Inúmeras crianças indígenas desapareceram em internatos dos EUA. Agora seus povos buscam respostas.

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Inúmeras crianças indígenas desapareceram em internatos dos EUA. Agora seus povos buscam respostas.

As nações indígenas se dirigiram à ONU na tentativa de obter uma relação completa dos desaparecidos em internatos como a Carlisle Indian School.

Inúmeras crianças indígenas desapareceram em internatos dos EUA. Agora seus povos buscam respostas.

Quando Yufna Soldier Wolf era criança, explicaram-lhe muito bem por que seus familiares só falavam inglês e por que se vestiam de determinada forma. Seu avô e os outros anciãos costumavam relatar suas experiências nos internatos, para onde o governo enviava centenas de milhares de crianças indígenas, de praticamente todas as tribos no território dos EUA, com o objetivo de desaprender suas línguas e culturas. “Muitos deles sofreram abusos físicos, verbais, sexuais”, conta ela.

No centro dessas histórias estavam as crianças que nunca voltaram da Carlisle Indian Industrial School (Escola Industrial Indígena de Carlisle), onde seu avô estudou. “Meu avô costumava dizer: ‘não se esqueça dessas crianças. Não se esqueça do meu irmão, que ainda está enterrado lá’”, disse Soldier Wolf. Ela prometeu se lembrar.

A escola, que foi inaugurada em 1879 em Carlisle, no estado da Pensilvânia, e fechou as portas há 100 anos, era o mais conhecido internato indígena dos Estados Unidos. Foi também o ponto de partida para mais de um século de políticas de remoção infantil que continuam até hoje a dilacerar famílias indígenas. Carlisle e centenas de outros internatos semelhantes, mantidos com recursos federais, foram essenciais ao projeto do governo dos EUA de destruir as nações indígenas e doutrinar as crianças com disciplina militar e patriotismo americano.

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Foi a proximidade de Soldier Wolf com sua família e com as histórias de abuso na instituição que a inspiraram a se tornar agente de preservação histórica tribal dos Arapaho do Norte, e a trabalhar pelo retorno das crianças perdidas em Carlisle.

Yufna Soldier Wolf, ao centro, Mark Soldier Wolf, à esquerda, e Crawford White pai mostram fotos das três crianças do povo Arapaho do Norte enterradas na Carlisle Indian School durante uma reunião para negociar o repatriamento dos restos mortais de 10 crianças na Reserva Rosebud, em Rosebud, Dakota do Sul.

Yufna Soldier Wolf, ao centro, Mark Soldier Wolf, à esquerda, e Crawford White pai mostram fotos das três crianças do povo Arapaho do Norte enterradas na Carlisle Indian School durante uma reunião para negociar o repatriamento dos restos mortais de 10 crianças na Reserva Rosebud, em Rosebud, Dakota do Sul.

Foto: Charles Fox/The Philadelphia Inquirer via AP

Em junho, depois de mais ou menos uma década de diálogo com o Exército dos EUA, que é dono do imóvel de Carlisle, Soldier Wolf esteve presente quando o corpo de Little Plume, a última das três crianças dos Arapaho do Norte a ser enterrada lá, foi exumado e enviado de volta à Reserva Indígena de Wind River, no estado de Wyoming. Os restos mortais das outras duas – Horse, de 14 anos, e Little Chief, de 15, o tio-avô de Soldier Wolf – já haviam sido devolvidos em agosto do ano passado.

A tribo Arapaho do Norte foi a primeira a conseguir recuperar as crianças enterradas nos cemitérios militares de Carlisle. Mas não será a última, e Carlisle é só a ponta do iceberg.

Uma coligação de organizações indígenas, incluindo o National Congress of American Indians, que representa 250 nações indígenas, o International Indian Treaty Council, o Native American Rights Fund, e a National Native American Boarding School Healing Coalition, recorreu à ONU para exigir que o governo dos EUA “forneça uma relação completa das crianças colocadas sob custódia do governo durante a Política de Internatos Indígenas dos EUA, cujo destino e paradeiro permanecem desconhecidos”.

