As chamas que consumiram o Museu Nacional, que fica a poucos passos da minha casa, são metáfora para tantas coisas no Brasil de 2018 que quase não consigo enumerar. Em poucas horas, arderam 200 anos de história do Brasil em 20 milhões de peças. O caso mais grave foi o de Luzia, o fóssil humano mais antigo das Américas, que já dormia por lá de modo nada digno, dentro de uma gaveta.
Descoberta nos anos 1970 em Minas Gerais, Luzia quebrou a narrativa de que o homem das Américas teria chegado aqui vindo da Ásia depois de cruzar o estreito de Bering, entre a Rússia e o Alasca. O crânio de cerca de 12 mil anos indica que a população de Lagoa Santa, onde foi encontrado, tenha chegado aqui muito tempo antes. A fisionomia de Luzia – reconstituída anos depois – era emblemática: seus traços lembravam nossas origens africanas. O crânio que virou cinzas, no entanto, não estava exposto aos visitantes do Museu Nacional.
O custo para fazer uma área de exposição era de insignificantes R$ 100 mil, dinheiro que o museu nunca conseguiu levantar. Enquanto estudantes alemães podem sentir orgulho do homem de Neandertal – descoberto na Alemanha – e estudantes franceses se vangloriam do homem de cro-magnon (o esqueleto europeu ancestral), nossos jovens nunca mais poderão olhar para Luzia.
O incêndio no palácio, que abrigou a família real, está fincado na Quinta da Boa Vista e é lugar na memória afetiva da infância de tantos cariocas, foi alvo de uma tragédia de gigantescas proporções materiais e simbólicas. O fogo consumiu quase tudo e, talvez o pouco que restasse, a água dos bombeiros terminaria de destruir. Na mesma área, a poucos quilômetros de distância entre si, outras tragédias estão lá, anunciadas, esperando pelo seu dia: do outro lado da estação de trem de São Cristóvão temos o que sobrou do Museu do Índio, ali perto os escombros da favela do metrô e uma Uerj em desmonte. Tudo no mesmo raio de um Maracanã descaracterizado por obras de mais R$ 1 bilhão. É o país esfacelado.
Qualquer ministro do Supremo Tribunal de Federal embolsa por ano mais do que o Museu Nacional pleiteava para a sua manutenção que poderia ter salvo o prédio do desastre. Considerando o salário de R$ 33,7 mil mensais, sem os penduricalhos, o custo é de pouco mais de R$ 400 mil anuais – isso sem falar no reajuste de 16% esperado para o ano que vem, com impacto de R$ 8 bilhões, o dobro do orçamento anual das bolsas de pesquisa da Capes, algumas delas usadas justamente no museu. Nossa versão do Louvre não valia, por ano, uma ministra Cármem Lúcia, um Barroso, um Gilmar Mendes. É claro que ministros são pessoas preparadas e que seus salários precisam estar à altura de suas representações democráticas. A comparação é apenas para tentar contextualizar o peso que deveria ter uma instituição como o Museu Nacional.
O próprio edifício do STF, construído nos anos 1960, consome mais recursos do que o museu. Só em obras, em 2017, o prédio gastou R$ 4,9 milhões do meu, do seu, do nosso dinheiro. Sem contar gastos básicos de manutenção como água, luz e outros. Não estou nivelando por baixo. Brasília é patrimônio da humanidade e seus prédios merecem todo o cuidado e zelo. Merecem tudo isso e muito mais. O questionamento é: por que “dois pesos e duas medidas”? Onde o desmonte da educação tem sua parcela de culpa no abandono de bem tão precioso? Está valendo a pena o alto custo que estamos pagando por relegar a ciência ao segundo plano?
O mais antigo museu do país, com dois séculos de história entre suas paredes e um acervo inestimável, tinha recentemente parcos R$ 200 mil de verbas anuais de um total de R$ 520 mil mínimos que seriam necessários. Seus diretores chegaram a fazer uma “vaquinha virtual” para manter aberta a sala onde estava exposta a ossada do dinossauro, que fascinava crianças e adultos. Tudo isso fala muito sobre nós.
Não é de se espantar que um governo que congela gastos em saúde e educação por duas décadas, que suprime direitos duramente conquistados por trabalhadores ao longo de anos, que não se importa com pesquisa científica e que promove uma reforma na educação sem ouvir a sociedade e muitos dos maiores nomes da área, encare com desdém um museu que tem a posse de peças importantes não apenas para o país, mas para o mundo.
