre os com mais de cinco salários, Bolsonaro prevalece, com 32% a 17%. A esmagadora maioria das mulheres pobres recusa Bolsonaro.
O problema do extremista de direita é ainda mais grave porque as mulheres compõem 52,5% do eleitorado, com 7.436.871 inscritas a mais. Elas podem fazer a diferença, sobretudo em eventual segundo turno.
Bendita a hora em que as sufragistas saíram às ruas.
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