Depois de algumas tentativas fracassadas de obter essas informações diretamente, usando a Lei da Liberdade de Informação para requerê-las ao Gabinete de Educação Indígena dos EUA, os membros da coligação esperam que a pressão do Grupo de Trabalho da ONU sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários faça diferença. Um recurso poderia exigir que o governo dos EUA reportasse a cada seis meses a situação das crianças indígenas desaparecidas dos internatos.

“Nossa maior esperança é começar a promover a conscientização sobre essa parte da história americana, e também obter reconhecimento e assunção de responsabilidade pelo governo dos EUA”, disse Christine Diindiisi McCleave, diretora da Boarding School Healing Coalition. “O fato de que eles ainda não tenham feito isso voluntariamente é um desrespeito e uma violação aos direitos humanos.”

O Departamento do Interior, que supervisiona o Gabinete de Educação Indígena, não quis se manifestar quando procurado.

“Isso sempre funcionou para os colonizadores em todo o mundo, tirar as crianças e romper os laços familiares”

As mesmas pessoas que estão fazendo pressão para apresentar o recurso à ONU e promover o retorno dos restos mortais das crianças reconhecem que isso é apenas o começo – a completa responsabilização pelo legado de Carlisle significaria uma reforma dos sistemas de proteção à infância que continuam a separar crianças indígenas de suas terras e comunidades. Embora Carlisle e internatos semelhantes tenham sido fechados, a remoção de crianças é uma realidade que persiste para muitas famílias indígenas e seus povos. “Isso sempre funcionou para os colonizadores em todo o mundo, tirar as crianças e romper os laços familiares”, disse Madonna Thunder Hawk, uma sobrevivente dos internatos que hoje trabalha para o Lakota People’s Law Project, defendendo a reforma dos mecanismos de proteção à infância no estado de Dakota do Sul. “Se estamos lutando pela terra, também estamos lutando por nosso futuro”, disse Thunder Hawk sobre sua comunidade em Cheyenne River. “Quem vai ocupar essa terra? Precisamos permanecer com nossos filhos.”

O fundador de Carlisle, Richard Henry Pratt, sentado ao centro do coreto, com um grupo de alunos Navajo recém-chegados à escola em 21 de outubro de 1882.

O fundador de Carlisle, Richard Henry Pratt, sentado ao centro do coreto, com um grupo de alunos Navajo recém-chegados à escola em 21 de outubro de 1882.

Foto: John N. Choate via Carlisle Indian School Digital Resource Center

‘Mate o Índio, Salve o Homem’

Para o fundador de Carlisle, Richard Henry Pratt, um caçador de índios que chegou a servir com George Armstrong Custer, o internato era um outro front de batalha das guerras indígenas. Pratt elaborou o currículo da escola, resumido por “mate o índio, salve o homem”, a partir de seus experimentos de educação forçada com prisioneiros de guerra dos povos Cheyenne, Caddo, Arapaho, Kiowa e Comanche em Fort Marion, na Flórida, no começo dos anos 1870. Os experimentos na prisão impressionaram os reformadores indígenas no Congresso, que autorizaram o Gabinete de Questões Indígenas a tomar o controle do Quartel Carlisle para construir o primeiro internato do país fora das reservas indígenas.

“As crianças seriam reféns em nome do bom comportamento de seu povo.”

Enquanto Pratt reunia a primeira turma de alunos de Carlisle, o Comissário de Questões Indígenas, Ezra Hayt, ordenou que ele tomasse as crianças dos Lakotas em razão de sua “atitude hostil em relação ao governo”. Hayt esperava que isso pressionasse os Lakotas e outros povos indígenas do oeste a abrir milhões de hectares de território protegido para ocupação dos brancos. “As crianças seriam reféns em nome do bom comportamento de seu povo”, escreveu Pratt a respeito de sua primeira missão de recrutamento para Carlisle, nas agências Rosebud e Pine Ridge em território Dakota.

