Uma menina de três ou quatro anos visitava o Museu Nacional na primeira metade da década de 1990. Ao se deparar com uma profusão de animais empalhados, sobretudo pássaros, começou a chorar. Seu pai afligiu-se, abraçou-a e perguntou: “O que foi, filha?” Aos soluços, ela respondeu: “Eu não queria que eles tivessem morrido”.
O pai improvisou um papo cabeça, mas as lágrimas só estiaram com a lembrança de que logo caminhariam para o Jardim Zoológico, ali pertinho. Não faltariam bichos vivos no passeio pelo bairro de São Cristóvão. Dali a alguns anos, a menina alegrou-se ao regressar ao museu que a emocionara. As novas gerações não verão o que a Maria viu.
Desde o domingo à noite não há mais espécimes empalhados – expostos ou na reserva técnica – no palacete da Quinta da Boa Vista. Nem, talvez, o mais antigo fóssil descoberto no país, o crânio de Luzia, jovem brasileira de uns 12 mil anos – seus “traços lembravam nossas origens africanas”, anotou a jornalista e escritora Eliana Alves Cruz. Foram consumidos os ossos do Maxakalisaurus topai, o Dinoprata, primeiro dinossauro de grande porte montado no Brasil. Herbívoro, ele viveu há 80 milhões de anos.
Queimaram as coleções de arte greco-romana e egípcia. As borboletas e as conchas. O fabuloso acervo etnológico das culturas afro-brasileira e indígena. Maciço de 5 toneladas encontrado em 1784, o meteorito do Bendegó sobreviveu às chamas não como pedra fundamental de um reinício, mas como testemunho da ruína de um museu e de uma nação.
Escaparam 10% dos mais de 20 milhões de itens do principal museu de ciências naturais e antropológicas da América Latina, o mais longevo do Brasil. Pereceram as matérias-primas às quais dedicaram vidas inteiras pesquisadores de zoologia, botânica, arqueologia, antropologia social e numerosas outras áreas de transmissão e produção do conhecimento. “Essa é uma perda enorme para o Brasil e o patrimônio mundial”, manifestou-se o Museu do Louvre. O Museu de História Natural britânico lastimou a “perda devastadora para o patrimônio e a ciência”.
Frequentar o museu era um programa de pegada popular. Acabou.
Nesta terra cujos donos semeiam, colhem e perpetuam segregação, o Museu Nacional se tornou um atípico destino democrático no Rio. Ninguém precisava de dinheiro para conhecer, em viagem a Londres ou Nova York, uma estatueta de guerreiro etrusco fundida meio milênio antes de Cristo. O museu possuía uma belíssima.
Ele exibia uma legítima múmia brasileira de 1.100 anos. Bem como um trono, do limiar do século 19, do reino africano do Daomé. E máscaras de sete décadas, confeccionadas por povos indígenas do Alto Xingu. Frequentar o museu era um programa de pegada popular. Acabou.
Sucessivos governos
Não foi por falta de aviso. Em 2004, um secretário estadual do Rio advertiu: “O museu vai pegar fogo. São fiações expostas, malconservadas, alas com infiltrações”. Em abril e maio de 2018, às vésperas do bicentenário da instituição, reportagens de Roberta Jansen, Bárbara Carvalho e Marco Aurélio Canônico expuseram a manutenção precária. Uma infestação de cupins provocou no ano passado a interdição da sala dos dinossauros. Para reabri-la, o museu improvisou uma vaquinha.
Em 2004, um secretário estadual do Rio advertiu: “O museu vai pegar fogo. São fiações expostas, malconservadas, alas com infiltrações.”
Governantes nunca demonstraram apreço, além do diplomático, pelo Museu Nacional. O antropólogo Luiz Fernando Dias Duarte, diretor-adjunto do museu, disse à GloboNews que Juscelino Kubitschek foi o último presidente a visitar o local, seis décadas atrás. E que nenhum ministro compareceu à celebração dos 200 anos, em junho.
Fundado por Dom João 6º em 1818, com sede no Campo de Santana, o museu funcionava desde 1892 no palacete de São Cristóvão onde havia morado a família imperial brasileira. O lugar foi endereço residencial dos imperadores Pedro 1º e Pedro 2º e da princesa Isabel. Naquele casarão de três andares se reunira, em 1891, a Assembleia Constituinte pioneira da República. Erguido no princípio do século 19, tinha sido doado à família real portuguesa por Elias Antônio Lopes, um traficante de africanos escravizados.
É tão impróprio omitir a culpa de sucessivos governos na decadência e degradação do museu quanto igualá-los no que foram diferentes. Nenhum deles se dispôs a investir na promoção a estabelecimento com padrão museológico exemplar, inclusive com segurança efetiva contra incêndios, embora seu acervo constituísse monumental e irrecuperável patrimônio científico e histórico.
O paleontólogo Sérgio Alex Azevedo, diretor do Museu Nacional em 2004, declarou então que a crise perdurava 40 anos. Agravara-se devido a descaso. Sobreveio melhora, insuficiente, para os museus brasileiros. Levantamento do Instituto Brasileiro de Museus contabilizou que de 2001 a 2011 os fundos anuais para o setor haviam aumentado 980%, de R$ 20 milhões para R$ 216 milhões. Esse período corresponde a dois anos de governo FHC, oito de Lula (o maior salto) e dois de Dilma. O dinheiro é público, reconhecendo nessa categoria o oriundo de renúncia fiscal.
