Em dezembro 2002, às vésperas de descer a rampa do Palácio do Planalto, o governo Fernando Henrique Cardoso era visto como ótimo/bom por 26% do eleitorado. Já os que os julgavam ruim/péssimo eram 36%.
Foi nesse cenário de descontentamento com o governo do PSDB que as eleições presidenciais se desenrolaram. Logo ficou claro que Lula tinha grandes chances de sair vitorioso. Em julho, o Datafolha mostrava o candidato do PT com mais de 40% das intenções de voto.
Ainda que o PT estivesse “domesticado”, tendo já sido governo de grandes capitais (como São Paulo) e estados (como o Rio Grande do Sul), sem ter iniciado uma revolução bolchevique em qualquer uma dessas gestões, o “mercado” ainda tinha medo.
No documento da campanha de 2002, em tópico intitulado “A ruptura necessária”, dizia o partido:
“A implementação de nosso programa de governo para o Brasil, de caráter democrático e popular, representará uma ruptura com o atual modelo econômico, fundado na abertura e na desregulação radicais da economia nacional e na consequente subordinação de sua dinâmica aos interesses e humores do capital financeiro globalizado”.
O medo se generalizou. O risco Brasil, que em março de 2002 estava na casa dos 760 pontos, chegou a quase 2.500 em março de 2003. Dispararam também a cotação do dólar, a inflação corrente e as expectativas de inflação.
Num contexto de descrença, Fernando Collor rapidamente se consolidou em primeiro lugar das pesquisas.
Pudera: as relações tumultuadas entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e o mercado financeiro datam de 1989, quando das primeiras eleições diretas para presidente do Brasil, desde 1960. Naquelas eleições, o cansaço com os políticos tradicionais fez com que as candidaturas de Mário Covas (PSDB) e Ulysses Guimarães (PMDB) não decolassem. No contexto de descrença, Fernando Collor (PRN) rapidamente se consolidou em primeiro lugar das pesquisas, tornando-se o candidato viável da direita.
Na disputa pelo segundo lugar, acotovelavam-se os dois principais nomes da esquerda nacional: Leonel Brizola (PDT) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Para o mercado, àquela altura, Brizola era preferível a Lula. Ainda que tenha sido um dos grandes nomes da esquerda radical dos anos 1960, Brizola já acumulava experiência nos governos do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro.
Lula, por outro lado, era o outsider completo, uma incógnita. Cunhou-se, então, a expressão “efeito-estrela”, para referir-se aos movimentos súbitos registrados no mercado, notadamente o aumento da cotação do dólar e do ouro, quando havia um fato ou boato de alguma notícia favorável ao candidato petista.
O programa do PT nas eleições de 1989, no que diz respeito à economia, era bastante radical aos olhos do mercado.
Ficou famosa a afirmação de Mário Amato, então presidente Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, a Fiesp, de que se caso Lula fosse eleito, ao menos 800 mil empresários deixariam o país. Esse era o “efeito Xuxa”, pois significaria que o capital nacional e estrangeiro diria “beijinho, beijinho, tchau, tchau” para o Brasil. Havia razões para os temores.
O programa do PT nas eleições de 1989, no que diz respeito à economia, era bastante radical aos olhos do mercado. Em relação à dívida externa, propunha o calote: “… o Brasil tem plenas condições de suspender seus pagamentos aos banqueiros internacionais”. Em relação à dívida pública interna, o documento falava em “renegociação” para pôr fim ao que se chamava de “ciranda financeira”:
“É essencial redefinir as condições de pagamento da dívida interna, conseguindo-se que os prazos de resgate dos papéis sejam alargados e que os recursos empatados na ciranda financeira sejam redirecionados”.
Essa “renegociação” foi exatamente o que ocorreu com o Plano Collor, quando se sequestrou quase 80% dos ativos financeiros do país, desde aplicações na dívida pública, passando pela poupança, chegando até mesmo ao dinheiro da conta corrente. Plano esse, aliás, que despertava a simpatia em setores do Partido dos Trabalhadores.
O segundo mandato de FHC não deixou saudade.
Em 1994 e 1998, com as vitórias em primeiro turno de FHC, o PT não botou tanto medo no “mercado”. O segundo mandato de FHC, porém, não deixou saudade. Sua queda começa já em janeiro de 1999, quando o governo acaba com o câmbio quase-fixo que vigorava desde o início do Real. À época isso foi visto como um “estelionato eleitoral”. Viriam ainda a crise energética (o famoso “apagão”) e o baixo desempenho econômico do país. A taxa de desemprego, por exemplo, ficou sempre acima dos 10%.
O afundamento da plataforma da Petrobras P-36, ocorrida em março de 2001, ficou como um grande símbolo da fase ruim que o país atravessava. A má situação do país e o fato de ser José Serra – político de pouco apelo carismático – o candidato governista foram fatores que jogaram a favor de Lula. E logo ficou claro que seria ele o vencedor do pleito.
