Na tarde de uma quarta-feira do ano passado, o deputado federal Jair Messias Bolsonaro desembarcou no aeroporto João Suassuna, na cidade paraibana de Campina Grande. Do lado de fora, discursou para centenas de fiéis que ansiavam por ele.
“Como somos um país cristão, Deus acima de tudo!”, esgoelou-se. “Não tem mais essa historinha de Estado laico, não! É Estado cristão!” Pronunciou seu voto de fé: “Vamos fazer um Brasil para as maiorias! As minorias têm que se curvar às maiorias! A lei deve existir para defender as maiorias! As minorias se adéquam ou simplesmente desapareçam!”
Foi zombaria da história o sol implacável que cegava os anfitriões do capitão. Para mirá-lo na contraluz, eles levavam as mãos à testa, em forma de uma aba de boné, proporcionando sombra aos olhos. O homem encolerizado ao microfone, naquele 8 de fevereiro de 2017, encarnava personagens sombrios de outrora. Ao preconizar o desaparecimento de minorias, evocou Ióssif Stálin trucidando oposições à esquerda e à direita. E o extermínio engendrado por Adolf Hitler.
A ameaça de eliminação das minorias conecta o bolsonarismo a ideias estimadas pelo nazifascismo. Ciro Gomes desdenhara Bolsonaro como “um projetinho de Hitler tropical”. Na sexta-feira, em cima de um caminhão de som, o candidato presidencial do PDT se referiu ao adversário do PSL como “nazista filho da puta”. Depois de uma sessão da peça “Meus 200 filhos”, ambientada em cenário do Holocausto, um espectador gritou, no teatro do Centro Cultural Justiça Federal: “Abaixo o nazismo! Veja em quem você vai votar!”.
Numa charge para comentar pesquisa do Ibope, Benett cruzou linhas evolutivas de votação e rejeição do deputado (antes de ele estacionar na intenção de votos e sua rejeição aumentar novamente). Elas desenharam a suástica. O grupo “Judeus contra Bolsonaro” desfraldou bandeira: “Não aceitamos que um fascista possa ser presidente do Brasil”.
O manifesto “Democracia Sim”, cujos signatários ilustres se inclinam por candidatos diversos, reconhece na barbárie Bolsonaro uma “ameaça franca ao nosso patrimônio civilizatório primordial”. E lembra: “Líderes fascistas, nazistas e diversos outros regimes autocráticos na história e no presente foram originalmente eleitos, com a promessa de resgatar a autoestima e a credibilidade de suas nações, antes de subordiná-las aos mais variados desmandos autoritários”.
A Gaviões da Fiel reviveu a têmpera da democracia corintiana e rechaçou o candidato “que homenageia publicamente torturadores”. Tabelou com a Torcida Jovem do Santos, que se entrincheirou: “A opressão jamais irá vencer a nossa luta por liberdade dentro e fora dos estádios!”
Simpatizantes neonazistas
O parentesco do ideário bolsonarista com o arsenal ideológico nazi é tão inequívoco que até pascácios da direita mais ouriçada o percebem. Em 2011, o movimento neonazista White Pride World Wide juntou-se à convocação de um “ato cívico” pró-Bolsonaro em São Paulo. O nome do grupo quer dizer, no idioma que ele despreza, “Orgulho Branco no Mundo Inteiro”.
Skinheads apreciam o deputado. Essa gente é sádica como o garoto de olhos azuis Bobby, um dos clones de Hitler no filme “Os meninos do Brasil”. Bobby manda seus cães dobermann atacar e matar – um deles morde uma veia jugular e se lambuza de sangue humano. Talvez tenha sido um clone do facínora Carlos Alberto Brilhante Ustra quem, na campanha pelo impeachment, pendurou num viaduto bonecos de Dilma Rousseff e Lula enforcados.
Antes de afinar a voz pelo diapasão eleitoral, Bolsonaro teve oportunidade, mas não deplorou a memória do führer. Em 2012, no programa “CQC”, indagaram se ele “gostava” de Hitler. “Não”, respondeu, antes de render-se: “O que você tem que entender é o seguinte: guerra é guerra. Ele foi um grande estrategista. Quando você tem um general, aqui no Brasil, em qualquer exército do mundo, aquele general tem que estar pronto para aniquilar o outro país, destruir o outro país, para defender o seu povo”.
Bolsonaro não mencionou episódios como a invasão da Polônia e a ignomínia do gueto de Varsóvia. Nem explicou como a expansão nazista teria “defendido” o povo alemão.
Na mesma entrevista, perguntaram: “O senhor já deu um sopapozinho em alguma mulher?” “Já”, disse o capitão. “Eu era garoto, ainda em Eldorado (SP), e uma menina, que forçou a barra para cima de mim…”. E gargalhou, acompanhado dos entrevistadores.