O Museu Nacional se vincula à UFRJ. De 2013 a 2017, as transferências federais para ele caíram pela metade. De janeiro a agosto de 2018, resumiram-se a R$ 98 mil, o equivalente à despesa média do poder público com um só magistrado em dois meses. Numa palavra, penúria. O número de visitantes caiu.
Sem caixa para pagar os serviços terceirizados de segurança e limpeza, o museu interrompera a visitação em janeiro de 2015. A universidade queixou-se à época de contingenciamento de recursos pelo Ministério da Educação no ano anterior, o quarto de Dilma Rousseff no Planalto. E registrou atraso nos repasses por causa da demora do Congresso em aprovar o Orçamento, cujo relator-geral era o senador Romero Jucá. Em dezembro de 2016, as portas de novo foram fechadas provisoriamente.
Homem do cafezinho
Derramam lágrimas de hipocrisia sobre as cinzas do Museu Nacional. “É um dia triste para todos brasileiros”, proclamou Michel Temer. Por que destinaram em oito meses menos de R$ 100 mil à instituição cujo “valor para nossa história não se pode mensurar”?
Gerido no âmbito do Ministério da Educação, o museu zelava por herança cultural valiosíssima. Temer rebaixou o Ministério da Cultura a secretaria, antes de recuar. Supondo que poupava o chefe, o ministro Carlos Marun o interpretou com sagacidade: “Está aparecendo muita viúva apaixonada, mas na verdade essas viúvas não amavam tanto assim o museu”.
O paleontólogo Alexander Kellner, hoje diretor do museu, tentou ser recebido por Temer para reiterar o plano de retirar do palacete a administração e outros setores. O professor contou que persistiu na busca por audiência com o presidente, mas não logrou passar “do cara do cafezinho”.
Se agora prometem desembolsos, por que não se empenharam antes na preservação?
Os Ministérios da Educação e da Cultura anunciaram apoio à reconstrução, com aporte inaugural de R$ 10 milhões. Se agora prometem desembolsos, por que não se empenharam antes na preservação? O Museu Nacional sucumbiu no governo Michel Temer.
A respeito do “trágico incidente”, Marcelo Crivella qualificou como “dever nacional” “recompor cada detalhe eternizado em pinturas e fotos”. Como, se quase tudo, com exceção das paredes, virou pó? Falava dos afrescos de Pompeia, que escaparam da fúria do vulcão Vesúvio, mas não da incúria furiosa do Brasil? Mais tarde, o prefeito afirmou que se referia à edificação.
O governador Luiz Fernando Pezão pranteou “tamanha perda de construção e acervo de valores inestimáveis”. O combate às labaredas atrasou no mínimo meia hora porque os hidrantes próximos estavam sem água, informou o Corpo de Bombeiros. Empresa do Estado do Rio encarregada do equipamento, a Cedae negou ter ocorrido o problema notório.
O farisaísmo não se restringe aos governantes. Uma emenda constitucional impôs teto a gastos com saúde, educação, ciência e cultura. Como aplaudi-la e, em seguida, surpreender-se com o museu destroçado?
Em regra, os ricos brasileiros em nada ou pouco ajudaram o Museu Nacional na era republicana. Eles estão entre os mais avarentos do mundo. Só cederam alguns mil-réis para a criação do Masp por se intimidarem com os achaques do mecenas e barra-pesada Assis Chateaubriand. A elite desprezava o Museu Nacional. Em 2017, mais brasileiros visitaram o Louvre, na França, do que os tesouros da Quinta da Boa Vista.
Penas e vozes que demonizam a ideia de universidade pública vociferam contra a catástrofe. Acontece que ela decorreu em boa parte da escassez de verbas para preservar um patrimônio coletivo. Maldizem a UFRJ por ter se recusado a privatizar a gestão de bens dos cidadãos. Para lhes apetecer, a cultura tem de gerar lucro.
Quem encrenca com pinturas de pessoas nuas em museus carece de autoridade intelectual e moral para deplorar o horror. São inimigos da cultura e da civilização.
Jair Bolsonaro prega a extinção do Ministério da Cultura. A Agência Lupa constatou que, dos 13 candidatos presidenciais, somente dois mencionaram em seus programas políticas sobre museus.
Nojo e vergonha
O Brasil se automutila. Ao dilacerar a memória, castiga o presente e ensombrece o futuro. Um novo museu tem de surgir, mas não será, não tem como ser, o que foi. A bravura dos servidores desafiando a fumaça ao ingressar no prédio, para resgatar preciosidades da ciência e da história, permanecerá como retrato comovente na desolação. A nossa tragédia cotidiana também tem os seus heróis.
Nada mitiga, porém, a ira e a tristeza. Não houve acidente, e sim crime. A arma pode ter sido curto-circuito, queda de balão ou outra; a munição teve o calibre da negligência. Centenas, milhares, milhões de anos se esfumaçaram – as idades das peças do acervo. Dois séculos foi o tempo em que gente generosa construiu o museu com saber, suor e, fulminados numa noite de inverno, sonhos.
Quase tudo jogado fora. Quase tudo destruído. Roubar o Museu Nacional das crianças que virão dá nojo e vergonha. Em fevereiro, a Imperatriz Leopoldinense celebrou o museu como seu enredo no Carnaval. Valeu, mas não tem jeito. Aprisionaram o Brasil numa permanente Quarta-Feira de Cinzas.
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