Dos anos 1880 até meados dos anos 1920, as condições nos internatos eram especialmente ruins – e letais. “Rotineiramente se encontravam alunos mendigando roupas e comida”, disse Preston McBride, doutorando da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, que está pesquisando para sua tese as condições sanitárias nos internatos. “Alunos compartilhavam colheres e copos nos refeitórios, compartilhavam água do banho”, ele acrescentou. “Quando uma doença aparecia, ela se alastrava rapidamente.”

Os internatos costumavam mandar as crianças doentes de volta para suas famílias – muitos morriam no caminho ou poucos dias depois de chegar em casa. Quando os alunos morriam nas escolas, diz McBride, os registros revelam que algumas vezes era o agente indígena da região quem recebia a informação, não a família. Fugas eram comuns, e para crianças a milhares de quilômetros de casa, encontrar o caminho de volta seria praticamente impossível.

A bem da verdade, não é uma tarefa simples determinar exatamente quantas crianças podem ter desaparecido depois de chegarem aos internatos. “É muito difícil fazer uma estimativa de qualquer coisa relacionada aos internatos – porque o governo não sabe nem quantas crianças passaram por ele”, conta McBride. Ele estima que o número de crianças desaparecidas chegue aos milhares.

Uma sala de aula da segunda série na Carlisle Indian School, ao redor de 1902.

Uma sala de aula da segunda série na Carlisle Indian School, ao redor de 1902.

Foto: Carlisle Indian School Digital Resource Center

Dos Internatos à Guarda Provisória

Trinta e cinco anos depois do fechamento de Carlisle, Sandy White Hawk foi dada em adoção, aos 18 meses de idade, a uma família de missionários brancos que prometeu “salvá-la” de uma vida de pobreza e maus tratos na Reserva Rosebud, onde ela nasceu. White Hawk também não escapou em sua família adotiva, e os problemas se complicaram por um profundo sentimento de perda da sua identidade como pessoa indígena.

White Hawk compara sua experiência de adoção com a de seu irmão, que foi mandado para um internato. “A adoção e os internatos tinham o objetivo de arrancar dos povos nativos quem eles eram”, disse ela. Ao longo do século 20, ambos atuaram em conjunto.

Depois da Segunda Guerra Mundial, assistentes sociais assumiram do ponto em que os internatos como Carlisle haviam parado, colocando as crianças sob guarda provisória do Estado ou dando-as em adoção a famílias brancas. As varreduras de crianças se juntaram às políticas federais de extinção, cujo objetivo era estabelecer a jurisdição do Estado sobre as terras indígenas e relocar os povos indígenas fora das reservas. Em 1957, o Senador do Partido Republicano pelo estado de Utah, Arthur V. Watkins, defensor da extinção, descreveu essa abordagem como “a libertação dos índios das restrições federais especiais sobre a propriedade e a personalidade das tribos e de seus membros”, o que os privava da “completa percepção de sua cidadania nacional”.

Uma vez realocadas para as cidades e matriculadas em escolas públicas, as famílias sofriam crescente vigilância dos agentes estatais, e as crianças novamente se tornavam alvos da remoção. A prática se tornou tão corriqueira que, no começo dos anos 1970, segundo um relatório da Association on American Indian Affairs, mais de um quarto das crianças indígenas em todo o país tinham sido tomadas de suas famílias. Como descreve Amy Lonetree, professora de história na Universidade da Califórnia, em Santa Cruz: “toda família indígena no período pós-Segunda Guerra Mundial vivia sob a ameaça de remoção das crianças”.

A prática foi especialmente intensa em estados como Minnesota, e ainda hoje pouco se reduziu. “Temos o maior índice de remoção de crianças indígenas nos Estados Unidos”, disse White Hawk, atualmente uma defensora no campo da proteção à infância em Minnesota, sobre o sistema de guarda temporária estatal. Em 2016, o jornal Star Tribune noticiou que, embora as crianças indígenas fossem menos de 2% da população de Minnesota, elas representavam um quarto das crianças em guarda temporária.