Com estímulos dessa natureza, não surpreende a letra que bolsonaristas adaptaram ao funk “Baile de favela”. Na “Marcha da Família com Bolsonaro”, no Recife, os manifestantes cantaram: “Dou pra CUT pão com mortadela/ E pras feministas, ração na tigela./ As minas de direita são as tops mais belas/ Enquanto as de esquerda têm mais pelos que as cadelas”. A paródia não é “polêmica”, como prefere a imprensa anestesiada por eufemismos. É abjeta.
Ela não espanta, mas perturba. “O ovo da serpente” se passa na Berlim de 1923, dez anos antes de Hitler ser alçado a chanceler da Alemanha. Visita a gênese da tragédia nazista vindoura. O protagonista do filme de Ingmar Bergman é o trapezista judeu Abel Rosenberg. O desalento e o medo o abatem, depois de ele testemunhar policiais surrando um homem: “Acordei de um pesadelo e descobri que a vida real é pior do que o sonho”.
No Brasil, misoginia, homofobia e racismo se revolvem num coquetel de boçalidade e ódio. Em 2014, Bolsonaro disse ao jornal espanhol “El País” que “a imensa maioria [dos gays] vem por comportamento. É amizade, é consumo de drogas. Apenas uma minoria nasce com defeito de fábrica”. O nazismo também se apascentava da ojeriza por homossexuais. Nos campos de concentração, um triângulo rosa era costurado em seus uniformes. A peça “Bent”, de Martin Sherman, coloca em cena dois prisioneiros com triângulo rosado.
Um novo ‘Plano Cohen’
É possível que Joseph Goebbels, o ministro do III Reich para a Propaganda, jamais tenha enunciado a tese de que uma mentira repetida mil vezes vira verdade. Foi, todavia, um praticante compulsivo dela. Adeptos de Jair Bolsonaro têm compartilhado informações que maltratam os fatos.
Circula no WhatsApp a patacoada de um “plano de dominação comunista do PT”. A montagem repousa na prateleira do mercado de invencionices. É herdeira de uma armação nazistoide ocorrida em 1937. Enamorado pela Alemanha hitlerista, o presidente Getulio Vargas pretextou um certo “Plano Cohen” para perpetrar o golpe de Estado que impôs a ditadura do Estado Novo.
O tal plano arquitetava um assalto ao poder pelos comunistas. Era falso. Quem o datilografou foi um quadro da Ação Integralista Brasileira, organização prima do nazifascismo europeu. Capitão do Exército, chamava-se Olímpio Mourão Filho. Quando general, daria a largada no golpe de 1964 – um Mourão golpista é notícia caduca. O sobrenome Cohen foi escolhido para vincular o Partido Comunista à comunidade judaica; o integralismo era visceralmente antissemita.
Mentira no atacado, mentira no varejo. O deputado federal Eduardo Bolsonaro veiculou um vídeo de propaganda do pai concorrente ao Planalto. Uma narradora em off fala enquanto se vê o que aparenta ser o rosto da dona da voz: “Sou mulher, negra e vinda de família pobre. […] Há muito me libertei do vitimismo. […] Meu voto é pelo Brasil. Meu voto é Bolsonaro”.
Logo desmascararam a farsa. A moça na tela é uma canadense executiva financeira de multinacional. Era atriz em 2011, ao gravar filmes para um banco de imagens, do qual saiu a “brasileira” pseudo-bolsonarista. “Somente a verdade nos liberta”, pregou Eduardo Bolsonaro ao publicar o vídeo no Twitter.
A perversão das mal denominadas “fake news” – se são falsas, não são notícias – levou Fátima Bernardes a gravar esclarecimento sobre uma delas. Espalharam que ela doara R$ 350 mil, mais a reforma de uma casa, à família do esfaqueador de Bolsonaro. A apresentadora teria sido motivada pela condição de Adélio Bispo de Oliveira como “vítima do sistema, da sociedade, capitalista, preconceituosa, odiosa e sem amor e porque era intimidado com os discursos de ódio de Bolsonaro”. É difícil identificar as digitais na mentira vulgar?
Tentaram atingir Ciro Gomes, plantando o boato que ele agredira sua ex-companheira Patrícia Pillar. Obra de quem? No Twitter, um dito Renato mantém um perfil com mais de mil seguidores. Diz-se de “direita” e sufraga Bolsonaro. No dia 23 de setembro, ele tuitou: “Ciro agrediu a Patrícia Pillar, a vítima ainda o defende” (copiei tudo, mas não promoverei o patife). Renato não maquinou o boato; foi um dos que o disseminaram. A atriz foi às redes e depôs: “Nunca sofri nenhum tipo de violência da parte de ninguém”. E anunciou voto em Ciro.