O que é de se espantar é a enorme paixão e força de ânimo da comunidade acadêmica mesmo diante do rescaldo de uma preciosidade perdida. Horas depois do incêndio, nenhuma autoridade das três esferas governamentais havia se manifestado publicamente. O presidente Michel Temer só publicou uma nota em seu Twitter às 21h59 – o incêndio teve início às 19h30min. Ele não esteve na comemoração dos 200 anos do museu, que aconteceu este ano. O último presidente a visitar a instituição foi JK. O Museu Nacional recebeu Einstein e Marie Curie.
A exceção foi Marco Antonio Perruso, coordenador do Curso de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a qual o museu pertencia. Em uma nota de pesar e revolta, ele disparou: “Estão destruindo a história e a memória da sociedade brasileira e da diversidade de seu povo. Os responsáveis por esta situação são os que agravam as condições de financiamento da educação, da cultura e dos serviços públicos no Brasil, especialmente o atual governo federal, que está inviabilizando nosso futuro com medidas tais como o congelamento de gastos públicos em 20 anos”. O Ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, veio depois, dizendo que os trabalhos de restauração “começarão nesta segunda-feira”.
A memória sempre foi um problema para o Brasil. O país que sofre de amnésia voluntária profunda, de um esquecimento proposital de sua história, não consegue mais esconder as marcas deixadas por uma cultura que não valoriza o passado. Por esse motivo, também tem muitas dificuldades para caminhar para o futuro.
O Rio de Janeiro se orgulha do belíssimo prédio do Museu do Amanhã, que se ergue majestoso na Praça Mauá, em frente a Baía de Guanabara, e hoje é um dos cartões postais da cidade. No entanto, se fecharmos os olhos talvez ainda possamos sentir o peso do local por onde entraram tantos escravizados. A entrada acontecia pelo Cais do Valongo, distante poucos metros, mas toda a área fazia parte do cenário da história da escravidão na cidade. Somos capazes de edificar um monumento ao que ainda não veio, mas não suportamos lembrar do que nos formou. O risco de repetir os erros é enorme.
Escrevi dois romances históricos com momentos da nossa trajetória marcada pela diáspora africana. O primeiro, “Água de barrela”, conta a saga de parte de minha família da África da metade do século 19 até nossos dias. O segundo “O crime do cais do Valongo”, retrata o local por onde entraram em 20 anos (de 1811 a 1831) entre 500 mil a um milhão de pessoas escravizadas. Escrever essas obras me exigiu mergulhos profundos em arquivos das cidades de Cachoeira, Salvador, Rio de Janeiro, do Arquivo Nacional e da Biblioteca Nacional. Um museu é um tesouro. Fico imaginando tudo o que não será feito, pela inexistência do que tínhamos e perdemos nestas chamas.
O cais do Valongo, por exemplo, foi maior porto escravagista das Américas e, por causa disso, ganhou o título de Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco. E o que vemos? Uma luta intestina entre esferas governamentais para que os projetos de preservação saiam do papel e preservem um sítio arqueológico único no mundo, ameaçado pela falta de cuidados. Moradores denunciaram até mesmo a presença de usuários de crack no sítio histórico. O Brasil tem apenas 14 desses patrimônios reconhecidos pela Unesco, e pode perder um deles – justamente o Valongo – por total desprezo.
Outro sítio arqueológico muito próximo ao Valongo, o da igreja de Santa Rita, onde obras do VLT desenterraram as ossadas também de escravizados – sabe-se que o local foi o primeiro cemitério dos chamados ‘Pretos Novos’, ou seja, recém chegados – é alvo também de disputas. Após protestos, decidiu-se não mais escavar o lugar, mas já está marcada uma manifestação na próxima quarta-feira,
No Brasil dos nossos tempos, como se diz, o buraco é mais embaixo. A falta de mão de obra especializada e investimentos ata as mãos do Instituto do Patrimônio Histórico Nacional, o Iphan, que por pouco não fechou as portas este ano, colocando em risco todo o enorme patrimônio histórico do país. O Brasil de 2018 parece pensar que os únicos problemas da nação são segurança, trabalho e as questões que giram em torno da economia. Os debates entre candidatos e propagandas políticas têm forte apelo neste sentido e nenhum jornalista que conduziu as sabatinas até o momento fez nem uma pergunta sequer sobre projetos para a cultura, que também é um setor gerador de renda, mas sobretudo de educação e conhecimento.
O rock do grupo Titãs dos anos 1980 do século 20 soa atual no século 21. Olhando em volta, parece mesmo que a gente quer só “comida, dinheiro” e ponto final. Cruelmente, nesse momento de crise, “bebida é água, comida é pasto”. Mirando ao redor, também vemos parcela significativa da nação clamando por armas, trancas, cadeias e repressão. Queremos a supressão total dos nossos direitos e, entre eles, o aniquilamento do direito de possuir uma história.
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