A má situação do país e o fato de ser José Serra e seu pouco apelo carismático ser o candidato governista foram fatores que jogaram a favor de Lula.
Com o mercado temeroso, em junho de 2002, o PT lançou a “Carta ao povo brasileiro” , comprometendo-se a respeitar “as regras do jogo”. Em dezembro de 2002, Lula anunciou Henrique Meirelles – que acabava de ser eleito deputado por Goiás pelo PSDB, e antigo funcionário do alto escalão do Bank Boston – como presidente do Banco Central.
Nesse mesmo mês, Antonio Palocci anunciava Marcos Lisboa – economista reconhecidamente ortodoxo, distante do pensamento petista tradicional – como secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda.
Era, para uns, o PT se rendendo ao realismo. Para outras, era o partido “beijando a cruz da ortodoxia’. Para o economista Fabio Giambiagi, em uma análise da história econômica do período, era o PT “rompendo com a ruptura”.
O ano de 2003 ainda foi contaminado pelas incertezas de 2002. Mas a partir daí, por uma soma de diferentes fatores, o fato é que a economia nacional teve um ótimo desempenho durante a gestão Lula. A taxa de crescimento da economia, por exemplo, se acelerou de maneira significativa. Se durante o segundo governo FHC (1999-2002), o PIB cresceu a uma taxa média de 2,3% ao ano; durante os dois mandatos de Lula esse valor passou para 3,51% e 4,64%, respectivamente.
A inflação também foi mantida sob controle, entrando em uma trajetória de forte queda entre 2003 e 2006.
A taxa Selic, passou de 25% em janeiro de 2003 para 8,75% no final de 2009. As contas públicas foram mantidas em ordem. Em 2005, por exemplo, o Brasil obteve um superávit primário recorde, de 3,79% do PIB.
A dívida externa, que era de 15,7% do PIB em 2002 parou para quase – 10% – isso mesmo, -10% – em 2010. Ou seja, o Brasil tornou-se credor em moeda estrangeira, graças ao grande acúmulo de reservas internacionais, que passaram da casa dos US$ 30 bilhões em 2002 para US$ 280 bilhões em 2010.
E como o mercado foi feliz naqueles anos. O índice Ibovespa – medida da variação do valor de mercado das principais empresas cujas ações são negociadas na bolsa de valores – passou de 10 mil pontos em janeiro de 2003 para mais de 73 mil pontos em maio de 2008.
Ainda que a grande crise dos Estados Unidos, iniciada no segundo semestre de 2008 tenha causado um importante revés, Lula entregou a faixa presidencial para Dilma com o Ibovespa acima dos 67 mil pontos. O desempenho dos bancos também foi excelente nesse período. Em valores nominais (não corrigidos para a inflação do período), o lucro do Itaú passou de R$ 2,3 bilhões em 2002 para R$ 13,3 em 2010.
E muitos dos que ocupavam cargos de confiança ou de carreira na alta burocracia petista, logo foram comandar grandes grupos financeiros. Marcos Lisboa se tornou diretor-executivo do Itaú-Unibanco em 2009. Ilan Goldfajn, atual presidente do Banco Central, fez parte da diretoria da área de política econômica do Banco Central entre 2000 e 2003, se tornou, em 2003, sócio da Gávea Investimentos (empresa de propriedade do ex-presidente do BC, durante o segundo mandato de FHC, Armínio Fraga) e economista-chefe do Itaú entre 2009 e 2016. Alexandre Schwartsman, diretor da área de assuntos internacionais do Banco Central, entre 2003 e 2006, durante a gestão de Henrique Meirelles, assumiu como economista-chefe do ABN Amro Bank para a América Latina, e economista-chefe do banco Santander, entre 2008 e 2011.
Ainda que durante o governo Dilma políticas ruins tenham deteriorado a confiança e a credibilidade do Banco Central e dos números da política fiscal do país, é temerário que o “mercado” prefira colocar um candidato que coloca em risco nossa democracia, nossa economia, pelo simples temor de um retorno do PT ao poder.
O “mercado” nacional normalizar a candidatura de Bolsonaro é sinal de falta de escrúpulos.
O “mercado” nacional normalizar a candidatura de Bolsonaro é sinal de falta de escrúpulos. Estão apenas reforçando o clichê de que sua única preocupação é comprar barato hoje, para vender caro amanhã, ainda que nesse processo arrastem o país para o caos e para o autoritarismo.
Porta-vozes do “mercado” estrangeiro, como as publicações The Economist, Financial Times e Bloomberg, por outro lado, alertam para os perigos que uma vitória de Bolsonaro-Mourão representaria para a jovem e frágil democracia brasileira.
A história do século 20 já demonstrou que quem aceita trocar “um pouco de liberdade” por “um pouco mais crescimento” ou “um pouco mais de ordem” acaba ficando sem nenhuma dessas coisas.
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