Militantes como White Hawk dizem que, embora seja importante curar as feridas do passado, acabar com as formas atuais de separação de famílias indígenas é igualmente urgente. Nos últimos anos, o Instituto Goldwater, um poderoso centro libertário de estudos sediado em Phoenix, tem conduzido diversos ataques judiciais contra o Indian Child Welfare Act (ICWA) de 1978, alegando que a legislação – que exige que juízes e assistente sociais preservem as famílias indígenas sempre que possível – não assegura proteção igualitária nos termos da lei porque se baseia em “raça”. O ICWA, porém, foi criado para proteger as crianças que sejam membros de tribos ou cujos pais biológicos sejam membros de tribos, com o objetivo de combater a história de lugares como Carlisle e o papel que a guarda temporária e as agências de adoção desempenham na manutenção da remoção das crianças indígenas de suas famílias.

Para White Hawk, manter as famílias indígenas reunidas depende também da transferência de recursos do sistema de acolhimento temporário para as moradias acessíveis, especialmente em cidades como Minneapolis, que está vivendo uma escassez de moradias. “Sempre soubemos do que precisamos, só não tínhamos os recursos”, disse ela. Em vez de oferecer assistência eficiente de moradia para manter reunidas as famílias indígenas, o dinheiro do Estado vai para o sistema de guarda temporária. “É uma vergonha que o dinheiro seja destinado para manter uma criança indígena sob a guarda temporária de um estranho, não para preservar a família indígena, o que é o âmago do ICWA.” Segundo a legislação estadual, as famílias acolhedoras podem receber entre US$ 650 e US$ 2.410 mensais por criança, dependendo do número de crianças sob seus cuidados e das necessidades especiais delas.

Soldier Wolf enxuga lágrimas diante do túmulo de seu bisavô, Chefe Sharp Nose da tribo Arapaho do Norte, no cemitério da família na Reserva Indígena de Wind River, perto de Riverton, Wyoming.

Soldier Wolf enxuga lágrimas diante do túmulo de seu bisavô, Chefe Sharp Nose da tribo Arapaho do Norte, no cemitério da família na Reserva Indígena de Wind River, perto de Riverton, Wyoming.

Foto: Dan Cepeda/The Casper Star-Tribune via AP

Revidando

À luz do legado devastador de Carlisle, devolver algumas das crianças que foram levadas é um passo pequeno e incrivelmente árduo. Não está claro se a lei Native American Graves Protection and Repatriation Act, de 1990, que rege a devolução dos bens ou dos restos mortais às comunidades indígenas, poderia ser aplicada com sucesso a uma instituição militar como Carlisle. Até agora, apenas descendentes individuais, não as próprias nações indígenas, pleitearam a devolução dos restos mortais dos alunos de Carlisle. Nações interessadas em resgatar essas crianças precisam rastrear seus familiares individualmente – o que é um enorme problema no caso daquelas que chegaram órfãs ao internato.

McBride reconheceu que nenhuma investigação conseguiria obter uma relação completa de todas as crianças desaparecidas, porque os registros são muito inconsistentes. Mas se os pesquisadores pudessem ter acesso ao extenso material existente, arquivado pelo governo federal e por cada internato, conseguiriam ajudar algumas famílias e comunidades a encerrar um ciclo, e obter um importante reconhecimento oficial do sistema de remoção de crianças que é parte essencial da fundação do país.

Segundo Andrea Carmen, diretora executiva do International Indian Treaty Council, o fracasso do governo dos EUA na realização do levantamento das crianças indígenas desaparecidas dos internatos é “uma violação em curso dos direitos humanos à luz do Direito Internacional”. As organizações estão atualmente preparando o requerimento à ONU, que incluirá depoimentos das tribos e dos familiares das crianças desaparecidas.

Depois que as crianças enterradas em Carlisle voltaram para casa, Soldier Wolf pediu exoneração de seu cargo como agente de preservação histórica tribal dos Arapaho do Norte. “Sinto que já encerrei meu percurso”, concluiu ela. O retorno de seu parente Little Chief foi mais que um aceno a seu avô; foi também uma forma de ofertar a seus próprios filhos um conjunto diferente de possibilidades que não incluísse “a triste história do tio que nunca recuperamos”, disse. “Porque nós o recuperamos”.

Foto do Título: O corpo discente da Carlisle Indian School em 1892.

Tradução: Deborah Leão

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