Teoria dos dois demônios
A despeito das credenciais de Bolsonaro e seu séquito, irrompe no ecossistema do poder um raciocínio extravagante: o de que o segundo colocado nas pesquisas, Fernando Haddad, padeceria do mesmo mal do capitão, o “extremismo”. Nivelam quem é diferente. De caso pensado ou não, ajudam o único extremista tresloucado (o cabo bombeiro é hors-concours).
Haddad militou contra a ditadura; Bolsonaro afirmou seis anos atrás que apoiaria um novo regime “nos moldes [do] de 64”. O PT governou por 14 anos e não mudou o número de membros do STF; Bolsonaro projeta mudar, para controlar a corte. Lula não tramou uma segunda reeleição, em que ele seria barbada nas urnas. Haddad batalha pelos direitos humanos; Bolsonaro advoga a tortura. Equivalem-se?
Os dois pertencem a “campos antidemocráticos”, pontificou na quinta-feira o colunista Merval Pereira, em artigo escrutinado pelo jornalista Fernando de Barros e Silva. Bolsonaro e Haddad emitem sinais que “representam ameaça à democracia”, diagnosticaram os cientistas políticos José Álvaro Moisés e Rubens Figueiredo. Para o economista e empresário Roberto Gianetti da Fonseca, um segundo turno com a dupla poderia gerar “grave risco institucional”.
O candidato Geraldo Alckmin apontou os líderes das pesquisas como “dois lados da mesma moeda, a do radicalismo” (o jornalista Bernardo Mello Franco dissecou a declaração do tucano). Fernando Henrique Cardoso escrevinhou uma carta considerando que o capitão e o ex-ministro de Lula “apostam em soluções extremas” – esqueceu de dizer que janta com Haddad, ao passo que Bolsonaro sugeriu matar o antigo presidente. Viveríamos “A hora dos extremos”, titulou a revista “Veja”.
Nenhum contendor de Bolsonaro assombra a democracia como ele, ao contrário do que sustentam “intelectuais adversativos”, expressão bem bolada pelo jornalista e editor Paulo Roberto Pires. “O intelectual adversativo situa-se num centro imaginário, que ergueu como lugar de equilíbrio e razoabilidade”, escreveu. É contra Bolsonaro, “mas”, “porém”, “contudo”… “Não é raro que, usando a desonestidade como método, conclua que bolsonaristas e lulistas são faces da mesma moeda.”
O PT alegadamente extremista é o partido em cujas administrações os banqueiros faturaram às pencas. O “confronto de extremos” constitui charlatanismo intelectual, sobretudo quando delineado com as letras afetadas do pedantismo. Quem iguala desiguais relativiza o perigo bolsonarista e banaliza seus delírios intolerantes.
Ficar em cima do muro significa consentir com a plataforma, esta sim, extremista de Bolsonaro. É adotar a teoria dos dois demônios, que no limite, ao rememorar refregas da ditadura, não difere torturadores de torturados.
Mulheres comandam resistência
A semana começou com más notícias para o capitão. O Ibope informou que sua diferença para Haddad caiu de nove para seis pontos. O plano de Lula vai dando certo. Bolsonaro tem 28% (igual à semana passada); Haddad, 22% (+3); Ciro, 11% (igual); Alckmin, 8 (+1); Marina Silva, 5 (-1). A rejeição imensa a Bolsonaro subiu de 42% para 46%. Ele perde nos cenários de segundo turno testados, exceto contra Marina – empatam.
Entre as mulheres, Bolsonaro e Haddad têm ambos 21%. São elas que devem provocar abalo inédito na campanha fascista. Convocam para o sábado, 29 de setembro, protestos contra o deputado. Mobilizam com a hashtag #EleNão. Um sem-número de movimentos se associou à iniciativa.
“Dia 29 faremos história!”, escreveu Antonia Pellegrino. A feminista e roteirista assinalou: “A plataforma de Bolsonaro é inaceitável em qualquer democracia. Não podemos aceitar que o antipetismo se volte contra nós mesmas, se transforme em voto a favor de Bolsonaro. Entendo que haja mulheres que repudiam com todas as forças o Partido dos Trabalhadores. Porém, o PT nunca deixou o campo da democracia e sempre respeitou as decisões judiciais. O ódio ao PT não pode se transformar no ódio à democracia”.
Jair Bolsonaro espera ter alta do hospital em breve. Talvez as pesquisas não lhe sejam alvissareiras como os boletins médicos.
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