Em 1905, Sigmund Freud lançou “Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” e desafiou a convenção da época. Neles, Freud disse que era um equívoco pensar que as práticas sexuais deveriam visar apenas fins reprodutivos – muitas delas (senão todas) teriam como objetivo o prazer – e que as crianças eram, sim, seres sexuais. A obra escandalizou a sociedade do início do século 20 ao sugerir que a sexualidade fazia parte do desenvolvimento humano.
Hoje, quem se escandalizaria seria Freud. Passado mais de um século de incontáveis evidências sobre a naturalidade da diversidade sexual, que levaram a Organização Mundial de Saúde, a OMS, a reconhecer que direitos sexuais são direitos humanos, a sociedade ainda não lida bem com essa ideia. Uma pequena amostra disso foi o suicídio recente de James Myles, de apenas 9 anos. Myles tirou a própria vida após ter sofrido bullying homofóbico em sua escola nos Estados Unidos.
A maior parte das crianças de 9 anos ainda não tem total consciência da sua identidade sexual e de gênero, mas já pode ser vítima de preconceito. As atitudes preconceituosas são dirigidas justamente a pessoas como Myles, que desviam do que é socialmente esperado para elas. Tragédias como essa revelam por que a população de lésbicas, gays, bissexuais e, principalmente de travestis e transexuais, são desproporcionalmente mais sujeitas a violência letal e têm maior índice de desfechos negativos em saúde mental. Inúmeras evidências internacionais mostram que jovens e adultos LGB apresentam prevalência de tentativa de suicídio duas vezes maior se comparados à da população heterossexual. O caso das pessoas trans é ainda mais grave, nos Estados Unidos 41% delas já tentaram suicídio em comparação com 4,6% da população em geral.
No Brasil, o cenário não é diferente. Uma pesquisa conduzida pelo meu grupo de pesquisa na PUC do Rio Grande do Sul, com amostra de quase 10 mil jovens entre 11 e 24 anos de todo o país mostrou que, de 2004 a 2012, as tentativas de suicídio entre aqueles que não haviam sofrido preconceito por causa de sua orientação sexual caíram 20%. Em contrapartida, entre aqueles que sofreram esse tipo de preconceito o aumento foi de 60%.
Orientação sexual e identidade de gênero não são doença
Historicamente, o fato de que as pessoas que desviavam do que era socialmente esperado em relação à sexualidade e ao gênero terem maior prevalência de depressão, ansiedade e tendência suicidas era encarado como indicador de psicopatologia. Ou seja, haveria algo intrínseco a homo, bi e transexualidade que as relacionaria à doença mental. Por quase um século, a heterossexualidade foi tratada, compulsoriamente, como a única forma de sexualidade – inclusive por meio de supostas terapias reversivas, conhecidas como a “cura gay”, que só promoveram mais sofrimento.
O que leva a mais suicídios, depressão e ansiedade é o preconceito.
Essa coação social e médica, porém, nunca foi o suficiente para mudar o desejo sexual e a identidade de gênero naqueles que os expressavam. Portanto, não é razoável supor, como sugerem candidatos a presidente em cadeia nacional, que a mera menção da existência da diversidade sexual e de gênero seria o suficiente para que o mesmo acontecesse com a população hétero e cissexual – pessoas que têm uma identidade de gênero que concorda com o sexo atribuído no nascimento.
Com a progressiva remoção da homossexualidade dos manuais de diagnósticos, essa compreensão ultrapassada mudou. Ser gay, lésbica ou bissexual não é um problema de saúde. O que leva a mais suicídios, depressão e ansiedade é o preconceito. Os esforços dos profissionais e políticas de saúde devem se voltar ao combate à discriminação. Na mesma esteira, em 2018, a OMS retirou a transexualidade do rol das doenças mentais garantindo o acesso aos procedimentos médicos de afirmação de gênero, ao mesmo tempo que diminui o estigma relacionado ao diagnóstico.
Mas como se combate o preconceito e se protege as crianças de agressões de natureza sexual? Falando de sexo e gênero de maneira franca e não estigmatizante nas escolas. Diversos estudos têm mostrado que a educação sexual, feita dessa forma, no contexto escolar é capaz de reduzir a vulnerabilidade para o HIV, a violência sexual, e, principalmente, o preconceito. Em relação ao abuso sexual de crianças, diversas pesquisas apontam que programas que são focados no conhecimento a respeito da sexualidade, e treinamento de habilidades para identificar e evitar agressões sexuais são eficazes para reduzi-las.
Os detratores desse tipo de proposta costumam associar a tentativa de se tratar em sala de aula temas sobre sexualidade à pedofilia e à erotização precoce. Essa afirmação não tem qualquer respaldo científico. No Brasil, esse discurso é também paradoxal. Essa suposta tentativa de proteção à infância convive com a produção e consumo crescente de imagens erotizadas das crianças, especialmente dirigida ao público masculino heterossexual.
Se as histórias de vida das pessoas LGBTs nunca forem contadas na escola e se os alunos e alunas nunca ouvirem as palavras homossexualidade ou transexualidade de maneira positiva, será imposto aos estudantes LGBTs que lidem com o bullying sozinhos. Enquanto o assunto for um tratado como tabu, o fardo de ser “diferente” será apenas dos estudantes e de suas famílias.
Da mesma forma, quando não se discute abertamente como e quando a sexualidade deve acontecer e o que são toques e carícias esperados e consentidos, será imposto às crianças que são vítimas de abuso sexual (quase sempre dentro da família) que lidem com essa violência sozinhas.
Uma estratégia bem-sucedida nesse sentido é o GRIS – Montreal, o Grupo de Pesquisa e Intervenção Social. Fundada em 1994, a ONG realiza intervenções em escolas levando ex-alunos LGBTs para conversar com turmas de ensino fundamental e médio. Os ex-alunos contam suas próprias experiências de superação e como se preveniram de situações de violência e exclusão, além de responder a dúvidas das crianças e jovens.
Falar abertamente de sexo e de gênero não perverte crianças e jovens.
Em relação à prevenção do suicídio, uma das melhores iniciativas é o projeto The Trevor. Trata-se de uma ONG americana fundada em 1998, que oferece serviços de aconselhamento psicológico para jovens LGBTs, além de recursos educativos para pais e professores. O projeto foi lançado pelos idealizadores do filme “Trevor“, ganhador do Oscar de melhor curta-metragem em 1998, que conta a história de um jovem gay que tenta suicídio após sucessivos episódios de bullying escolar. No Brasil, infelizmente, não existem iniciativas como o Trevor e a Gris.
É surpreendente que, no Brasil, onde abundam dados sobre o flagelo do abuso sexual infantil e violência contra LGBTs, não estejamos implementando políticas para diminuir esses fenômenos com estratégias amplamente disponíveis na literatura científica. Pelo contrário, discute-se o boicote a tais estratégias, mostrando que a violência dirigida aos jovens LGBTs no Brasil não é uma crise pontual, mas um projeto deliberado.
O exemplo do GRIS, em Montreal, e do Trevor, nos Estados Unidos, revela que falar abertamente de sexo e de gênero não perverte crianças e jovens como acredita o candidato Jair Bolsonaro, mas previne que elas sejam as próximas vítimas da violência sexual, de homicídios e de suicídios que poderiam ser evitados.
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